Afirma Olivier Abel, amigo pessoal de Paul Ricoeur, na introdução do livro Vivo até a Morte seguido de Fragmentos, que o historiador e filósofo francês preocupou-se incessantemente com a “separação entre o tempo da escrita, que pertence ao tempo mortal de uma vida singular, e o tempo da publicação, que abre o tempo da obra para uma “durabilidade ignorante da morte”” (ABEL. 2012, prefácio, p. VII). A obra “ignora”, supera, permanece além da morte, eternizando seu autor.
O tempo da publicação, assim definido, igualasse ao da fotografia, que enquanto fragmento do tempo interrompido, vence a distância do espaço e das próprias demarcações temporais socialmente constituídas, e desta forma também desconhece a morte. A imagem fotográfica ou as pinturas representativas de pessoas e/ou os autorretratos, não se apresentam apenas como obra do seu autor, mas antes, como lugar de lembrança e de saudade da parcela da vida de quem foi perpetuado no registro fotográfico e artístico, principalmente no trato da imagem de família, quando sua produção é utilizada na conjuntura social do luto.
O autor literato, como o pintor e o fotógrafo e qualquer um de nós, somente somos mortais no limite de tempo desta existência, onde convivemos e vivemos numa “faixa” de temporalidade finita. A obra seja ela um livro, uma fotografia, uma música ou uma obra de arte, qualquer objeto ou atitude de memória, vence o limite da vida do seu autor, e este, sobrevive à morte com e por causa da sua obra.
Não temos como estar diante da fotografia que segue, e não nos percebermos seres finitos nesta vida, sujeitos a experiência da morte, pois ela revela a vida de outros, parcela de suas obras e a realidade de suas ausências em nosso tempo de existência.
A foto é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que vêm me atingir, a mim, que estou aqui; pouco importa a duração da transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar como os raios retardados de uma estrela. (Barthes, 2008, p. 121)
Apesar de considerar os fragmentos anotados por Ricoeur no livro reunidos, como uma obra inacabada, Olivier afirma que nestes “se sente tão bem o gesto vivo, o estilo, a maneira de pensar de Ricoeur, exatamente no que ela tem de vivo, e nesse sentido, de inacabado, de interrompido pela morte.” (2012, prefácio, p. VIII) (meu destaque). Vencida a morte do autor, este em sua obra permanece “vivo” no tempo da memória e da saudade, sempre que alguém, no caso, (re)encontra Ricoeur em seus escritos.
Todos nós percorremos uma vida marcando os caminhos com nossas obras, que são os testemunhos, para o outro, do que fomos e do que construímos.
O encerrar de uma obra (livro, fotografia, pintura, escultura, vida) é a sua abertura a interpretação que ocorre pelo olhar de qualquer pessoa que exista para além do tempo da obra e do seu autor
Entendo que esta é a melhor definição de “obra” no contexto social da existência humana: o que fica de nós na memória e nos lugares de lembrança, e que reflete nosso “gesto vivo,” o estilo, a forma de pensar e agir, a cultura social em que o sujeito se inseriu, em fragmentos de uma vida incontinuada pela morte.
São as vivências de relação em vida que constroem memórias da obra de um ente amado que tem sua história interrompida pela morte, e que em nós permanecem mais que vivos, porque a trajetória, a realidade possível do morrer, os tempos finais, os novos sentimentos, incorporam-se a obra que se iniciou no nascimento.
A imagem fotográfica nos afirma esta realidade: é a obra do outro que, morto, permanece por nós sendo revisitada; e desta maneira somos “como que pegos pelo contágio de uma morte que mata”. (ABEL. 2012, prefácio, p. X)
Os escritos de Ricoeur na obra por mim revisitada são especificamente fragmentos testemunhos de suas inquietações com relação à morte, tão humanas e presentes na maioria de nós. Esta é uma das imposições da morte, a de nos fazer em algum momento pensar na realidade de sua presença, não importando nossa condição social, cultural e religiosa.
Os diversos olhares com relação à morte e o morrer, que já percorrem longa jornada temporal da história humana, impõem obscuridade e equívocos à alma contemporânea e como conseqüência, o medo e o evitar-se pensar em tudo que se relaciona ao problema de sua natureza e de seu futuro. É a esse estado de coisas que se deve arrogar, em boa parcela, o mal do nosso tempo, a incoerência das idéias, a tumulto das consciências, a atropelo moral e social.
