O TOTALITARISMO NA LITERATURA ORWELLIANA: FICÇÃO E FUTURO DISTÓPICO

NICOLE RODRIGUES LUIZ RIBEIRO

Licenciada em História pelo Departamento de História do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional .   Cursando Pedagogia na Universidade Estácio de Sá (como 2ª licenciatura).

Experiências acadêmicas:

1, Bolsista de desenvolvimento acadêmico

Projeto: pesquisa nas redes sociais sobre movimentos de extrema direita, autoritarismo e neofascismos no brasil contemporâneo. 05/2016 a 06/2017

Orientadora: Dra. Natalia dos Reis Cruz

2. Bolsista de desenvolvimento acadêmico

Projeto: organização de documentação do grupo de estudos e pesquisas de geografia histórica. 10/ 2017 a 05/2018

Orientador: Dr. Marcelo Werner

Tutoria em história no coletivo vem  (vida educação e movimento) – 2020.

 

O TOTALITARISMO NA LITERATURA ORWELLIANA: FICÇÃO E FUTURO DISTÓPICO

Nicole Rodrigues L Ribeiro

Sobre 1984, a obra em questão:

A obra literária 1984 de George Orwell (1903-1950), pseudônimo de Eric Arthur Blair, escritor e jornalista inglês, que era contra qualquer regime autoritário independente da ideologia que os cercassem.  Famoso por suas obras: A revolução dos bichos1984 que foram transformados em filmes e desfrutaram de uma enorme popularidade ao longo dos anos e ainda continua sendo sucesso. Desde que Donald Trump tomou posse da presidência dos Estados Unidos, o livro 1984 se tornou líder de vendas.[i] O livro além de possuir elementos direcionados a sociedade atual, ganhou destaque por ter sido inspiração para o reality show “Big Brother” [ii], cujo nome se refere à entidade, o líder do Partido que sempre está de olho em tudo que os indivíduos fazem.

O livro foi escrito em 1948, o nome da obra é os dois últimos números invertidos, seria uma maneira de ressaltar que a obra ficcional, não estava muito distante de adquirir características reais a se concretizarem na sociedade. Esta obra foi interpretada de diferentes formas, uma delas se refere a uma crítica ao comunismo de Stalin, outros interpretam como uma crítica ao nazismo. Independente das interpretações, esta ficção que em muito se assemelha a realidade, descreve as formas de dominação de um determinado grupo dominante, no caso, o Partido, dentre elas se encontram a: vigilância exacerbada, a manipulação da História e de notícias falsas e a total alienação dos indivíduos, sobretudo é uma obra que nos alerta sobre qualquer tipo de totalitarismo.

Apesar de brutal e ditatorial, o sistema soviético não era “totalitário”, um termo que se tornou popular entre os críticos do comunismo após a Segunda Guerra Mundial, tendo sido inventado na década de 1920 pelo fascismo italiano para descrever seu próprio projeto. Até então fora usado quase exclusivamente para criticá-lo e ao nacional-socialismo alemão. Representava um sistema centralizado abarcando tudo, que não apenas impunha total controle físico sobre sua população como, por meio do monopólio da propaganda e da educação, conseguia de fato fazer com que o povo internalizasse seus valores.[iii]

O decorrer da ficção se passa em o que seria uma antiga Londres, denominada de Oceânia, controlada pelo Partido que possui como líder o “Grande irmão” o qual seria a representação do Estado totalitário, cujo indivíduo ninguém nunca viu, apenas seu rosto pendurado em todos os cantos com o seguinte slogan: “O grande Irmão está de olho em você”. O Partido que possui como lema: “Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força” é composto por indivíduos de alto escalão e os de médio escalão que seriam aqueles que trabalham para o Partido.

O personagem principal da trama Winston, é um homem solitário que no decorrer da obra, demonstra descontentamento com o Partido. Ele conhece Júlia, uma jovem que se mostra não se importar muito com o regime que impede os indivíduos de se relacionarem com afeto, eles se apaixonam e vivem um caso, porém como nada fica longe dos olhos do grande irmão, são pegos pelo Partido.  Um membro do Partido chamado O’Brien, despertava a curiosidade e a confiança de Winston, ao longo da narrativa, os dois se tornam amigos, porém mais tarde, O’Brien se revela como um autoritário, quando Winston é levado pela polícia das Ideias ao cometer o crime de se relacionar com Júlia e tramar contra o Partido, O’Brien se torna seu torturador.

