Em parceria com a Pedagoga Profª Marcia Lacerda Sarmento Lopes
Estas reflexões serão divididas em três momentos:
1 – O Silêncio na historiografia.
2 – Mulheres e Educação: Uma história a ser contada.
3 – O magistério como espaço de inserção da mulher na esfera pública.
1. O Silêncio na historiografia.
Durante a instrução a mulher conserve o silêncio, com toda submissão. Eu não permito que a mulher ensine, ou domine o homem. Que ela conserve, pois, o silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida (pelo demônio em forma de serpente), caiu em transgressão. Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que, com modéstia, permaneça na fé, no amor e na santidade. (PAULO, o Apóstolo. I Epístola a Timóteo 2, v. 8-15)
A identidade social “concedida” as mulheres pelo Apóstolo Paulo, estabelece o silêncio e a submissão como posição do feminino na vida de relação, mandamento repetido por séculos pelas religiões, pelos manuais de comportamento e sistemas políticos e sociais. Historicamente a mulher é apresentada como sujeito coadjuvante em relação ao homem, sendo este fato uma construção social formatada por fatores biológicos, psíquicos, sociais e culturais.
Michelle Perrot, professora emérita de História Contemporânea na Universidade de Paris VII – Denis Diderot, pesquisando a história das mulheres, apresenta em seu livro As mulheres ou os silêncios da história os mais amplos olhares sobre o sujeito feminino ao empenhar-se, fundamentada em mais de trinta anos de estudos, em fazer emergir um relato histórico que destaque o papel atuante das mulheres como atrizes e agentes sociais de sua própria história.
Apesar dos avanços da historiografia moderna
subsistem, (…) muitas zonas mudas e, no que se refere ao passado, um oceano de silêncio, ligado à partilha desigual dos traços, da memória e, ainda mais, da História, este relato que, por muito tempo, “esqueceu” as mulheres, como se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução, inenarrável, elas estivessem fora do tempo, ou ao menos fora do acontecimento. (PERROT, 2005, p.9)
Durante largo período, as mulheres foram objeto de uma historiografia que as sentenciou ao silêncio e à invisibilidade, ficando a margem dos principais acontecimentos. O único som que ecoava era da voz masculina. A construção da história das mulheres percorre caminhos difíceis no objetivo de se registrar “seus passos”. A invisibilidade identificada nas pesquisas históricas relaciona-se, notadamente durante o período dos séculos XVII ao segundo quarto do XIX, aos traços da vida privada na qual, sua existência, não era considerada algo que valesse registrar, seja da mulher operária ou da mulher burguesa.
É importante anotar que esta invisibilidade apresenta-se como uma condição imposta pela posição do homem na vida social e do poder concedidos aqueles que percorreram boa parte do século XX escrevendo a história da sociedade ocidental.
Dentre todas as razões apresentadas para a invisibilidade histórica das mulheres, a autora [Michelle Perrot] destaca que o silêncio mais profundo é o silêncio do relato, pois se faz dominado pelo exclusivismo político, econômico e social masculino, no qual a história produzida é a história das rainhas e heroínas ou a história das mulheres imaginadas e idealizadas pelos homens. (AVILLA, 2014)
Ainda é preciso considerar a carência de traços, de fontes históricas, o que contribui para esta opacidade na escrita da história das mulheres. “Este defeito de registro primário é agravado por um déficit de conservação dos traços (…) a matéria que constitui as fontes integra a desigualdade sexual e a marginalização ou desvalorização das atividades femininas”. (PERROT, 2005, p. 12)
Os registros escritos apresentam-se como umas das fontes que permitem ao pesquisador da atualidade ampliar conhecimentos quanto à vida social das mulheres – suas atitudes, emoções e pensamentos, e o espaço privado ao qual estavam limitadas. Mas estes testemunhos serviram em muitos momentos para tornarem-se lembranças (construindo uma memória) e depois, para esquecer.
Como secretárias da família, as mulheres foram as grandes produtoras de arquivos privados. Nos livros de anotações elas registravam de uma maneira concisa a história familiar. As correspondências trocadas com irmãs, primas, tias, amigas íntimas, também eram uma forma de anotar suas experiências, porém, algumas destas cartas que permaneceram nos arquivos continham solicitações para que após a leitura se queimassem as amadas missivas. Acreditavam que se seus herdeiros, as gerações futuras, não tivessem acesso a suas confidências, elas não seriam julgadas ou mal interpretadas. Assumiram assim, um silêncio cúmplice, providenciando a destruição dos arquivos antes do final de uma vida; apagando os vestígios de suas histórias, pois…
o silêncio era ao mesmo tempo disciplina do mundo, das famílias e dos corpos, regra política, social, familiar – as paredes da casa abafam os gritos das mulheres e das crianças agredidas -,e pessoal. Uma mulher conveniente não se queixa, não faz confidências, exceto, para as católicas, a seu confessor, não se entrega. O pudor é sua virtude, o silêncio, sua honra, a ponto de se tornar uma segunda natureza. A impossibilidade de falar de si mesma acaba por abolir o seu próprio ser, ou ao menos, o que se pode saber dele. (PERROT, 2005, p. 10)
A mulher se cala pela própria imposição social do silêncio, não há escolha, “por pudor, mas também por autodesvalorização, elas interiorizavam, de certa forma, o silêncio que as envolvia” (PERROT, 2005, p. 13). E quando o silêncio é quebrado pela escrita este se faz apenas pelas privilegiadas da cultura.
