Hoje, dia 18 de maio de 2020, o Brasil completa 33 anos de comemoração de uma data de suma importância para a saúde mental: Dia Nacional da Luta Antimanicomial.
O texto a seguir trará uma perspectiva de alguns avanços que tivemos e uma reflexão de como se encaminhará nossa saúde mental em relação ao nosso Sistema Único de Saúde. Para tal, apresento-lhes um conceito do apoio matricial que humaniza e potencializa as práticas de tratamento.
Matriciamento ou apoio matricial é uma nova forma de gerar qualidade de saúde entre duas ou mais equipes, que através de um processo de construção compartilhada entre estas, criam-se uma proposta de intervenção pedagógica- terapêutica. (CHIAVERINI, 2011.)
Esse apoio matricial foi formulado por Gastão Wagner Campos, em 1999, e nos possibilitou um tipo de cuidado colaborativo e de interseção dos conhecimentos dos diferentes profissionais, isso propiciou numa participação conjunta entre atenção primária e saúde mental.(CHIAVERINI, 2011)
Segundo Chiaverini (2011) estamos acostumados com o nosso sistema de saúde que organiza de forma hierárquica os encaminhamentos, tratamentos, comunicação, entre outros. Sempre há uma transferência de responsabilidades nos encaminhamentos que são feitos, ou seja, se um determinado profissional da saúde já realizou todas as funções que em tese seriam responsabilidades só dele, o encaminhamento seria para um outro profissional que tivesse outra função, outra responsabilidade, e isso, com uma certa frequência, ocorre de maneira irregular e com precariedade, pois o encaminhamento se dá por informes escritos, sem informações que poderiam ser preciosas para esse profissional que está recebendo este encaminhamento.
Essa proposta integradora tem o intuito de reestruturar essa lógica dos sistemas de saúde, citado no parágrafo anterior. Os encaminhamentos, os protocolos, os centros reguladores, as referências, entre outros, sofrem com processos burocráticos, sem nenhum dinamismo. Exatamente aqui que entra a interação dos componentes (os profissionais da saúde) com essa bagagem diversa de saberes, em prol das pessoas que recebem suas terapêuticas, isso é chamado de horizontalização, que decorre desse processo entre matriciamento e as equipes de referências.(CHIAVERINI, 2011.)
Segundo Campos e Domitti (2007, p. 400), a relação entre essas duas equipes constitui um novo arranjo do sistema de saúde:
Apoio matricial e equipe de referência são, ao mesmo tempo, arranjos organizacionais e uma metodologia para gestão do trabalho em saúde, objetivando ampliar as possibilidades de realizar-se clínica ampliada e integração dialógica entre distintas especialidades e profissões.
Figueiredo e Campos (2009, p.130) completa afirmando que se trata de: “um suporte técnico especializado que é ofertado a uma equipe interdisciplinar em saúde a fim de ampliar seu campo de atuação e qualificar suas ações”.
Segundo o Guia Prático de Matriciamento em Saúde Mental, matriciamento não é: encaminhamento ao especialista; atendimento individual pelo profissional de saúde mental; intervenção psicossocial coletiva realizado apenas pelo profissional de saúde mental. Pelo contrário:
O matriciamento deve proporcionar a retaguarda especializada da assistência, assim como um suporte técnico-pedagógico, um vínculo interpessoal e o apoio institucional no processo de construção coletiva de projetos terapêuticos junto à população. Assim, também se diferencia da supervisão, pois o matriciador pode participar ativamente do projeto terapêutico. (CHIAVERINI, 2011, p. 15)
Diante do guia já citado, os profissionais matriciadores em saúde mental na atenção primária são: psiquiatra; psicólogos; terapeutas ocupacionais; fonoaudiólogos; assistentes sociais; enfermeiros de saúde mental.
Como vimos, o processo de saúde-enfermidade-intervenção não deve ser monopólio nem ferramenta exclusiva de nenhuma especialidade. Fica claro que o matriciamento é um processo de trabalho interdisciplinar por natureza, com práticas que envolvem intercâmbio e construção do conhecimento. (CHIAVERINI, 2011)
Esse novo modo de produzir saúde situa-se dentro da perspectiva do pensamento construtivista que trabalha com a hipótese de uma eterna reconstrução de pessoas e processos em virtude da interação dos sujeitos com o mundo e dos sujeitos entre si. Essa capacidade se desenvolve no matriciamento pela elaboração reflexiva das experiências feitas dentro de um contexto interdisciplinar em que cada profissional pode contribuir com um diferente olhar, ampliando a compreensão e a capacidade de intervenção das equipes. (p.16)
Obviamente nem tudo ocorre de maneira eficaz e acolhedora: assim como a sociedade como um todo, os profissionais de saúde também podem ter preconceitos e estigmas enraizados pela nossa cultura e educação, resultada de um processo histórico que manchou a imagem da saúde mental o que prejudica diretamente o matriciamento. (CHIAVERNI, 2011)
Outra questão observada pela cartilha organizada pela Chiaverini (2011), é que alguns profissionais, inúmeras vezes, negligenciam e não valorizam as queixas somáticas nem o sofrimento dos pacientes atendidos. Eles consideram as queixas como algo meramente de “fundo emocional’’, ou, que há um fingimento por trás do que está emergindo”.