Outra figura de destaque é o personagem Emmanuel Goldstein, o traidor, o primeiro a questionar a “pureza” do Partido, ninguém sabia seu paradeiro. “Goldstein atacava o Grande Irmão, denunciava a ditadura do Partido, exigia  a imediata celebração da paz com a Eurásia, defendia a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, a liberdade de pensamento, gritava histericamente que a revolução fora traída…” O partido cria um inimigo, cria uma organização contra o partido que nao existe. Apenas serve pra fazer com que possíveis rebeldes desapareçam.[iv]

As prisões das pessoas que se rebelavam contra o partido era finalizada com seu apagamento. As pessoas desapareciam, sem registros, sem passar por julgamentos. “seus nomes eram removidos dos arquivos, todas as menções a qualquer coisa que tivessem feito eram apagadas, suas existências anteriores eram negadas e em  seguida esquecidas. Você era cancelado, aniquilado, vaporizado, esse o termo costumeiro.[v]

O termo usual para as pessoas removidas era “despessoa”, elas deixavam de ser pessoas, havia um apagamento de sua humanidade, principalmente no que diz respeito as torturas que sofriam, pois o intuito do Partido era de diminuí-las ao máximo, coisificar qualquer vestígio de humanidade, tornar os indivíduos completamente dependentes do Partido. Quando Winston é torturado, ele mal conseguia ficar em pé, além de torturas físicas, havia torturas psicológicas. Estas O’Brien participava com afinco. Ele induzia Winston a acreditar em suas palavras.[vi]

Diálogo entre Winston e O’Brien:

“lembra-se, continuou ele, “de ter escrito em seu diário: “liberdade é a liberdade de dizer que dois  mais dois são quatro’?”

“Lembro”, disse Winston.

O’brien levantou a mão esquerda e mostrou seu dorso para Winston, com o polegar escondido e os outros quatro dedos estendidos.

“Quantos dedos tem aqui, Winston?”

“Quatro.”

“E se o Partido disser que não são quatro, mas cinco – quantos dedos serão?”

“Quatro”

“Você aprende devagar, Winston”, disse O’Brien gentilmente.

“O que posso fazer?” respondeu Winston entre lágrimas. “Como posso deixar de ver o que tenho diante dos olhos? Dois e dois são quatro.”

“Ás vezes, Winston. Ás vezes são três. Ás vezes são todas essas coisas ao mesmo tempo. Precisa se esforçar mais. Não é fácil adquirir equilíbrio mental.”[vii]

A falta de esperança em relação ao futuro da humanidade é um grande contraste em relação a fé no progresso, a fé de que os homens são capazes de criar uma sociedade justa e de paz. A narrativa põe em questão como e até que ponto a natureza humana pode sofrer modificações. A obra de Orwell, assim como outras obras distópicas acabam dizendo mais sobre nosso próprio tempo do que sobre um tempo longínquo e ainda levanta a questão de como nosso domínio do passado é incerto.

O TOTALITARISMO PARA KARL POPPER E SLAVOJ  ZIZEK E O PODER DISCIPLINAR EM FOUCAULT RELACIONADOS COM A OBRA LITERÁRIA “1984”

Segundo o filósofo Karl Popper, o totalitarismo como chamamos hoje, já existiu em outras tradições, porém sem esta denominação. “E sugere que aquilo que damos o nome de totalitarismo pertence a uma tradição que é tão antiga ou tão nova, como a nossa própria civilização.”[viii] Em seu livro, o autor analisa “A república” do filósofo Platão, ele defende a tese de que as ideias descritas no diálogo de Platão são totalitárias e anti-humanitárias.[ix] Analisando seus elementos e conceitos defendidos pelo mesmo. Popper ainda disserta sobre os historicismos que possuem como dogma o futuro e suas implicações.

