Benvindo Siqueira é brasileiro, ator, humorista, autor, diretor de teatro, cinema e televisão, opera também como Youtuber tecendo reflexões bem-humoradas sobre política e comportamento; possuindo uma extensa filmografia e trabalhos em novela e teatro, é nascido em 27 de julho de 1947, atualmente está com 72 anos, tendo 54 de carreira.
Iniciou sua atividade no teatro em 1966 no Rio de Janeiro ao lado de Gonzaguinha e Reinaldo Gonzaga com o espetáculo “Joana em Flor”, desde então esteve presente em mais de 50 peças. Criador do moderno Teatro de Rua no Brasil em 1977 em Salvador na Bahia, em 2006 participou do Tecendo Saber, projeto educacional televisivo do Instituto Paulo Freire, interpretando o Seu Celestino. Publicou o livro “Humor, Graça e Comédia” pela Editora Litteris.
Na Rede Globo, fez Tieta e ficou famoso por seu personagem na Escolinha do Professor Raimundo, “Seu Brasilino”. Foi dirigente de entidades profissionais pela defesa dos direitos de artistas. Possui um site na internet com informações sobre sua vida e carreira: https://www.bemvindo.art.br/, além de páginas no Instagran e Facebook.
Siqueira publicou um vídeo no youtube intitulado O Poço e o Fundo do Poço, a mais ou menos três meses, e as impressões de seu relato, que sugiro a todos assistirem (https://youtu.be/TheryTt0mSo), me motivou a escrever estas reflexões.
Instado por sua neta a ver o filme O Poço, película espanhola dirigida por Galder Gaztelu-Urrutia, onde o roteiro utiliza-se de uma prisão dividida em andares com um poço no meio das celas, para escancarar o egoísmo humano em uma evidente divisão de classes, Benvindo relata a sua impressão inicial:
__O filme é fantástico, quem já viu pode dizer, eu não aguentei 15 minutos de filme, era um horror, era um horror, o filme me horrorizou – mostrando por gestos ter acompanhado o filme com as mãos sobre os olhos. Afirma que não teve estômago para continuar, fazendo-o por curiosidade apenas de forma “picotada” nos dias seguintes.
__O filme, – afirma, é o retrato fiel da desigualdade do mundo capitalista. É o retrato fiel do Brasil. O Brasil é o próprio Poço com sua desigualdade social.
Constrói Siqueira uma análise sobre o filme que considera uma alegoria, uma cadeia com centenas de andares e com um poço no centro, onde os sujeitos se encontram encarcerados – dois em cada cela -, numa prisão distópica onde todos pertencem a um nível, não podendo sair.
Pelo poço desce uma bancada com “os melhores banquetes, dispostos no primeiro estamento, no estamento zero, por mais de 50 chefes de cozinha preparando os melhores manjares do mundo” (SIQUEIRA, internet) A bancada desce para o primeiro andar onde os personagens, por três ou quatro minutos, podem comer a vontade e assim sucessivamente de andar em andar.
__Lá pelo 30º andar já não há mais comida suficiente, porque todo mundo já comeu, os andares de cima já comeram o que era para ter comido. Já quase não tem mais nada, o que sobra é uma comida mijada, cagada, cuspida, restos (…) mas mesmo assim as pessoas disputam e comem. Quando chega aos últimos andares já não existe mais nada e as pessoas começam a comer-se umas as outras, “fatiadas”.
__Mas é o perfeito retrato do que o capitalismo faz com os povos do mundo. E é o perfeito retrato da sociedade brasileira. (meu destaque)
A partir deste momento da sua narrativa, Benvindo Siqueira procede a uma comparação da nossa sociedade com a realidade retratada no filme, afirmando que vivemos num poço de desigualdades onde a miséria não tem fim. As imagens construídas pela sua fala forte, incisiva, estabelecida nas relações de exclusão e territoriedades sociais imprime-se na afirmativa de que “é insuportável assistir O Poço, como é insuportável reconhecermos e vermos a miséria do nosso país.” (meu destaque)
É preciso identificar e superar as práticas de exclusão e as ações determinantes da invisibilidade, que se apresentam em nossa cultura social como uma forma de submissão e apagamento dos sujeitos viventes nos “estamentos” inferiores. Um dos caminhos é o da arte nas suas expressões em imagem.