As obras de arte do período relacionado contribuem para a construção desta imagem que silencia a mulher no seu espaço de manifestação: a vida privada.
Na pintura de Belmiro de Almeida, por exemplo, é possível encontrar os elementos indicadores desta realidade: o espaço privado, a posição do corpo inferior ao do homem, o rosto escondido pelo silêncio ou o pranto, a rosa (elemento de representação de um sentimento feminino de relação) despedaçada no chão, e principalmente, a indiferença do homem com relação ao que acontece com a mulher.
As experiências vivenciadas pelas mulheres do século XIX, além das obras de arte e das fotografias, foram registradas praticamente nas relações e nos objetos do cotidiano de expressão do privado familiar. Presentes recebidos em um aniversário ou mesmo pequenas lembranças trazidas das viagens por seus amados, objetos herdados de sua infância, pequenos museus de memórias femininas, verdadeiros lugares de lembranças onde guardavam seus pensamentos. Um universo constituído de representações da sua condição de ser materno e familiar: a casa, o jardim, a doçura das coisas, os enfeites, a fragilidade e a submissão.
Entre estes objetos a roupa branca tinha seu destaque, pois pertencia à esfera do íntimo, confissão da sua condição, as outras vestes, a esfera pública. Elas estão ligadas ás aparências na qual o cuidado é um grande dever das mulheres, sobretudo as da burguesia.
Desta maneira suas histórias também foram contadas de forma subliminar sem o registro de escrita, afirma Perrot, mas incutido em suas roupas e objetos de uso pessoal, ou seja, inscrevem-se as circunstâncias de sua vida através dos vestidos que elas usavam: seus amores na cor de uma echarpe ou simplesmente na forma de um chapéu. Uma luva, um lenço, era para essas mulheres relíquias de que só elas tinham condição de perceber o valor. O tempo dos acontecimentos era contado, lembrado pelas roupas que outrora vestiam. “A memória das mulheres é vestida. A roupa era sua segunda pele, talvez a única de que se ousa falar ou ao menos sonhar”. (PERROT, 2005, p. 39)
O escrito sobre a imagem 4, uma fotografia encenada, proporciona a possibilidade de percebermos o quanto a representação da fragilidade da saúde e emocional da mulher (assim a sua posição menor em relação ao homem) está presente no imaginário social da época.
Para o público vitoriano, a imagem evocava não só a inquietante realidade da doença como também o romantismo associado a ela, que era relacionada à criatividade artística e a amores não correspondidos. Robison inclusive apresentou um estudo da figura central desta fotografia intitulado “Ela nunca revelou seu amor”. Embora alguns considerassem perturbador ver uma cena tão íntima e mórbida representada em uma mídia tão realista quanto a fotografia, os espectadores da época compreendiam que Robison havia fotografado uma modelo representando um papel, não uma jovem moribunda de fato.(2012)
A mesma representação vamos encontrar no painel de James Jacque Joseph Tissot, na imagem 3, onde vemos uma jovem desmaiada (morta) no chão, e próximo a ela, um caderno de anotações ou diário.
Num outro momento as fotografias consentiram “que se conservasse o rosto amado (…) fotografias individuais ou de família, emolduradas ou reunidas em álbuns, estes herbários da lembrança, alimentam uma nostalgia indefinidamente enfraquecida.” (PERROT, 2005, p. 37) Memórias guardadas, formando os museus de vidas femininas, construídos na paixão pelas coisas, permitindo que algo de suas existências fosse retirado dos lugares de esquecimento.
Assim, os modos de registro das mulheres estão ligados à sua condição, a sua fragilidade, ao seu lugar na família e na sociedade (…) é uma memória do privado, voltada para a família e para o íntimo, aos quais elas estão de certa forma relegadas por convenção, [cumplicidade] (meu destaque) e posição. (PERROT, 2005, p. 10)
A quantidade e a natureza das fontes representativas da vida das mulheres vieram se alterando ao longo do tempo histórico; assim, a escrita, os objetos, os discursos e ações fizeram retroceder o silêncio permitindo a construção de uma historiografia da mulher.
É o olhar do historiador em seu tempo histórico que constrói a escrita da história. Simone de Beauvoir, citada por Perrot, afirmou que “toda a história das mulheres foi feita pelos homens” (PERROT, 2005, p. 14). Esta historiografia do silêncio tem a sua base no nascedouro da constituição da história como ciência no século XIX, entregue as “mãos” de universitários, tendo no seu conteúdo acadêmico a preocupação com as pesquisas de uma história positivista pública e política, espaço onde as mulheres permaneciam ausentes.
