Quantas histórias e memórias a face humana pode revelar? Quantas marcas no rosto as experiências de vidas, dores, angústias, tristezas; quantos sentimentos se revelam quando o fotógrafo consegue remediar as poses tão comuns e enganadoras diante de sua “câmera fotográfica”, onde o(s) fotografado(s) se ilude(m) com poses e expressões construídas e que não revelam a natureza real de uma existência.
A face pode informar a indiferença, a distância daquele momento – o olhar vaga no horizonte; pode demonstrar emoções como a alegria, a raiva, o amor, o erotismo. Nesta primeira foto é possível perceber qual seria a “essência da escravidão”? Vê-se o olhar de quem não se curvou e que carrega um tanto de raiva, não há sorriso, não se tem por que sorrir. Um rosto forte, nobre, mas cansado e com as marcas do tempo. E você, o que vê nestes olhos, nesta face?
A imagem da face humana também sucinta a saudade, a nostalgia, pois existem momentos que estas se refugiam no esquecimento e apenas a fotografia é capaz de fazê-la retomar o seu lugar na memória, através da lembrança. Como na canção: “Na distância vi meu mundo desaparecer, nunca mais seu rosto eu pude ver…”
Sobre o retrato de William Casby, nascido escravo, fotografado por Avedon (William Casby, born in slavery in 1863 in Algiers, Lousiana), afirma Barthes:
Já que toda foto é contingente (e por isso mesmo fora de sentido), a fotografia só pode significar (visar uma generalidade) assumindo uma máscara. É exatamente essa palavra que Calvino emprega para designar aquilo que faz de uma face o produto de uma sociedade e de sua história (Barthes, 2008, p. 58), e desta forma, ser uma “projeção para o mundo da maneira como percebemos nosso próprio valor, nossa posição social e nossos direitos.” (Maiselas, 2012, p. 356)
É preciso contemplar atentamente para uma imagem que “olha” diretamente para o seu espectador, e evitar que a impressão inicial nos leve a desviar, ato de fuga, que nasce na própria correspondência de sentidos que incomodam, tornando-nos pensativos. A estética dos rostos descortina sombras, e “na fotografia não existem sombras que não se possam iluminar” – August Sander. As dos outros e as nossas.
Nesta condição é que a imagem fotográfica se faz, segundo Barthes (2008), “subversiva, não quando aterroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa.”
Na fotografia 2, reconheço Marilyn, mas não a das outras fotografias, que exploram a imagem que a explorou, (como na fotografia 3) comum nos retratos de pessoas públicas ou celebridades que objetivam reforçar as personas (ficção) em vez de revelar o ser real, escondido por detrás da imagem inventada, vendida.
O célebre retratista americano Richard Avedon pretendia descobrir as verdadeiras personalidades de todos que fotografou – incluindo celebridades de uma diversidade de disciplinas. (…) A atriz e ícone da cultura pop Marilyn Monroe também estava entre os modelos de Avedon. Relembrando uma sessão de retratos com Monroe que aconteceu em seu estúdio em maio de 1957, ele disse: “Por horas ela dançou e cantou e flertou e fez uma coisa que é – ela fez Marilyn Monroe. E então houve a queda inevitável. E quando a noite acabou e o vinho branco acabou e a dança acabou, ela se sentou no canto como uma criança, com tudo acabado. Eu a vi sentada quieta, sem expressão no rosto, e caminhei em sua direção, mas não a fotografaria sem que ela soubesse. E quando cheguei com a câmera, vi que ela não estava dizendo não.” Avedon conseguiu capturar uma das estrelas mais fotografadas com sua fachada pública abaixada, produzindo uma imagem que fornece um raro vislumbre de sua vida interior. (autor não informado – disponível em https://www.moma.org/learn/moma_learning/richard-avedon-marilyn-monroe-actress-new-york-may-6-1957/)
Homens e mulheres, seres ignorados (Marilyn – sua essência interior desconhecida) na vida cotidiana, ou despercebidos, impedidos, daqueles que quando encontramos na rua tendemos evitar, são confessados por fotógrafos e seus rostos. “Meu caminho direciona-se no sentido de criar uma nova recepção do mundo. Dessa maneira explico, de uma forma nova, o mundo que é para você desconhecido.” (Dziga Vertovi, cineasta soviético)
O mundo do outro é por mim ignorado, atalhado ou revela-se naquilo que a imagem descortina? As vezes nem é preciso olhar diretamente, um rosto desviado também conta-nos tantas histórias e tanto de nós.
Os sapatos antes elegantes e o vestido florido de Sylvia nos contam sobre a vida que ela desejava levar – e talvez sobre a vida que ela levou – mas é evidente pelo retrato afetuoso de Moyra Peralta que a vida que Sylvia aspirava estava perdida para sempre. Sem querer entrar em um abrigo noturno, ela dormiu na rua em Spitalfields nos anos 70 e hoje esta fotografia é a única prova duradoura de que, apesar de sua situação difícil, Sylvia manteve seu auto-respeito.
A imagem dos rostos nos permite “ler o que nunca foi escrito” (Hofmannsthal), mas também aquilo que não quero ler.
Existem imagem de semblantes escondidos, esquecidos ou invizibilizados, como os retratados pelo fotógrafo Lee Jeffries (Manchester, 1971), similar ao de Moyra Peralta, que
Conhece bem esses rostos. Há oito anos vem escutando essas almas sem rumo, esses anjos perdidos, e refletindo com sua câmera um dos maiores problemas da Inglaterra e da humanidade: os sem-teto. Os retratos de Jeffries não deixam ninguém indiferente. Cada olhar esconde o peso do desamparo, da dor, da miséria, do revés que a vida pode trazer e do qual ninguém está salvo. (Miguel Morenatti, 2016)
Vivemos um contexto social onde a intolerância em relação às faces divergentes do conservadorismo estrutural procura “desviar o olhar” através do negacionismo que intenta esconder o preconceito as expressões faciais para que não sejam vistas.
John Berguer, escrevendo sobre a obra de Mayra Peralta, afirmou:
Seguindo o exemplo de Moyra Peralta, olhemos os close-ups com atenção. Eles então nos surpreenderão com sua resiliência, sua sagacidade, sua indomabilidade e seu desespero.
O olhar conduz a percepção, mecanismo fundamental na formação da consciência do mundo a nossa volta, e da nossa própria existência; somos o que foi sensivelmente percebido e incorporado à memória, e assim, diante desta realidade, pode-se arrogar-se a memória um lugar terminante na existência, pois consente a relação do corpo e da face presente com o passado, e, ao mesmo tempo, conduzindo o curso atual das representações.
Perceber enfim é tornar-se existente e presente em uma realidade social, pois o que acontece na vida do outro, também de alguma forma, nos perturba. Fazemos parte de uma coletividade social em constante processo de interação nos espaços físicos organizados para tanto, ocorrendo relações em todos os níveis, que são formadores da memória habito e da memória coletiva, ambas encontrando na percepção sua fonte de alimentação.
Retratos de ruas, faces esquecidas.
Referencias:
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Editora Nova Fronteira, 12ª impressão, Rio de Janeiro/RJ, 2008.
BERGER, John. Para entender uma Fotografia. Organização e introdução DYER, Geoff. Companhia das Lestras, São Paulo/SP, 2013.
MAISELAS, Susan. Retratando o Outro, in Tudo Sobre Fotografia. Editora Sextante, Rio de Janeiro/RJ, 2012.
MORENATTI, Miguel. Os rostos esquecidos. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2016/11/29/cultura/1480447359_875939.html. Acesso em 03 de dez. 2020.