“Lisboa, velha cidade
Cheia de encanto e beleza
Sempre a sorrir tão formosa
E no vestir sempre airosa
O branco véu da saudade
Cobre o teu rosto linda princesa
Olhai, senhores, esta Lisboa d’outras eras
Dos cinco réis, das esperas e das toiradas reais
Das festas, das seculares procissões
Dos populares pregões matinais, que já não voltam mais (…)”
(Trecho da canção Lisboa Antiga de Amália Rodrigues)*
Deambulando pela cidade de Lisboa descubro lugares inusitados, e a interação fortuita com as pessoas locais trazem oportunidades de reflexão e muitas vezes se transformam em situações pedagógicas por assim dizer, de estar-se aprendendo sempre algo novo. Pela segunda vez na ‘terrinha’ me descubro apaixonada por cada pequeno trecho, pelos muros antigos com graffites contrastantes, o velho e o novo transformando configurações urbanas. Meus trajetos estão situados fora do circuito tradicional de turismo, tudo o que me distancie das massas com guias em várias línguas, aquela Babel enlouquecida, com suas câmeras fotográficas metralhando tudo o que veem (ou não veem) pela frente.
Parece que já vivi ali em tempos de antanho, mas não gosto de me aprofundar nesse tema, que soa metafísico demais para minha cabeça racionalizante. Fiquei hospedada no bairro do Saldanha, e pela manhã depois do café, fazia algumas caminhadas aguardando o horário para ir ao Congresso de Educação na Universidade de Lisboa, o motivador primário da viagem. Ao final da travessa Rebelo da Silva encontro um prédio da “terra pós-apocalíptica”, no dizer de um morador com quem mantenho um pequeno diálogo.
Fico maravilhada ao encontrar aquele local único, o ar de abandono é visível, mas parece conter muita vida. Deixados ao sabor do tempo e do clima, esses prédios vão criando uma atmosfera nostálgica, até mesmo um pouco surreal. Observo com admiração lugares e casas assim, pela história que contêm, pela resiliência decrépita sobrevivendo em meio a outros edifícios bem comportados e dentro dos padrões estéticos convencionais.
– Se tiveres sorte, consegues ver os moradores….(diz o senhor, interrompendo meus pensamentos, com aquele delicioso ‘chiado’ na fala).
– Mas ainda existem moradores aí? (pergunto, entre encantada e perplexa)
– Sim, os pombos e morcegos (responde, com um tom de ironia)
Creio que ele disse somente pombos, mas a minha imaginação completou com os morcegos, Edgar Allan Poe também teria adorado o lugar. A (suposta) mãe desse morador, saindo do carro com muletas, me olha com uma expressão de estranheza quando digo que gosto do lugar e acho belo aquele prédio. “De que hospício saiu essa gaja? com tantos lugares turísticos, porque gastar tempo a tirar fotos, a admirar essas obras do acaso?”, deve ter pensado a velha senhora (adivinho pela sua expressão enfastiada).
No número 58 da rua Cidade da Horta, encontro o prédio onde Fernando Pessoa morou entre 1916 e 1917, sim, ele mesmo o poeta. A placa ao lado da porta com a pintura esmaecida diz que era um quarto alugado no primeiro andar. Como gostaria de viajar no tempo e de repente, ao virar uma esquina dar de cara com ele e dizer “bom dia”, quem sabe trocar algumas palavras. Que aspecto teria ele ‘em pessoa’? Magro, mal vestido, com o eterno chapéu ensebado e muito provavelmente, um livro embaixo do braço.
Próximo dali, me chama a atenção uma lojinha chamada “Espaço Exibicionista”, um local para venda de bijuterias, a decoração toda feita com fotos de estrelas clássicas do cinema mundial. Por que será espaço exibicionista? O nome seria apenas para causar impacto? Ou teria a ver com a questão da vaidade do ‘se exibir’? Acabo concluindo que é meramente uma questão linguística entre expressões da língua portuguesa de lá e de cá.
Há uma pracinha recôndita no Largo da Estefânia, no bairro conhecido como Arroios, com a estátua de outro poeta lisboeta menos conhecido e menos incensado, de nome Cesário Verde (1855-1886). Este morreu muito jovem com tuberculose, como todo bom poeta do século XIX que se preze. Ninguém dá atenção a ele, que está a mais de um século sem direito a fala, imóvel, com seu olhar triste.
