Cristina Miyuki Hashizume
Neste breve ensaio, utilizaremos o cenário mundial e o contexto atual da pandemia para analisarmos as relações sociais e os direitos humanos em relação às diferentes classes sociais.
Uma recente obra editada neste ano (DAVIS, 2020) defende que a pandemia não afeta igualmente a todas as classes sociais, países e regiões do mundo, como uma análise mais rasa pode tentar nos convencer. É a partir dessa obra que iremos refletir sobre a situação das classes trabalhadoras mais vulneráveis que estão no front dos serviços nesse momento atual de pandemia.
Nosso objetivo, aqui, é problematizar as relações de trabalho e o cuidado solidário necessário para com as classes mais pobres em diferentes países do mundo global, num arrefecimento dos excessos e violações a que o capitalismo submete certas parcelas da população.
Cenário atual
A atual pandemia tem sido comparada com doenças respiratórias já conhecidas do mundo, como a SARS (2003), A Gripe Espanhola (1918), após as quais, governos poderiam ter se preparado para desenvolver pesquisas de ponta para evitar o surgimento de novas pandemias semelhantes. A gripe espanhola, por exemplo, resultou em muitas pessoas pobres mortas por inanição. A desnutrição produziu inflamação bacteriana, atuando na imunologia das pessoas, e dando possibilidades da ciência avançar nos estudos sobre pneumonia viral.
É como se a COVID-19 fosse uma vingança da natureza pelos maus-tratos grosseiros e abusivos da natureza sob a tutela de um extrativismo neoliberal violento e desregulado do capitalismo contemporâneo. Parece ser sintomático que os países menos neoliberais, como China e Coreia do Sul, Taiwan e Singapura, tenham atravessado até agora a pandemia melhor do que a Itália e Estados Unidos.
Nossa hipótese, nesse texto, é de que, pesquisas de ponta, que poderiam atuar na prevenção de novas doenças complexas do mundo contemporâneo não se mostraram como estratégias atrativas para governos, indústria médica e farmacêutica. Por não terem resultado imediato e por demandar altíssimos investimentos, a Medicina de Emergência não é atrativa à grande indústria capitalista.
A atual conformação do mundo global reflete rivalidades geopolíticas, desenvolvimentos geográficos desiguais, que envolvem diversas instituições: financeiras e estatais, numa teia em constante mudança das divisões do trabalho e das relações sociais.
Nesse cenário, a preocupação do capital com a desvalorização nos negócios, segundo Harvey (2020) não se dá porque as mercadorias não podem ser vendidas, mas porque não podem ser vendidas a tempo, numa mudança das condições ambientais de sua própria reprodução. Temos presenciado “forças evolutivas autônomas e independentes” que vão remodelando as condições ambientais de forma infinita. Tais mudanças circunstâncias na quais ocorrem mutações na codificação dos vírus, porém, dependem das ações humanas. Ou seja, cabe a nós perceber de que forma queremos nos relacionar com esse funcionamento capitalista, que tem tratado as pessoas que moram em grande centros, em subcondições de trabalho, alimentação e de moradia.
Harvey (2020) defende que os impactos econômicos e demográfico da disseminação do vírus têm relação com as fissuras e vulnerabilidades preexistentes no modelo econômico hegemônico.
Daremos alguns exemplos de tais fissuras nas relações de trabalho dos profissionais que estão no front da batalha contra o vírus. As autoridades públicas e os sistemas de saúde foram apanhados em quase todos os lugares com falta de funcionários. Quarenta anos de neoliberalismo na América do Norte e do Sul e na Europa parecem ter deixado a população totalmente exposta e sem condições para enfrentar uma crise de saúde pública, mesmo tendo havido riscos anteriores semelhantes (SARS; Ebola; Gripe Espanhola) que forneceram abundantes avisos sobre possíveis futuras pandemias. (HARVEY, 2020) Nos EUA, por exemplo, a prevenção sequer era um ramo de trabalho atrativo suficiente para justificar parcerias público-privadas. Relata o autor que o presidente Trump cortou o orçamento do Centro de Controle de Doenças e dissolveu o grupo de trabalho sobre pandemias no Conselho Nacional de Segurança, assim como cortou todo o financiamento da pesquisa, inclusive sobre as mudanças climáticas.
