Profº Ms. André Luiz Reis Mattos
Em parceria com a Pedagoga Profª Marcia Lacerda Sarmento Lopes
Estas reflexões foram divididas em três momentos; nos dois meses anteriores:
1 – O Silêncio na historiografia.
2 – Mulheres e Educação: Uma história a ser contada.
Encerramos nesta edição com:
3 – O magistério como espaço de inserção da mulher na esfera pública.
Durante os períodos assinalados nos dois artigos anteriores, gerações de mulheres foram alvo da oposição cultural masculina e das desigualdades sociais, que as restringindo ao espaço doméstico por um longo tempo, estabeleceu regras de conduta e construção de uma imagem do papel feminino que ainda permanece em muitas instancias da nossa sociedade.
Mesmo com tantos rótulos, discriminações, e estigmas, a mulher não se intimidou em querer seu espaço de manifestação na esfera pública, encontrando na Educação (magistério) uma grande chance de atuação na profissão de ser professora, apesar de ainda priorizar-se à época (mesmo nos dias atuais, principalmente nas esferas públicas – qual foi à última mulher Ministra da Educação no Brasil?) o poder masculino no controle do que deveria ser ensinado; ainda assim, era a possibilidade que traria a elas a libertação econômica e social, o que de fato ocorreu.
Ensinar crianças foi, por parte das aspirações sociais, uma maneira de abrir às mulheres um espaço público que prolongasse as tarefas desempenhadas no lar – pelo menos esse era o discurso oficial do período. Para as mulheres que vislumbraram a possibilidade de liberação econômica foi a única forma encontrada para realizarem-se no campo profissional, mesmo que isso representasse a aceitação dessa profissão envolta na aura da maternidade e da missão. (ALMEIDA, 1998)
O Grupo Escolar, escola primária como a conhecemos começaram a ser construídos após a proclamação da República, com suas características principais: a classificação homogênea dos alunos, diversas salas de aula e um maior número de professores atuando, entre outras. No Estado de São Paulo, temos em 1893, a fundação desta nova escola que materializou a proposta republicana do ideal civilizatório a ser realizado na sociedade brasileira através do sistema escolar. “Ao implantá-lo, políticos, intelectuais e educadores paulistas almejavam modernizar a educação e elevar o país ao patamar dos países mais desenvolvidos.” (SOUZA, 2006).
Escreve Souza (2001) sobre a imagem 1:
O grande número de mulheres em relação ao reduzido número de professores do sexo masculino registra o que foi a composição do magistério primário no Brasil desde o final do século XIX. O diretor ocupa o lugar central na fotografia, reproduzindo na imagem as relações de poder prevalecentes na organização escolar. O diretor, quase sempre do sexo masculino, até meados do século XX, reflete a divisão sexual do trabalho. (SOUZA, 2001, p. 92)
Para estas escolas fora necessária a formação de educadores, o que já se realizava precariamente nas Escolas Normais que no decorrer do século XIX e inicio do século XX, experimentaram período de concepção e afirmação, com cursos onde inicialmente formavam-se professores homens, ocorrendo pouco a pouco à inserção das mulheres neste espaço de formação para o magistério, estabelecendo-se nos primeiros decênios do XX, um campo profissional intensamente caracterizado pela feminização. Delegado as Províncias a responsabilidade pela “instrução pública”, as primeiras Escolas Normais brasileiras foram na ordem: na cidade de Niterói da província do Rio de Janeiro, em 1835, de Minas Gerais, em 1840, e da Bahia, estabelecida em 1841.