Em trecho do seu poema “O sentimento dum ocidental”, ele diz:
“Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer” (…)
Estátua de Cesário Verde, na Praça Ilha do Faial
Logo depois encontro o “Talho das Escadinhas” e descubro que talho significa açougue (faz sentido), próximo dali alguns gatos passeiam, provavelmente esperando um quinhão do açougueiro, ou talheiro. Converso com uma senhora, moradora local que diz preferir os gatos aos humanos (faz muito sentido). Observo ao pé das escadinhas alguns jovens turistas, e pelo som das conversas os identifico como alemães, estão sentados bebendo cerveja e parecem não se dar conta do lugar, ao sair largam as garrafas vazias próximo ao banco onde estavam.
Em muitas janelas há o charme das roupas estendidas nas áreas externas, o que me parece encantador, mas penso no quanto isso representa um choque cultural para muita gente. Em alguns países, como nos EUA por exemplo (e até mesmo no Brasil) em certos locais é praticamente proibido secar roupas nos varais externos partindo de ideias culturalmente preconceituosas. Segundo o ditado popular “roupa suja se lava em casa”, se depreendendo daí que secá-la mesmo que limpa, deve-se fazer em ambiente privado também, para não expor sua intimidade e não desvalorizar o local.
Perscruto com olhar de uma etnografista urbana, objetos jogados como lixo em um dos pontos das escadinhas e lá encontro sapatos sofisticados ainda em bom estado, tecidos finos, caixas, tudo em desordem. Teriam sido colocados ali pelos herdeiros de uma velha senhora que “teria passado para o andar de cima” ou seriam acessórios de uma trupe falida de teatro?
Dou um tempo na “Padaria do Bairro” para tomar sopa de cenouras com textura aveludada, acompanhada de pão, um copo d’água e uma taça de vinho tinto, e me decido a sentar em uma mesa do lado de fora. O dia é ensolarado, a refeição é perfeita mas quase acabo por criar polêmica com uma senhora que queria fumar sentada na mesma mesa, pois eram destinadas a ‘fumadores’ e ela insistia em que fosse me sentar lá dentro. Mas eu não podia perder a paisagem do lugar, observando as pessoas e aproveitando a trégua do clima ainda invernal do início de fevereiro.
Voltei mais duas vezes para fotografar aquele edifício que ficava mais ou menos no trajeto das minhas caminhadas diárias. No primeiro dia estava garoando e a luz não estava apropriada, na última vez finalmente consegui capturar uma imagem com o sol se contrapondo às sombras, e aproveito para me despedir com respeito desse vetusto senhor, temendo por ele e por seus assemelhados, órfãos dos cuidados do poder público e do afeto dos seus habitantes. Olhando para o alto, além dos pássaros, não vejo “esta Lisboa d’outras eras”, mas enormes guindastes do progresso pairando implacáveis, sob os céus de Lisboa.
*Para ouvir na íntegra essa belíssima canção de Amália Rodrigues, ilustrada com fotos históricas da cidade em preto e branco, acesse:
https://www.youtube.com/watch?v=v6P68KXeBy4
TEXTOS E FOTOS: IZABEL LIVISKI (todos os direitos reservados)
***
Amei esse tour alternativo por Lisboa, ao som de Amália Rodrigues, conduzido pelo olhar sensível de Izabel Liviski!
Obrigada, amore!
Lindo passeio capitaneado pela Bel LIviski. Texto maravilhoso, imagens idem.
Grata, amiga!
Maravilhosas fotografias. O texto é ótimo.
Grata pelo comentário, Isabel, abraço.
Um texto digno de Fernando Pessoa. Creia, ele teria amado ler alguém escrever assim de sua Lisboa. Conhecia suas fotos maravilhosas, seus textos ótimos, mas este… Sem palavras! Li e reli seu nome para ter certeza. Não pense que é um desmerecimento. Ao contrário. É o espanto de se deparar com uma obra prima.
Obrigadíssima, meu querido amigo e guru!
Vindo de vc, eu acredito!
abraços.
Recebido por e-mail:
Amei. Sou louca por Portugal todo, e suas fotos e palavras me levaram imediatamente para Lisboa.
Já sugeri que em Lisboa fosse ao Pavilhão Chinês? Se não conhece, não sabe o que está perdendo…
Vou mandar a algumas amigas – uma delas morando em Oslo faz mais de vinte anos, mas que como eu, ama Portugal.
Grata, adorei o “passeio”.
Wanda Camargo
Izabel acabei de ler seu texto e adorei! Muito legal suas “sacadas” e fugida da rota turística.