Vezes demais ouvimos a sugestão de que certa forma ou outra de totalitarismo é inevitável. Muitos que deviam ser responsabilizados pelo que dizem, em vista de sua inteligência e experiência, anunciam que não há meio de fugir a isso. Perguntam-nos se somos realmente bastante ingênuos para acreditar que a democracia possa ser permanente; se não vemos que ela é apenas uma das muitas formas de governo que vem e vão no decurso da história. Argumentam que a democracia, a fim de combater o totalitarismo, é forçada a copiar-lhe os métodos, tornando-se assim também totalitária.[x]

Segundo o autor algumas crenças historicistas de que o futuro e suas profecias podem ser conhecidas através dos estudos das ciências humanas e sociais, permite com que aqueles indivíduos que sentem vontade de combater o totalitarismo fiquem desencorajados, pois os profetas dizem que é algo inevitável, que ao longo do percurso da humanidade sempre aconteceu algo parecido. “Se soubermos que as coisas estão para acontecer, não importa o que façamos, então poderemos nos sentirmos livres para desistir de lutar contra elas.”[xi]

Para Popper, o programa político descrito em A República de Platão é moralmente superior ao totalitarismo, porém possui muitas semelhanças com ele. O programa possui elementos totalitários, pois o filósofo descreve uma maneira idealizada de sociedade onde a divisão de classes é muito clara, com regras rígidas, com militarismo orquestrado pela classe dominante, censuras intelectuais para a classe mais baixa e propaganda contínua com o intuito de moldar suas mentes. Inovações na área educacional, na legislação ou religião devem ser evitadas. O estado deveria ser autossuficiente, sem depender de seus comerciantes, uma autarquia econômica seria o ideal.[xii]

A narrativa presente em “1984” é composta também pela divisão de classes, com o alto escalão que seria o Partido como figura principal o “Grande Irmão”, os membros do Partido que são as pessoas que trabalham para ele, o que seriam uma espécie de funcionários públicos e a população denominada de “proletas”. Todos eram subordinados ao primeiro, ao Partido. Esta classe possuía o monopólio da Polícia das ideias. A censura e a propaganda eram elementos usados para frear a liberdade dos indivíduos.

O poder politico jamais dispensou auxílios para manutenção de suas formas de controle, vale ressaltar a prerrogativa “quem vigia os vigilantes? – a frase em questão é referente ao latim (Quis custodiet ipsos custodes?), proverbio citado pelo poeta Juvenal, pois para evitar indivíduos que sejam contra as ideias do estado é necessário um grupo para a manutenção do status quo. A quem ficará atribuído ao cargo de vigiar a propriedade? Quem executará aqueles denominados de subversivos? Nenhum governante governa majoritariamente sozinho. Por conseguinte, são necessárias outras forças para legitimar e fortalecer o controle do estado, concomitantemente o poder se torna fracionado, disposto em ramificações.

O poder para Foucault molda os indivíduos tornando os ao mesmo tempo objetos e instrumentos, sobretudo o poder disciplinar, que se caracteriza pelo adestramento. “O poder disciplinar é com efeito um poder que, em
vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida
adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor.”[xiii]. O êxito deste poder se deve a normas simples como o olhar hierárquico, sanção normalizadora e o exame.

Foucault cita o panóptico de Bentham, o qual seria classificado como uma torre de vigilância localizada no centro, uma construção em anel, dividida em celas. Bastando apenas um único vigilante na torre, o efeito de contraluz nas janelas possibilitaria a visualização de cada silhueta dentro de cada cela. Os indivíduos presos não veriam quem estaria os vigiando, porém a sensação de que algo ou alguém estaria os observando, causaria uma sensação de intimidação.[xiv] O efeito do panóptico é de causar no detento a consciência de que estão sendo vigiados, assegurando assim, o funcionamento pleno do poder. O mecanismo do panóptico pode ser usado ainda como um instrumento de experiências:

..criar diversas crianças em diversos sistemas de pensamento, fazer
alguns acreditarem que dois e dois não são quatro e que a lua é um queijo, depois juntá-los todos quando tivessem vinte ou vinte e cinco anos; haveria então discussões que valeriam bem os sermões ou as conferências para as quais se gasta tanto dinheiro.[xv]

O panóptico põe em funcionamento o poder que os indivíduos exercem uns sobre os outros.[xvi] O poder do panóptico moderno é descomunal e muito eficiente como instrumento de dominação. A época atual com suas tecnologias de controle sanciona o controle do comportamento do outro. Suas técnicas de controle se difundiram a níveis reduzidos e extensos. As câmeras de filmagens existem em praticamente todos os lugares, como forma de segurança imposta a nível global. A respeito disso, desta segurança que lhes são conferidas pelo poder político, os indivíduos suplicam e aceitam este poder que os inspecionam e comandam. A fixação por segurança torna este poder contemporâneo eficiente e delimitador dos desejos dos indivíduos.