Não há rivalidade entre fotografia e a arte quando da iluminação de realidades humanas conduzidas ao lugar de esquecimento histórico e social. Nas artes de objeções e críticas à pulsão de poder (poder que implica a formatação do poço sem fundo onde a miséria não tem fim), o que importa é trazer ao olhar o que perturba, inquieta, clareia; provocando o “conferir à imagem uma significação que parte dela [permitindo] uma interpretação que excede a imagem, desencadeia palavras, um pensamento, um discurso interior, partindo da imagem que é seu suporte, mas que simultaneamente dela se desprende.” (JOLY. 2009, p. 120)
Nas obras de arte e nas fotografias neste artigo selecionadas o que nos impressiona/aflige são os corpos e sua representatividade. Citando o filme Parasita (*), Siqueira (internet) materializa em sua fala o cheiro do povo, que é o cheiro de seus corpos:
__Quem é de classe média, classe média alta, quem é rico sabe o que é o cheiro do povo, o povo tem cheiro, porque quem mora em um barraco, cinco ou seis pessoas num mesmo cômodo, respirando o mesmo ar, o ar fétido do esgoto, da falta de ventilação, aquele cheiro fica impregnado no corpo, é o cheiro da pobreza. O ditador Presidente General Figueiredo chegou a dizer “prefiro o cheiro de cavalo a o cheiro do povo”.
Os corpos se destacam… depauperados, envelhecidos, mal alimentados, entristecidos e sem esperança; mas não é somente o cheiro, Siqueira (internet) afirma, que igualmente é a visão, o tato, da miséria, “aquela miséria que você se recusa a ver nas palafitas (…) a miséria mais profunda do Brasil, aquela que fede, que da horror, aquela que você não quer ver, aquela que tem casca de ferida no corpo, aquela que as pessoas estão morrendo esqueléticas, animalescas”. São os corpos dos últimos estamentos sociais.
O que menos importa nas expressões imagéticas da miséria é o contexto institucional da produção da obra de arte e da fotografia, mas a conjuntura histórica de sua recepção e a sua função desencadeadora de “fazer as coisas se aproximarem de nós, ou antes, das massas.” (BENJAMIN. 2008, p. 101)
(…) a compreensão da corporiedade humana como fenômeno social e cultural, motivo simbólico, objeto de representações e imaginários. Sugere que as ações que tecem a trama da vida quotidiana, das mais fúteis ou das menos concretas até aquelas que ocorrem na cena pública, envolvem a mediação da corporeidade; fosse tão somente pela atividade perceptiva que o homem desenvolve a cada instante e que lhe permite ver, ouvir, saborear, sentir, tocar e, assim, colocar significações precisas no mundo que o cerca. (BRETON. 2010, p. 7)
Este é o corpo, “vistos e cheirados” nas imagens da miséria humana.
“Nas sociedades heterogêneas, as relações com a corporeidade inscrevem-se no interior das classes e culturas que orientam suas significações e valores;” (BRETON. 2010, p. 81) assim temos o que a sociologia de Bourdieu e Boltanski define como os usos sociais do corpo. As valorizações distintas dos corpos sociais permitem as expressões nas territoriedades sociais do que Benjamim determina como “uma nova forma de miséria [que] surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem.” (BENJAMIN. 2008, p. 115)
Desta forma, a miséria, criatura das relações capitalistas, é o objeto daqueles que
(…) estão nos andares de cima [que] não querem nem saber, acham que tudo lhes é devido, que eles comem o banquete farto porque estão no andar de cima, eles merecem, e assim são as pessoas do andar de cima que pensam que estão fora do poço, não, estão todas no mesmo poço (…) os donos do poço são os banqueiros, os financistas, os investidores, os donos do agronegócio, os especuladores, estes são os donos do poço, estes que preparam o banquete que é servido às classes sociais, até chegar à migalha, até chegar à miséria total, porque o banquete não é suficiente para todos, só para os estamentos superiores. (SIQUEIRA, internet)
Mas como mitigar a pobreza de experiência se o olhar desconhece, foge, diverge dos invisíveis e excluídos, apesar deles possuírem rostos e corpos que os representam? Os homens não desejam novas experiências. “Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de descente possa resultar disso.” (BENJAMIN. 2008, p. 118)
Nada de descente, só corpos e cheiros, no fundo do poço…
Referências:
(*) Parasita é um filme sul-coreano de thriller, drama e comédia, dirigido por Bong Joon-ho. Lançado em 2019, o longa-metragem tem feito um enorme sucesso internacional depois da sua exibição no Festival de Cinema de Cannes, onde venceu a Palma de Ouro. No ano seguinte, Parasita foi o grande vencedor do Oscar 2020, premiado nas categorias de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original e Melhor Filme Estrangeiro. (…) Desde o primeiro frame, Parasita traça um retrato crítico da realidade sul-coreana, chamando atenção para as desigualdades econômicas que dividem aquele país. (…) Em dois polos opostos, as famílias Kim e Park simbolizam dois modos de vida totalmente distintos: uns vivem abaixo do limiar da pobreza e os outros são milionários. Isso se torna visível nas dinâmicas, nos problemas e nos universos mentais dos núcleos familiares. (…) Numa sociedade capitalista que se caracteriza por uma divisão extrema da população, os funcionários observam o cotidiano dos Park e percebem como a vida deles é mais fácil, mais agradável, mais feliz. MARCELO, Carolina. Filme Parasita. Disponível no site < https://www.culturagenial.com/filme-parasita/>. Acesso em jun 2020.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Editora e Livraria Brasiliense. São Paulo/SP, 11ª reimpressão, 2008.