As fotos ilustraram muito bem o texto todo.
Esses prédios antigos, têm história… imagina o que já se passou lá…
Aprendi uma nova palavra: deambulando (fui olhar no dicionário kkkkkk).
Abração Izabel e por favor me envie sempre esta revista que gosto muito.
Everly
(Varsóvia/Polônia)
Demais, Bel… Adorei a foto do talho das escadinhas. Fiquei super empolgado por andar nesses lugares!!!!!!
Obrigada, querido amigo Rô!
Com certeza, vale muito a pena, Portugal é lindo!!!!
Recebido por email:
Eu poderia ler um livro inteiro dessas crônicas escritas a dois modos, porque as fotografias, por vezes, grafam coisas que legendam as letras e não o contrário. A leitura, por aqui, foi um misto de nostalgia, espanto, acalento e imersão.
Outra coisa que me alegrou e sustou (com um espanto bom) foi o seu caminhar para fora de um circuito turístico. Percorri Portugal do Norte, saindo de Barcelos, até a ponta do Algarve, em Faro e Lagos, sempre passando por lugares pouco convencionais e a sua escrita chama a atenção para o que, por regra, desaparece, as coisas mais incríveis de uma Lisboa real, percorrida a pé, com seus cheiros a tudo, não apenas a bacalhau, mar e pastéis de nata.
É curioso, não é? Os turistas não observam o que escapa aos guias, ao que habita o cotidiano de uma vida realmente portuguesa, a vida feita por um povo que vive Portugal com todas as suas idiossincrasias, e acabam por perder, de igual maneira, os “pontos turísticos”, porque estão sempre registrando tudo em fotografias que, provavelmente, jamais voltarão a ser vistas.
A figura do Poe apareceu de forma muito espontânea e, pelo menos para mim, está muito presa ao gato preto e ao Fernando Pessoa. Não queria conhecer o Pessoa “em pessoa”. Creio que, para mim, seria trágico, horrível, catastrófico. Nós iríamos brigar muito, muitíssimo – acho, inclusive, que perderíamos as estribeiras -, mas Freud explica e o tempo, também.
Já leu alguma coisa da Adília Lopes? Acho que, se não leu, deveria ler – você vai gostar.
Morei no Porto e por lá as coisas são bem parecidas no que diz respeito aos guindastes. Para mim, o mais estranho é que, às vezes, depois de observar, por alguns minutos, aquelas peças imensas de aço balançando à beira do Douro, tudo parecia integrado, absorvido e uma sensação logo aparecia, uma impressão de que aquele lugar – com aquelas pessoas e aquelas coisas todas -, caminhava para o passado de um futuro possível, como se amanhã, em Portugal, fosse ontem, outra vez. Na sua crônica, a fagulha dessa estranheza se levantou. Obrigado por isso!
(Lucca Tartaglia)
Querida!
Que belo trabalho fotográfico em terras lusas, hein?!Pura flânerie! Os recortes que você fez da cidade são bem pontuais, me deram uma sensação de “velhos conhecidos” apesar de que quando estive em Lisboa (2008) eu ainda não fotografava pelas ruas. Na época, meu estômago comandava o meu olhar…hahahaha Gostei do texto, intimista, bem na linha da psicogeografia do espaço urbano. Nessa relação parece que as suas palavras tocam as imagens 🙂 ou seja, na medida certa entre o olhar e o imaginar.
A fotos das roupas secando nos varais que dão para a rua (praticamente “nela”) me lembraram Istambul e Nápoles (e até mesmo alguns locais suburbanos aqui do Japão), retrato de um universo que desapareceu…
Grande abraço!
Querida!
Que belo trabalho fotográfico em terras lusas, hein?!Pura flânerie! Os recortes que você fez da cidade são bem pontuais, me deram uma sensação de “velhos conhecidos” apesar de que quando estive em Lisboa (2008) eu ainda não fotografava pelas ruas. Na época, meu estômago comandava o meu olhar…hahahaha Gostei do texto, intimista, bem na linha da psicogeografia do espaço urbano. Nessa relação parece que as suas palavras tocam as imagens 🙂 ou seja, na medida certa entre o olhar e o imaginar.
A fotos das roupas secando nos varais que dão para a rua (praticamente “nela”) me lembraram Istambul e Nápoles (e até mesmo alguns locais suburbanos aqui do Japão), retrato de um universo que desapareceu…
Grande abraço!