A outra face deste poder é mais minucioso e discreto, ele controla os indivíduos de forma que estes mesmos o enxerguem de maneira natural, mais brando, e aceito. As redes sociais, o compartilhamento de fotos, do que se está fazendo, que coloca em evidência o individuo acaba criando dependência, tornando o controle através da internet uma maneira disfarçada de vigilância, irrompendo parte das individualidades e conciliando as relações sociais. Este regime de visibilidade coloca os cidadãos expostos a fiscalização tanto do poder político quanto de terceiros, sejam estes próximos ou não, transformando todos em suspeitos.

O progresso dos mecanismos de disciplina se deu ao longo dos séculos XVIII e XIX. O espaço da disciplina é fechado, o tempo é controlado, perduravelmente fiscalizados e vigiados. A disciplina possibilita que o poder desempenhe de maneira harmônica a aparelhagem do sistema de produção – lucro. A liberdade efetiva política de modo simultâneo é a escravidão dos sujeitos.

Para Slavoj, a sociedade tem muita necessidade pelo olhar do outro, em ser observado: “”existo apenas na medida em que sou visto o tempo todo?”… é a reversão tragicômica da ideia benthamiana – orwelliana de sociedade panóptica, na qual somos (potencialmente) “observados o tempo todo”, e não temos lugar nenhum para nos esconder do olhar onipresente do Poder.”[xvii] A necessidade de ser exposto cria dependência do olhar do outro, olhar da câmera como garantia de existência.

 A FICÇÃO DISTÓPICA E AS TEMPORALIDADES

Kosseleck utiliza-se de duas categorias históricas “espaço de experiência” e “horizonte de expectativas” que podem ser entendidas como espaço e tempo. Ele nos mostra a ligação da temporalidade, o passado e o futuro estão interligados, a esperança e a recordação moldam a humanidade através da experiência e da expectativa.

A esperança e a recordação para assim dizer, expectativa e experiência são características da história e de sua sapiência, elaborando o relacionamento entre passado e futuro, a atualidade e o porvir.  Esse matrimônio entre o antigo e o futuro engendram a história a partir da experiência e da reminiscência. “Com isso chego à minha tese: experiência e expectativa são duas categorias adequadas para nos ocuparmos com o tempo histórico, pois elas entrelaçam passado e futuro.”[xviii]

A imprecisão do tempo sentida pelo personagem Winston em “1984” ao escrever em seu diário, o deixa desamparado. Ele escrevia para o futuro. Possuía um sentimento de dúvida em relação ao porvir. “Ou bem o futuro seria semelhante ao presente e não daria ouvidos ao que ele queria lhe dizer, ou bem seria diferente e sua iniciativa não faria sentido.”[xix] O passado e sua mutabilidade, faziam com que Winston se sentisse perdido. “O passado estava morto, o futuro era inimaginável. Que certeza podia ter de que naquele momento uma criatura humana, uma que fosse, estivesse do lado dele? E como saber se o domínio do Partido não seria para sempre?…”[xx]

Ao futuro ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros, em que não vivam sós — a um tempo em que a verdade exista e em que o que for feito não possa ser desfeito: Da era da uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensamento — saudações![xxi]

O Partido controlava o passado. Se eles dissessem que determinado fato ocorreu, todos acreditariam. “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado.” a mentira se tornava história, virava verdade.[xxii] Os registros do passado eram destruídos, o que restara estava na memória. “Nunca havia a menor prova de nada”.[xxiii]  Os fatos históricos eram falsificados. Os documentos que precisavam ser destruídos eram jogados nos buracos da memória. Assim, todo e qualquer resquício de fontes eram aniquilados em segundos.[xxiv]

A mentira e o erro presentes nas fontes, a manipulação dos documentos, os acréscimos ou a retirada das narrativas, os detalhes inventados, são constituídos, sobretudo, por interesses. Estes por assim dizer, de determinados grupos.[xxv] As falsificações nos documentos nos contam determinadas verdades. Como por exemplo, as vitórias de determinados grupos e a diminuição de outros nos levam ao questionamento: a diminuição de determinados povos e sua cultura interessa a quais grupos? A Omissão de certos fatos favorece a quem no percurso da história?