A primeira Escola Normal em São Paulo, criada pela Lei n.34 de 16 de março de 1846, foi destinada apenas ao sexo masculino, tendo sido instalada numa sala de um edifício na Praça da Sé. Não possuía regimento interno e apresentava relatório à Inspetoria Geral da Instrução Pública, à qual estava submetida. Era uma escola de um único professor, que acumulava também a função de diretor e acompanhava a turma de alunos até o final do curso. (ALMEIDA, 1998, p. 58)
Os debates iniciais no âmbito nacional sobre a co-educação começam no início do período republicano, principalmente nas capitais dos Estados do Rio Grande Sul, Rio de Janeiro, e em São Paulo, que no ano de 1880, quando da inauguração da terceira Escola Normal, implantou as primeiras turmas mistas, respondendo aos ideais dos movimentos pelo aperfeiçoamento da educação das mulheres, que nasce na esteira da criação, “no eixo Rio de Janeiro – São Paulo e em Porto Alegre, das escolas norte-americanas protestantes e das ideias republicanas e positivistas que passaram a impregnar de forma renovadora as mentes ilustradas do país.” (ALMEIDA, 1998, p. 56)
Somente 1847 foi criada em São Paulo uma Escola Normal Feminina no Seminário das Educandas, reproduzindo os moldes educacionais da escola masculina, que trabalhava para a complementação do curso em dois anos, com um programa composto apenas das seguintes disciplinas: Gramática Portuguesa, Aritmética, Doutrina Cristã, Francês e Música. A escola funcionou por menos de dez anos. Durante todo o período da segunda metade do século XIX, a Escola Normal de São Paulo, primeira instituição a formar professores e professoras no Estado, desenvolveu as suas atividades precariamente, “abrindo e fechando suas portas de acordo com os interesses políticos e com os raros investimentos em educação”. (ALMEIDA, 1998, p. 62)
Segundo Almeida, apesar de ter sido, a princípio, destinada ao público masculino, a Escola Normal supriu uma necessidade e um desejo femininos apresentando-se como a primeira via de acesso das mulheres à instrução pública escolarizada, o que possibilitava ao final da formação, o exercício de uma profissão. É preciso considerar que quando da implantação do regime republicano, quase dois terços das mulheres brasileiras eram analfabetas, refletindo a realidade educacional da população em geral. A entrada das mulheres nas escolas normais e a feminização do magistério primário foi um fenômeno que aconteceu rapidamente e em pouco tempo eram elas a grande maioria nesse nível de ensino, personificando na atuação no magistério, a esperança de ascensão social das mulheres de diferentes camadas da população.
A realidade educacional brasileira determinava que
A educação das meninas, [fosse] confiada a colégios particulares e, no Brasil, sempre foi vista com descaso pelas famílias, pela sociedade e pelo poder público. Nas casas mais abastadas as jovens recebiam de professores particulares algumas noções elementares, mas dedicavam-se, sobretudo às prendas domésticas e à aprendizagem de boas maneiras. Mesmo essas moças privilegiadas tinham reduzido acesso à leitura, pouco ou nada sabiam de história ou geografia, possuíam vagas noções de literatura e cálculo, dedicavam-se mais à aprendizagem de uma língua, de preferência o francês, vivendo nos limitados horizontes domésticos, aguardando o casamento que deveria ser sua suprema aspiração e para o qual eram preparadas por toda a vida. (ALMEIDA, 1998, p. 55/56)
Aranha (2015) escreve que essa feminização ocorreu, em parte, a lenta participação da mulher na esfera pública, e porque o ser professora apresentou-se como umas das poucas profissões onde a mulher poderia conciliar o tempo com suas obrigações domésticas.
Além disso, constituía uma atividade socialmente aceita, por ser pensar que estava ligada à experiência maternal das mulheres – de novo o aspecto artesanal da educação -, e, por fim, mas não por último, tratava-se de um ofício cuja baixa remuneração era aceita mais resignadamente por elas. (ARANHA, 2015, p. 228)
A pesquisa históricademonstra que até os primeiros anos do século XX, o número de diplomados na Escola Normal de São Paulo cresceu e continuou apresentando maioria masculina, até o ano de 1908, quando se formaram 154 alunas e 394 alunos
Após esse período, cresceram as matrículas femininas na Escola Normal e o número de formandas ultrapassou o de formandos. Quando a seção feminina da Escola Normal foi inaugurada em São Paulo, no Seminário da Glória, era, primeiramente, destinada às órfãs sem dote e às jovens de poucos recursos que precisavam trabalhar para sobreviver, dada a possibilidade remota de um bom casamento. O casamento que, no século XIX, se apoiava em bases econômicas e no qual a mulher era usada como objeto de troca, no século XX incorpora a ideia da união amorosa entre duas pessoas, porém a pobreza da mulher continua sendo um empecilho se atentarmos para os romances da virada do século.(ALMEIDA, 1998, p. 60/61)
Apesar de encontrarmos mulheres professoras ministrando aulas no Brasil do século XIX, principalmente nos colégios particulares americanos, a presença feminina no magistério amplia espaços apenas no decorrer dos primeiros decênios do século XX, porque algumas questões sociais ainda direcionavam os caminhos femininos para o casamento e a formação da família, sobretudo se considerarmos as divisões de classes na sociedade.