Hoje vivemos tempos onde a pandemia e o isolamento social trouxeram-nos, entre outros sentimentos, a angustia da presença e da experiência da morte e do luto na ausência.
A ideia da morte e o medo que ela inspira perseguem o animal humano como nenhuma outra coisa. É uma das molas mestras da atividade humana – atividade destinada, em sua maior parte, a evitar a fatalidade da morte, a vencê-la mediante a negação de que ela seja o destino final do homem. (BECKER. 2017, prefácio, p. 11)
O que permanece de nós nos espaços e nas relações da vida física pode ser ressuscitado, renascido em outro tempo, bastando que alguém reencontre parte da nossa obra que continua nos lugares de lembrança e esquecimento.
Na minha pesquisa de mestrado preferi utilizar estes termos, em vez de “lugar de memória”, conceito desenvolvido por Pierre Nora, por entender que a memória tem seu sítio nos registros mentais do sujeito histórico, registros que elaboram ações, testemunhos, fatos e objetos, que podem ser parcialmente recuperados, rememorados e ressignificados.
Os lugares de lembrança se constituem nos objetos, imagens e representações materializadas que individualizam a memória, impregnados que são pelos sentimentos de saudade e nostalgia, expressões relacionadas à “obra” de um indivíduo.
Abel afirma, que em janeiro de 1996, em diálogos realizados através de correspondências desde fins de 1995 com Ricoeur, sobre “a morte, a vida e o conjunto dessas interrogações”, lhe escreveu uma carta de vinte páginas prolongando os escritos de Ricoeur em seu livro La Critique et la Conviction, de 1995, onde este apresentou sua meditação “sobre a renúncia à ideia de sobrevida…”
quando da minha morte [que Deus], faça de mim o que ele quiser. Não reclamo nada, não reclamo nenhum pós. Atribuo aos outros, meus sobreviventes a tarefa de assumir o meu desejo de ser, o meu esforço para existir, no tempo dos vivos. (RICOEUR, citado por Abel, 2012, prefácio p. XVI)
Ricoeur relaciona-se com a morte de si na morte do outro e com a permanência dos seus, os sobreviventes vivos após o seu morrer. As dúvidas e o não saber como perceber-se vivo após a morte faz com que ele entregue o seu destino a Deus; e a quem mais poderia ser? É renuncia em viver o presente imaginando-se como memória futura, na lembrança de alguém.
Então neste estado de um futuro sem critérios indispensáveis ao aclareamento, sem os meios de verificação e de comparação preciosos ao pensamento humano, Ricoeur encontra-se no findar de uma existência, confio a si mesmo e as suas indagações. A esperança esta no intimo desejo de sentir-se vivo após a morte, entregando-se a Deus por vontade e aos seus sobreviventes, através da obra de sua vida.
É desta maneira que também procuramos vincular aos outros, nossos entes queridos, nas representações da vida determinadas culturalmente pela nossa sociedade cristã ocidental, o desejo que temos de continuar vivos, como “reconhecimento infinito em relação a alguém que não nasceu em vão; e isso parece poder ser dito de qualquer um.” (ABEL. 2012, prefácio, p. XXI); assim…
Olhar a fotografia do ausente é uma forma do vivo ser olhado de volta, um meio dele também não ser esquecido. A presença de ambos os corpos, o do vivo e o do morto, é essencial no processo simbólico que se desenrola, que faz projetar uma relação sempre atualizada. Mas, por fim, talvez sejam as fotografias objetos puramente melancólicos e vazios, através dos quais se evidencia a solidão dos sobreviventes. (SANTOS, 2017, pag. 8)
Na impossibilidade física de tornar os instantes permanentes e acessíveis à repetição, a arte e a fotografia mais intensamente, são detentoras do poder de vencer a distância no tempo e no espaço, aparecendo como objeto capaz de atender em grande parte o imperativo tão humano de vencer a “morte” e tornar as coisas eternas. É a lembrança uma espécie de imagem. A “imaginação e a memória tinham {tem} como traço comum à presença do ausente, e como traço diferencial, de um lado, a suspensão de toda posição de realidade e a visão de um irreal, do outro, a posição de um real anterior.” (RICOEUR, 2010, p. 61) A lembrança é a presentificação do que foi percebido, experimentado, emocionalmente vivenciado.