As expectativas podem ser reformuladas, as experiências apenas recolhidas. A expectativa a cerca do futuro pode ser carregada de esperança ou de labor, mas ambas refletem na consciência, com isso, a expectativa pode ser objeto de experiência. Como determinada experiência ruim a qual determinado sujeito ou sociedade passou, pode-se servir como lição, para que o mesmo evite que sua expectativa, seu porvir se torne semelhante, digo isto, pois os acontecimentos futuros não podem se tornar iguais, apenas podem possuir semelhanças com o passado, pois os fatores, os personagens não são os mesmos, e cada acontecimento possui suas subjetividades. As experiências revelam situações desastrosas como os campos de concentração, a guerra nuclear, a escravidão dos povos africanos, são resultados que a humanidade jamais devesse apagar de suas memórias e de seus horizontes de expectativas.

O que é, com efeito, o presente? No infinito da duração, um ponto minúsculo e que foge incessantemente; um instante que mal nasce morre. Mal falei, mal agi e minhas palavras e meus atos naufragam no reino de Memória. São palavras, ao mesmo tempo banais e profundas, do jovem Goethe: não existe presente, apenas um devir…[xxvi]

HISTÓRIA E LITERATURA FICCIONAL

O campo do imaginário na literatura é constituído por espaços, temporalidades, personagens e se concretiza como identificação do real, a sensibilidade da realidade explicada de forma dinâmica.[xxvii] A história e literatura possuem como semelhança a descrição do real, se renovando no tempo e no espaço, mas a história possui o compromisso não de trazer verdades sólidas, mas procurar reconstruir, analisar, compreender criticamente, chegar a uma semelhança, diferentes versões de como possa ter sido os acontecimentos ao longo do tempo.  A literatura não possui um compromisso com a veracidade dos fatos, ela possui uma espécie de “licença poética”. Isso não significa dizer que a história não se encarrega de nos trazer uma parte de poesia. Como bem citou Bloch; “Resguardemo-nos de retirar de nossa ciência sua parte de poesia. Resguardemo-nos sobretudo,… de enrubescer por isso.”[xxviii] Se algo é composto por sensibilidade não significa dizer que não possa satisfazer a inteligência.

A História é e sempre foi um campo de disputas políticas. Ao longo da formação da sociedade, ela era contada pelos vencedores, por grupos privilegiados em sua maioria: homens brancos europeus burgueses. Autores como E.P Thompson (1924-1993), nos trouxe a história vista de baixo, ele buscou compreendê-la pela cultura popular. Este ramo da historiografia buscou ressaltar a importância dos indivíduos silenciados como negros, mulheres e pobres. A partir dessa análise de baixo pra cima, esses indivíduos podem se ver como agentes ativos e transformadores da história. A partir desse viés, podemos levantar questões críticas atuais como por exemplo: Por que o racismo ainda é tão presente no nosso país mesmo este sendo considerado uma nação miscigenada? Ou por que a homofobia, a xenofobia e o machismo são tão intrínsecos em nossa sociedade contemporânea?

A ficção científica começou como gênero literário, porém atualmente integra outros gêneros, como o cinematográfico e o universo dos jogos. Com racionalidade e teorias que se encaixam com a realidade, o futuro como marca de temporalidade e ambientes ficcionais atípicos são mecanismos para questionar e especular atributos do presente social. A ficção se disfarça de futuro, porém descreve aspectos do presente, através de metáforas e utilizando-se como questão inicial “o que aconteceria se”. Permitindo, contudo, um reconhecimento, mas ao mesmo tempo um estranhamento. Ela possui duas vertentes, a ficção cientifica soft, que se utiliza das ciências humanas e sociais e sendo esta a qual a obra literária “1984” se encaixa, e a ficção cientifica hard que se apoia na Física, Química, Astronomia, ciências biológicas, dentre outras. [xxix]