As mulheres conquistaram o espaço de atuação profissional no magistério, que passa ser visto como “profissão de mulher – as mulheres têm, instintivamente, o conhecimento da infância”, afirma Paul Leroy-Beaulieu, interprete do liberalismo moderno, segundo Perrot (2005, p. 254); mesmo diante de parcos salários e severa vigilância masculina. Mas, “o acesso ao espaço público ainda seria, por um bom tempo, uma meta difícil de ser atingida e a profissionalização, em outras áreas que não o magistério ou a enfermagem, fazia-se muito restrita.” (ALMEIDA, 1998, p. 65)
A presença feminina no magistério foi ganhando corpo e, na década de 1930 o escolanovismo divulgava a crença no poder da educação para o desenvolvimento do país, ecoando diretamente na política educacional e na criação de mais escolas e conseqüentemente, na necessidade de mais professores. A esse aumento e a essa demanda correspondeu-se uma visão ideológica que atribuía às mulheres a função de regeneradoras morais da sociedade, refletindo o seu papel social de mãe e educadora dos filhos, o que se faria principalmente pela sua inserção no campo educacional.
Apesar de no seu início a profissão de professor possibilitar certa visibilidade política e social considerada importante aos homens, pois com ela, poderiam exercer poder e influir nas esferas políticas; segundo alguns historiadores, a ocupação do magistério pelas mulheres também teria ocorrido pelo gradual abandono dos homens do magistério. A incursão dos homens para outros empregos mais bem remunerados, na indústria e no comércio, teria possibilitado que seus lugares fossem ocupados pelas mulheres.
“A mobilização de mulheres permitiu não apenas o aumento dos efetivos a baixo custo, ela promoveu também os homens a uma categoria superior e corrigiu seus problemas de carreira.” (Pierrot, 2005, p. 254) Na configuração hierárquica nas instituições de ensino os homens ascenderam às funções de inspetor escolar e diretores.
A transformação histórica do magistério esteve ligada também a outro fator: às alterações nas relações sociais da família patriarcais que, há algum tempo, vinham reestruturando a sociedade nas primeiras décadas do novo século. A reprodução da espécie e a responsabilidade pelo cuidado com as gerações futuras concentravam-se nas mãos femininas e isso era uma esfera de poder, mas a sua representação no espaço da educação estendia esta condição, mesmo que a mulher não fosse casada.
Nesse plano simbólico, talvez possa ter-se a explicação da grande popularidade do magistério entre as mulheres e, no plano objetivo, a sua condição representada por uma das poucas opções possíveis para elas dentro do contexto social do período.
Entretanto, as pesquisas vêm apontando que o maior motivo de as mulheres terem buscado o magistério estaria no fato de realmente precisarem e desejarem trabalhar. Os homens pareciam acreditar que as mulheres queriam atuar no magistério por receio de não conseguirem se casar ou mesmo ficar dependente de favores de amigos e familiares, não conseguiam pensar na possibilidade das mulheres almejarem serem professoras por outros motivos, para elas significava uma chance de igualar-se aos homens em termos sociais e culturais. De acordo com Almeida,
… a questão do casamento, tão alegada pelos educadores masculinos, emerge em histórias de algumas, a ele relutantemente pressionadas pelas respectivas famílias temerosas de que ficassem solteironas dependentes, e não nos relatos das professoras sobre sua própria atração ou ansiedade em se casar. A intolerância social para com a mulher solteira, em nome da moral cristã e para assegurar a descendência, levava as jovens ao casamento como anteparo da família. O magistério significou uma ruptura com esse estado de coisas ao permitir que as professoras vivessem com dignidade sem submeter-se às imposições sociais. (ALMEIDA, 1998, p. 72)
Entretanto, a feminização do magistério não se deu sem certa resistência por parte dos segmentos masculinos e foram acirrados os debates acerca da co-educação, impulsionados principalmente pela Igreja Católica e pelos segmentos conservadores da oligarquia brasileira, que se posicionaram contrários ao ensino igual para ambos os sexos. Apesar disso, as professoras, paulatinamente, galgaram os degraus do ensino elementar, depois alcançaram o nível secundário e, finalmente nos últimos tempos, chegaram às universidades.