Um outro aspecto que explicita as fissuras nas relações de trabalho capitalistas contemporâneas é o fato de que, frente à pandemia, apenas ricos e classe média (funcionários públicos e trabalhadores formais) conseguem se manter em quarentena, enquanto trabalhadores com baixos salários, trabalhadores rurais, desempregados, professores sem vínculo empregatício têm dificuldade até mesmo para adquirir álcool em gel.
Parece-nos que a forma espiral de acumulação interminável de capital está implodindo de forma global. David Harvey aponta que a única coisa que poderia salvar o mundo desse fenômenos seria o consumismo de massa financiado, inventado e incentivado pelo governo, ou seja, uma ação proveniente do estado, no sentido de injetar capital para os menos assistidos.
A doença escolhe setores e classes, qual seja, a força de trabalho que se espera que cuide dos números crescentes de doentes é tipicamente altamente sexista, racializada e etnizada na maioria das partes do mundo. Os entregadores, os cuidadores da saúde, os seguranças, os atendentes de supermercados e os trabalhadores de outros setores logísticos. Surge a “nova classe trabalhadora”, que está na vanguarda e suporta o peso de ser a força de trabalho que corre maior risco de contrair o vírus através de seus empregos ou de ser demitida injustamente por causa da retração econômica imposta pelo vírus (DAVIS, 2020).
Em nosso entendimento, é como se o consumismo contemporâneo excessivo dá mostras de que o mundo não é tão infinito, tão maquínico a ponto de se desconsiderar as pessoas, a renovação dos recursos naturais, o respeito à natureza e ao consumo responsável. Tal consumo insano decretaria o colapso já enunciado por Marx, em seus escritos. O setor de serviços (hotelaria, eventos, serviços que vendem “experiência”) passam a ser totalmente abalados como que para uma boa razão.
As relações humanas no confinamento parecem estar mais humanizadas, as pessoas mais solidárias, a poluição mundial tem diminuído, o consumismo desenfreado tem sido diminuído e as pessoas parecem ter percebido à força a importância do consumo mais responsável. O coronavírus também afetou seriamente a produção de automóveis, o que, para Badiou (2020) não é tão mau, na medida em que pode induzir-nos a pensar em alternativas à nossa obsessão por veículos individuais.
Por outro lado, talvez a população seja convencida de que só a realidade virtual seja considerada segura, sendo permitido mover-se livremente apenas em locais rigidamente restritos por uma parcela muito rica da humanidade (BADIOU, 2020).
Compreender o momento em que estamos vivendo merece uma análise transversal da pandemia, já que esta se encontra no ponto de articulação entre as determinações naturais e sociais. Onde essas duas determinações se interceptam e conclusões podemos tirar? (Badiou, 2020)
Para concluir, em que pese os trabalhadores que são penalizados pela pandemia, o que lhes têm custado a renda, o trabalho e a saúde, será tudo isto um sinal claro de que precisamos reorganizar a economia global para que ela não fique mais à mercê da mão livre de mercado? (BADIOU, 2020; LATOUCHE, 2009) como refletir sobre o nosso estado atual, lançando mão de redes de solidariedade, respeito aos Direitos Humanos, principalmente nas relações de trabalho e comerciais? Como pensarmos em uma cultura da paz, solidária, fazendo com que a humanidade regrida, em termos tecnológicos, mas avance em relação ao convívio mais civilizado, respeitoso e afirmativo no que tange às relações interpessoais? São apenas algumas pistas que queremos trazer para o debate, que ainda está começando…
Referências:
BADIOU, A. Sobre a situação epidêmica. In: DAVIS, Mike, et al: Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020.
DAVIS, Mike, et al: Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020.
HARVEY, D. Política anticapitalista en la época de COVID-19.In: DAVIS, Mike, et al: Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020.
LATOUCHE, S. Pequeno tratado do decrescimento sereno. São Paulo: Martins Fontes, 2009.