BRETON, David Le. A Sociologia do Corpo. Editora Vozes. Petrópolis/RJ, 4ª Edição, 2006.
JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. Papirus Editora. Campinas/SP, 13ª Edição, 2009.
SIQUEIRA, Benvindo. O Poço e o Fundo do Poço. Disponível: https://youtu.be/TheryTt0mSo. Acesso em jun. 2020.
Excelente perspectiva acerca da obra,existe uma agressividade que quando estampada de forma tão pura nos choca e quando refletida nos mostra que essa é realidade dos tempos atuais. Somos confrontados com nossa realidade sob uma ótica menos romantizada e nessa plasticidade violenta somos confrontadores a repensar privilégios e miserabilidade.
Obrigada Lais, excelente sua reflexão sobre o tema. Aproveite toda a revista. são ótimos artigos
Gostei muito, realmente é uma realidade no nosso Brasil. Como os de cima não vêem os de baixo, pouco se importam, é a chamada indiferença, ” não estou nem aí” . Somente os que se deducam ao altruísmo são capazes de ver e fazer alguma coisa. Ainda bem que existe esses altruístas. Geralmente são pessoas do bem. Abraços meu amigo.
Obrigado amigo, aproveite toda a revista, são ótimos artigos
Excelente artigo!!!
Texto muito interessante que relata sobre a triste realidade do brasileiro que sofre por causa da desigualdade social.
Um tema muito importante que sempre deve ser discutido e aprofundado.
Obrigado Bianca, esta é infelizmente uma realidade quase q institucionalizada. Leia também os outros artigos desta Revista, são excelentes!
Excelente artigo que nos leva a uma profunda reflexão sobre a realidade pura e verdadeira e que todos nós acabamos por ignorar. Senti como um soco no estômago, uma facada na barriga. O mesmo sentimento de quando assisti o filme em questão (O Poço). Por mais que uma parcela da sociedade já se posicione e se mobilize em prol de uma igualdade de condições, a disparidade social é gritante, e muitos dos que estão na extremidade inferior ainda são ‘comidos’ pelos que estão na superior.
Artes como as listadas no artigo, escancaram essa realidade que se tornaram banais, nos sacodem de nossa zona de conforto e nos dão um autêntico choque de realidade.
Amei!
Obrigado Kátia por suas palavras.
Excelente texto. Particularmente ainda não tive coragem de assistir ao filme, apesar de vê-lo de outra forma diariamente. É uma análise necessária, ainda mais no momento que vivemos. Há salvação, como diversas outras vezes houve, mas precisamos aproveitar o momento para refletir e progredir enquanto sociedade
Obrigado Igor pelas palavras, aproveite para apreciar outros artigos desta revista, verá que existem pessoas q pensam neste país, e que não estão presos a hipocrisia dos seus mundinhos.
O filme “O Poço”, realmente, tem muito a nos ensinar!!! Por vezes, é difícil encarar os fatos que nos rodeiam e é mais fácil nos abster de uma posição mais firme. O texto nos aproxima dessa dura realidade de maneira suave e palatável, mostrando que é possível nos posicionarmos com firmeza, mas de forma também benévola.
Obrigado Michele pelas palavras, aproveite para apreciar outros artigos desta revista, verá que existem pessoas q pensam neste país, e que não estão presos a hipocrisia dos seus mundinhos.