As transformações ocorridas no campo de pesquisas da História iniciadas no final da década de 20 do século passado (Escola dos Annales na França) possibilitaram, na década de 50, através, principalmente, dos estudos das “culturas familiares e do cotidiano”, mais atenção ao silêncio na historiografia sobre as mulheres, como visto nas obras de Georges Duby.
A leitura realizada sobre este tema pela História da Educação, campo de pesquisa da História Cultural, sob a perspectiva do gênero, se tornou no Brasil, mais frequente a partir da década de 70, seguindo uma tendência da Historiografia Francesa. Os grupos de estudos no meio acadêmico brasileiro passaram a pesquisar questões sobre a mulher ou a refletir sobre as relações homem/mulher em nossa sociedade.
Louro (1994) afirma que alguns núcleos iniciados nessa época foram criados nas universidades brasileiras, sendo uns vinculados a uma área específica e outros possuindo um caráter interdisciplinar. As pesquisas e estudos realizados, que por um longo tempo tiveram um caráter mais descritivo e até mesmo denunciador, recentemente caminharam para um campo de formatação teórica, a partir da descrição e da análise, propondo novos paradigmas; especialmente nos últimos anos, passam a apresentar algumas questões conceituais sobre uma dupla denominação: “estudos da mulher” ou “estudos de gênero”.
Quanto a essas abordagens a Prof.ª Dr.ª Guacira Lopes Louro relaciona em artigo publicado no início da década de 90, que
algumas estudiosas preferem a primeira denominação por acreditarem que deixa explícito de quem se quer tratar e chama a atenção para um sujeito/objeto de estudos tradicionalmente escondido ou negado numa ciência androcêntrica; outras estudiosas preferem o conceito de gênero, já que este significa “a construção social e histórica dos sexos”, ou seja, pretendem, ao utilizar esse conceito, enfatizar o caráter social – e ao mesmo tempo relacional – dos dois sexos (portanto nessa abordagem supõe-se que os estudos se dediquem à construção do feminino e do masculino)”. (LOURO, 1994)
Entendemos que ao concentrar nossas pesquisas nos estudos teóricos nas obras de Michelle Perrot e Jane Soares de Almeida, além de outros autores através dos artigos analisados, percorremos pelos dois enfoques conceituais.
Perrot (2005) concentra parte de suas reflexões na história das mulheres operárias francesas do final do século XIX. Na seqüência desta publicação, estaremos nos concentrando nos caminhos da educação percorridos pelas mulheres brasileiras do final do século XIX e início do XX, tendo como principal referência à obra de Jane S. de Almeida. As primeiras mulheres, as pioneiras da profissão de educadoras que desafiaram estruturas de desigualdade social, que resistiram e acataram normatizações que as confinavam e oprimiam, mas que também deram os primeiros passos na tentativa de conseguir algo mais do que aquilo que lhes concedia o poder masculino.
Retirar do lugar de esquecimento essa presença das brumas do passado e dar-lhes perpetuação por meio da obra escrita são funções do historiador e principalmente do educador. Defender ideias e pontos de vistas divergentes, demolir parâmetros ao escolher a experiência vivida como foco de análise, promover rupturas nos valores dados como permanentes, expor-se e aceitar os riscos e as críticas fazem parte do ofício de se realizar a pesquisa histórica, o que também é um ato de coragem e, por que não, de paixão.
O caminho da educação não foi apenas resultado de uma concessão masculina, e nem ocorreu sem estar impregnado de preconceitos ligados ao sexo, significou na verdade, a oportunidade entrevista pelas jovens da época de conseguir maior liberdade e autonomia, num mundo que se transformava e no qual queriam ocupar um espaço que não fosse apenas aquele que lhes foi reservado pela sociedade masculina, representado pela vida no lar e a inteira dedicação à família.
Durante muito tempo a profissão de professora foi praticamente a única em que as mulheres puderam ter o direito de exercer um trabalho digno e conseguir uma inserção no espaço público, dado que os demais campos profissionais lhes foram vedados.
Existem muitas histórias a serem descobertas e outras revisitadas, histórias que se apresentam em fotografias e artes.
Uma história que faz parte do universo feminino, não se conta com um tipo de som ou de uma voz apenas e muito menos sobre um único olhar em uma mesma direção por séculos e séculos. Existem vários personagens, protagonistas, atores em cada ação, existem uma diversidade de sons, olhares, e sujeitos de suas histórias.
Referências:
ÁVILA, Rebeca Contrera. Resenha do Livro Minha História das Mulheres de Michelle Perrot, Disponível no site:<file:///C:Users/Particular/Downloads/248-825-1PB%20(1).pdf> Acesso em nov. 2014.
LOURO, Guacira Lopes. Uma Leitura da História da Educação sob a Perspectiva do Gênero. Disponível no site: < https://revistas.pucsp.br/revph/article/view/11412/8317 > Acesso em jan. 2015.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Introdução. EDUSC, Bauru/SP, 2005.
HACKING, Juliet e CAMPANY, David. Tudo sobre Fotografia. GMT Editores Ltda. Rio de Janeiro/RJ, 2012.
Excelente, muito bem escrito!
Obrigado Jussara, esta é uma revista de excelência em educação, cultura, arte e humanidades, aproveite.