A adesão ao tratamento é essencial para que os resultados sejam observados e satisfatórios, porém, dependendo de diversos fatores, esta adesão pode ser prejudicada e toda a relação da equipe com os pacientes e familiares é prejudicada. Quando o acolhimento e a forma como os profissionais tem o primeiro contato é ríspida, insatisfatória a adesão é quase certa de não ser possível:
A efetividade da comunicação na saúde tem implicações na adesão ao tratamento, no prognóstico de afecções, na satisfação do paciente, nas denúncias de má-prática e na satisfação do profissional. Na saúde mental na atenção primária destacam-se estudos britânicos que mostram que a capacidade de um médico generalista compreender e cuidar de transtornos mentais depende mais do seu estilo de comunicação do que de seu conhecimento de psiquiatria. (CHIAVERINI p. 177)
Uma das formas mais reais que possuíamos para a exerção de matriciamentos, eram os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) que foram criados pelo Ministério da Saúde em 2008 com o intuito de favorecer a consolidação da Atenção Básica no Brasil, o que sugere uma extensão das ofertas de saúde na rede, assim como a definição, abrangência e as escolhas das ações (BRASIL, 2012).
Foi regulamentado pela Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011 e tinha como configuração uma equipe multiprofissional que atua integralmente com as equipes de Saúde da Família,com as equipes de atenção básica- visando a atuação para consultórios na rua, equipes fluviais e ribeirinhas- e com o Programa Academia da Saúde (BRASIL, 2012)
Esta atuação integrada permite realizar discussões de casos clínicos, possibilita o atendimento compartilhado entre profissionais tanto na Unidade de Saúde como nas visitas domiciliares, permite a construção conjunta de projetos terapêuticos de forma que amplia e qualifica as intervenções no território e na saúde de grupos populacionais. Essas ações de saúde também podem ser intersetoriais, com foco prioritário nas ações de prevenção e promoção da saúde (BRASIL, 2012).
Em 28 de dezembro de 2012, o Ministério da Saúde criou uma terceira modalidade de conformação de equipe, o NASF 3 , abrindo “ a possibilidade de qualquer município do Brasil faça implantação de equipes NASF, desde que tenha ao menos uma equipe de Saúde da Família (BRASIL, 2012).
Em janeiro desse ano, uma nota do Ministério da Saúde, confirmou algo que já era esperado pelos profissionais e população: a anulação dos repasses aos NASFs o que resulta na extinção desse projeto e consequentemente as especificidades desse tratamento considerado visionário. [1]
Qual é o futuro da nossa saúde mental? A data possibilita que façamos demasiadas reflexões diante de tudo que ocorreu em nossa história: métodos coercitivos e punitivos aos internados; pacientes enclausurados; destituição de humanidade dos mesmos; exclusão da cidadania dos sujeitos; extinção da subjetividade; medicalização desenfreada, entre outros.
É necessário que retornemos a história para que não ocorra novamente todas essas atrocidades. Mas com o desmonte do SUS, como um todo, o sucateamento acabará enforcando todas as possibilidades de avanços na saúde mental que tivemos até aqui. E agora?
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério do Planejamento. Portal da Saúde. Departamento de Atenção Básica– Brasília-DF. 2012. Disponível em
< http://dab.saude.gov.br/portaldab/ape_nasf.php> acesso em: 10 mai 2020
CAMPOS G. W. De S.; DOMITTI, A. C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 399-407, 2007.
CHIAVERINE. Dulce, Helena. (Organizadora) [et al]: Guia prático de matriciamento em saúde mental .Brasília, DF : Ministério da Saúde: Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva, 2011.
FIGUEIREDO, M. D.; CAMPOS, R. O. Saúde mental na atenção básica à saúde de Campinas, SP: uma rede ou um emaranhado. Ciência e Saúde Coletiva, v. 14, n. 1, p. 129-138. Rio de Janeiro-RJ. 2009.
Parabéns pela matéria, Rodrigo!!!!
Um tema de conhecimento mais do que necessário.
Escrito de forma a tornar o conteúdo acessível e interessante!
Abraço,
Bel
Obrigado Izabel, fico contente em somar!
O tema é interessante e foi abordado de forma objetiva e clara. Parabéns. Como tudo o que acontece neste país, o parágrafo final acentua o destino da proposta: sua morte. No atual governo (com letra minúscula de propósito), tudo que é humano está destinado à morte. Mas há que resistir.
Obrigado pelo feedback, Francisco! Há muito que se resistir, realmente! Abraços!