Mas as mulheres ficam, em seguida, presas a estas atividades que as monopolizam e além disso lhes oferecem pouca perspectiva de promoção salarial ou social, por serem voluntariamente limitadas. “Fazer a carreira” é, de qualquer maneira, uma noção pouco feminina; para uma mulher, a ambição, sinal incongruente de virilidade, parece deslocada. Ela implica, em todo caso, em certa renúncia, sobretudo do casamento (…) muitas profissões suponham o celibato (…) Dois terços das cobradoras dos correios (na França) são “senhoritas”; e ainda em 1954, mais da metade das professoras dos liceus. (…) O celibato é também o “preço a pagar” por uma vontade – ou uma necessidade – de trabalhar em um tempo e um meio que sonha com a mulher caseira. (Perrot, 2005, p. 255)
As questões relacionadas a desvalorização profissional (infelizmente presente nos dias atuais) de categoria docente não pode ser sustentada apenas em razão da sua feminização. Na realidade, as matérias e artigos publicados na imprensa brasileira nas primeiras décadas do século mostram que a categoria nunca foi valorizada ou bem remunerada em toda a sua história. Acredito que a razão é mais propriamente sociológica e econômica do que de diferenciação sexual. Estudos apontam que o baixo estatuto da carreira docente no ensino primário e na escola pública tem suas raízes mais na divisão classista da sociedade do que, propriamente, na sua feminização.
O magistério primário representou para a mulher o ponto de partida e o que foi possível no momento histórico vivido. E foi paixão, no sentido do desejo, do esforço, de aproveitar a oportunidade e conseguir uma inserção no espaço público e no mundo do trabalho. Qualquer conquista exige lutas. Muitas líderes feministas, escritoras e jornalistas que colaboravam com a imprensa feminina e educacional eram também professoras.
As primeiras mulheres a reivindicaram esse espaço profissional nele perceberam a oportunidade de exercer algum poder e sair do limbo onde transitavam há séculos. Estas não mais se aceitavam como seres quase invisíveis espreitando pelas frestas e esgueirando-se pelas portas das vivendas coloniais, como relataram os viajantes estrangeiros no Brasil, ou confinadas no lar português de onde saíam em poucas ocasiões. E essas merecem nossas homenagens e reconhecimento.
Importante sobre as reivindicações femininas durante o período relatado é perguntar não o porquê, mas sim o pra quê. As reivindicações não foram somente econômicas e emancipatórias, foram também culturais e sociais. Quando as mulheres posicionaram-se contra o abandono da infância e contra a prostituição, reivindicaram maior instrução para o sexo feminino, mais acesso à cultura livresca, desenvolveram práticas docentes, metodologias de trabalho pedagógico, escreveram livros escolares e libelos sobre a condição feminina, defenderam seu trabalho contra intromissões externas, além dos jornais e revistas que fundaram, dirigiram e mantiveram por longos anos, apesar das dificuldades.
Estes artigos se constituem em uma homenagem a tantas professoras que percorreram a história da educação no Brasil e as nossas vidas, identificadas na memória afetiva de cada um de nós.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA. Jane Soares. Mulher e Educação: a paixão pelo possível. UNESP. São Paulo/SP, 1998.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação e da Pedagogia – Geral e do Brasil. Editora Moderna. São Paulo/SP. 3º Edição revista e ampliada. 2005.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Introdução. EDUSC, Bauru/SP, 2005.
SOUZA, Rosa Fátima de. Fotografias escolares: a leitura de imagens na história da escola primária. Educar, Curitiba, n.18, p. 75-101. 2001. Editora da UFPR. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/er/n18/n18a07.pdf. Acesso set 2020. SOUZA, Rosa Fátima de. Espaço da Educação e da Civilização: Origem dos Grupos Escolares do Brasil in O Legado Educacional do Século XIX. Editora Autores Associados Ltda. Campinas/SP. 2006.
obrigado
Ótimo texto! Importante reconhecermos nossa história, para darmos um basta na desigualdade entre os gêneros. A consciência coletiva se faz necessária para ações de luta e fortalecimento.
Obrigado querida aluna e professora, os artigos objetivaram demonstrar a história de superação das mulheres em busca do seu espaço na vida pública através da profissão de ser professora. Aproveite com educadora a leitura mensal desta revista.
Excelente! Cansei de ouvir que Magistério era profissão “espera marido”, e felizmente aí está a história, provando, ser a Educação um espaço privilegiado de transformação social, e que a mulher, por competência, desejo e escolha, desempenha sua carreira Profissional com muito sucesso!!! Estou encantada!!!
Obrigado Jussara, esta é uma revista de excelência em educação, cultura, arte e humanidades, aproveite.