Após 1789, com as revoluções sociais e a revolução científica, a percepção do tempo muda. Certas teorias como a teoria da evolução, destroem as visões fechadas e levanta convicções de que o presente é diferente do passado e que o futuro será diferente do presente. A ficção científica além de demonstrar questões sobre temporalidade utiliza-se de temáticas a respeito da manipulação de certos grupos ou de sujeitos que buscam o poder e outra parte que é manipulada, mas não percebe que é, mas que no desenrolar do enredo acabam percebendo. Portanto, a alienação e a liberdade diminuída retratados nas ficções futurísticas, sobretudo as distópicas, conferem semelhanças ao mundo contemporâneo.[xxx]

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Zahar. 2002

CARDOSO, Ciro Flamarion. “Ficção científica, percepção e ontologia: e se o mundo não passasse de algo simulado?”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 13 (suplemento), p. 17-37, outubro 2006

FOUCAULT, Michel. “Vigiar e Punir” Petrópolis, Vozes, 1987.

HOBSBAWM. Eric. A era dos extremos. O breve século XX 1914-1991. Companhia das letras. p.305.1994.

KOSSELECK, R. “Espaço de Experiência e Horizonte de Expectativa”. In: _____. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. Puc-Rio, 2006, p. 305-327.

ORWELL, George. “1984”. São Paulo. Companhia das Letras. 2009.

______ “O que é fascismo e outros ensaios”. São Paulo. Companhia das Letras. 2017

PESAVENTO, Sandra. “História e literatura: uma velha-nova história”. Nuevo mundo, Mundos nuevos, Debates. 2006.

POPPER, Karl. “Justiça Totalitária”. In: “A sociedade aberta e seus inimigos”. Editora da Universidade de São Paulo. P.100-135.

ZIZEK. Slavoj. Alguém disse totalitarismo? cinco intervenções no (mau) uso de uma noção: tradução Rogério Bettoni. – 1. Ed. São Paulo. Boitempo Editorial. 2013.

Notas:

[i]ALTARES. Guillermo – ‘1984’ lidera as vendas de livros nos EUA desde a posse de Trump – 2017 – https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/26/cultura/1485423697_413624.html  Acesso em 06/08/2020.

[ii]SCHILLING,Voltaire. O Big Brother de Orwell. Conferir em: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/politica/bigbrother.htm  Acesso em 06/08/2020.

[iii] HOBSBAWM. Eric. A era dos extremos. O breve século XX 1914-1991. Companhia das letras. p.305.1994.

[iv] ORWELL.p.23.

[v] Ibid, p. 30.

[vi] Ibid, p.282.

[vii] Ibid. p.293-294.

[viii] POPPER, Karl. “A sociedade aberta e seus inimigos”. Editora da Universidade de São Paulo., p.15

[ix] Ibid, p.103.

[x] Ibid,p.16.

[xi] Ibid,p.19.

[xii] Ibid,p.101

[xiii] FOUCAULT, Michel. “Vigiar e Punir” Petrópolis, Vozes, 1987, p.195.

[xiv] Ibid,p.223.

[xv] Ibid,p.227.

[xvi] Ibid,p.247.

[xvii] ZIZEK. p.172. 2013

[xviii] KOSSELECK, p.308

[xix] ORWELL, George. “1984”. São Paulo. Companhia das Letras. 2009.p.18.

[xx] Ibid.p.38.

[xxi] Ibid.p.40.

[xxii] Ibid.p.47.

[xxiii] Ibid.p.49.

[xxiv] Ibid.p.51.

[xxv] BLOCH.p.101.

[xxvi] BLOCH.p.60.

[xxvii] PESAVENTO, Sandra.  História & literatura: uma velha ­nova história. Novo Mundo Mundos Novos. 2006. p.2.

[xxviii] BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Zahar. 2002, p.44.

[xxix] CARDOSO, C.F – Ficção científica, percepção e ontologia: e se o mundo não passasse de algo simulado? V.13. p.17-37, outubro 2006.

[xxx] Ibid.p.27.

Professora Doutora do Departamento de História do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do Laboratório de Estudos da Imanência e da Transcendência (LEIT) e do Laboratório de Estudos das Direitas e do Autoritarismo (LEDA). Membro do Grupo de Estudos do Integralismo (GEINT).

Deixe um comentário