Vejamos: tudo o que está referenciado na fotografia que segue, está impregnado pelo tempo e pela finitude de uma existência corporal. Os móveis, as roupas, os eletrodomésticos, as prateleiras, as pessoas, o disco de vinil, a imagem em preto e branco. A sensação do passado ocorre porque experimentamos na atualidade uma realidade diferente quanto a esses elementos, e porque são objetos catalisadores de memória e condensadores de lembranças. Sobre este registro, informa por e-mail Cínara Jorge:
“A Casa Lopes ficava na esquina da Rua Presidente Vargas com Dr. Oswaldo Cruz. No andar superior era o Hotel Palace e hoje este prédio é ocupado pelos escritórios do Supermercado Bramil. Mamãe (Leonor Bastos Jorge, Dona Lola) trabalhava lá, no setor de louças por volta de 1946. Era muito estimada pelo Sr. Rufino e família. Na foto ela está atendendo a uma cliente e me parece que tem um ferro de passar roupas na mão.”
Para a minha querida amiga e seus familiares, esta fotografia e outras tantas mais se houverem de sua mãe, é mais do que apenas um objeto que preservou uma imagem extraída em um momento do passado, mas um lugar de lembrança e saudade, e que por si só tornou-se uma obra capaz de a cada momento ao ser revisitada, por permanecer além da morte do ente querido, permitir o encontro com a finitude do outro, e ao mesmo tempo, reafirmar o próprio limite da existência física de quem vivo permanece no presente; além do que, pela própria esperança/sentido/fé, testemunhar toda a obra do ser que sobrevive a morte, e que de alguma forma em algum lugar, permanece pleno em sua consciência e emoções.
Concordo com Ricoeur (2012) quando ele afirma que todas as respostas com relação à morte e a sobrevivência do ser, apresentadas pelas culturas e pelas religiões, e que se inserem nas representações diversas da morte do outro em nossa sociedade, são respostas a questões formuladas pelos sobreviventes acerca da sorte dos mortos, dos seus mortos, já mortos.
Refletir sobre a própria morte (…) deve ser feito por todo ser humano individualmente. Todos nós sentimos necessidade de fugir a esta situação; contudo, cada um de nós, mais cedo ou mais tarde, deverá encará-la. Se todos pudéssemos começar admitindo a possibilidade da nossa própria morte, poderíamos concretizar muitas coisas (…) Encarando ou aceitando a realidade da nossa própria morte, poderemos alcançar a paz, tanto a paz interior como a paz entre as nações. (ROSSI. 2011, p. 22)
Muitos de nós equilibramo-nos, como numa corda bamba bem acima no picadeiro da vida, no temor, no medo da perda: de um amor verdadeiro, daquele convívio demorado, que suscita harmonia e correspondência; temor da frágil segurança no existir em uma vida física que pode se esvair a qualquer momento; temor de sermos esquecidos e descobrirmos que não fomos amados como desejamos; temor em perder os bens acumulados, as paixões. É neste estado de existência que construímos a nossa história com a morte – uma condição de perda, incapaz de proporcionar a paz e a felicidade – e, é ela que sinaliza o término da relação entre o tempo e a vida.
Mas restam as imagens, essas instâncias partilhadas com o próximo e o distante, elas que muitas vezes nos dão um lugar, que nos dão origem e nome, que nos dão um rosto. Aqui, o pensamento partirá das fotografias familiares e amorosas, para ir em direção à experiência do luto através da imagem. (SANTOS, 2017, pag. 11)
Referencias:
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira, 2008.
RICOEUR, Paul. Vivo até a morte, seguido de fragmentos. São Paulo. 1ª Edição, Editora WMF Martins Fontes, 2012.
ROSS, Elisabeth Kübler. Sobre a Morte e o Morrer. Editora WMF Martins Fontes Ltda. São Paulo/SP, 9ª Edição, 2ª Tiragem, 2011. SANTOS, Carolina Junqueira dos. Um lugar para o corpo: fotografias familiares em contexto do luto. REVISTA M. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 8-29, jan./jun. 2017. Disponível em < http://seer.unirio.br/index.php/revistam/article/view/8147/7013> Acesso out. 2020.
Excelente artigo. Faz com que reflitamos em vida sobre a morte, algo que nos cerca fisica e psicologicamente sobre espaço e tempo. As fotos nos fazem viajar por um tempo do qual participamos ou não daquele momento, e com tantas incertas que a vida assim revela, é algo que concretiza nossa presença em vida tantos para entes queridos ou pelo menos deixa sua existência registrada.
Obrigado Daniela, feliz por sua avaliação.