O futebol se fez presente no Brasil pelas mãos dos ingleses que vieram para a implantação da malha ferroviária como alternativa de lazer para a elite branca brasileira e não para os negros recém libertos; mas quando foi acomodado pelas classes populares este esporte passou a ser mestiço, negro e “brasileiro”. Existem pesquisas que estabelecem a presença dos negros em equipes de futebol amador já no início do século XX.
A primeira representação imagética conhecida de jogadores negros em uma equipe de futebol da cidade é datada de 17 de novembro de 1929, quando da realização do jogo entre o América Futebol Clube e o Riachuelo Esporte Clube, tradicional equipe auriverde da cidade de Paraíba do Sul/RJ, que terminou com o placar de 2 x 1 para os rubros de Entre-Rios.
Relacionam-se na fotografia os jogadores, estando em primeiro plano sentados: Santinho, Hélio – goleiro -, e Pinhal com o mascote da equipe Sebastião Guilherme Dias, o “Cici” à frente. Ajoelhados: Nico Couto, Teófilo e Silvio “Malandragem”. Em pé ao fundo da esquerda para a direita: o Srºs Aparício de Freitas, Darci César Guimarães (de terno branco) e Antônio Martins, os jogadores Manoel Duarte e Coutinho Junior, a madrinha Maria Cantuária de Araújo, o presidente do clube, Mariano Aguiar, os atletas Batoque, Chaves e José Manoel e por último, segurando uma bandeira, o Srº Josino de Carvalho.
Observado a presença de negros entre os jogadores de futebol das equipes de Entre-Rios, o mesmo não ocorre entre os diretores dos clubes da cidade. Qualquer posição onde se determine algum tipo de poder, principalmente os econômicos e políticos, a presença dos afrodescendentes acontecia raramente. Entendo que esta realidade reflete nas redes de relação social, o lugar determinado a estes indivíduos, alijados das condições necessárias para figurar junto aos representantes das classes comerciais, industriais e financeiras, onde a presença dos brancos é mais evidente.
Pesquisar a participação de determinados grupos em variadas atividades permite mensurar a ocorrência das desigualdades nas ocupações sociais, definindo-se assim as zonas de segregação que ocorrem nos espaços urbanos. E esta condição aparece nas diversas formas de diálogos e registros, como por exemplo, nos escritos dos jornais e nos livros dos primeiros historiadores da cidade de Três Rios/RJ, utilizados nesta pesquisa. Pouco da participação dos negros é referendado.
Nesta imagem temos da esquerda para direita: Quintino Pinto Álvares, Jacinto Sobrinho (atrás deste), Pedro Chimelli (ao fundo), Manoel Ferreira de Souza Neto (Manoelito, de terno branco), Vitorino Martins (ao fundo), o Padre Antonio Rossi, Horácio da Silva Braga (segurando o que parece ser uma vela), José da Silva Leal (também ao fundo), Balbina Santos Gomes (madrinha), Guilherme Bravo, Clodoaldo de Carvalho, Salim Chimelli (ao fundo), Ciro Marini, Mariano de Aguiar e Pedro Caldas. Destaca-se em primeiro plano o pequeno coroinha ao lado do padre. Alguns destes nomes estão entre os presentes nas fotografias referentes aos espaços da arte e do comércio apresentadas nas publicações anteriores.
O Historiador trirriense, Hugo José Kling, nas suas obras publicadas em 1969 e 1971, além de aspectos relacionados à formação urbana da cidade e seus monumentos, apresentou biografias dos “principais” moradores, um apanhado de artigos publicados nos jornais da cidade com características da historiografia positivista: são nomes e sobrenomes que representam uma parcela representativa dos comerciantes, industriais, profissionais liberais, religiosos e professores; personagens que figuram nas imagens fotográficas como as que neste trabalho são apresentadas.
Uma única figura fugiu a esta condição: Camila, escrava de Mariana Claudina, que recebeu por desejo testamentário da Condessa do Rio Novo, uma casa em Entre-Rios em usufruto e a quantia de um conto de réis. “Camila foi uma escrava, mas foi também um ser humano e cristão.” (KLING. 1973, p. 46) Filha de um português – Augusto, e de uma escrava – Tônia, “a criança era clarinha e crescia robusta e linda”. (KLING. 1973, p. 57)
É interessante a tentativa de se “adequar” um “espaço” para Camila na história da cidade ao minimizar sua condição étnica nos termos: “um ser humano e cristão” e “criança clarinha”.
“Afinal, em agosto de 1835 é que Tônia e Camila entraram para o serviço do novo Sinhô na Fazenda da Boa União, onde à época se movimentavam mais de oitenta escravos de ambos os sexos, sem contar as crianças.
Tônia foi para a senzala e dali por diante, com outras escravas, participaria de todos os trabalhos, quer na capina da lavoura, que na apanha do café.A futura Condessa do Rio Novo, de pronto simpatizou com a mulata Camila, que regulava a sua idade e mais encantada ficou quando soube que sua nova escrava sabia ler e escrever, pois ela destinava-a a ser sua companheira na Fazenda, já que, havia decorrido mais de três anos, depois do seu casamento, sem que tivesse filhos.” (KLING, Hugo José)
A figura de Camila permanece até nossos dias apenas pela presença de seu nome no testamento da Condessa e, conforme afirma Hugo Kling (1971, p. 77) na tradição oral das histórias do “preto Bentão” falecido em idade avançada, mas que não recebeu também, maiores identificações, apesar deste autor afirmar que recolheu deste informações preciosas para os seus escritos.
“Refletir o trauma social (…) significa pensar tal memória dentro das redes de poder que as definem, recortam, delimitam elegendo critérios do que lembrar e por sua vez narrar e do que esquecer e silenciar, definindo assim linhas de interpretações da História que se deseja elaborar.” (DIETRICH, Ana Maria)
Este pensar o conceito do poder de exclusão e silenciamento de memória pode ser aplicado aos aspectos sociais da história dos negros na pós-escravidão no Brasil, pois o esquecimento e as escolhas quanto ao que deve ser lembrado demarcam a memória coletiva e a construção da identidade deste grupo, que no casso deste trabalho, tem presença importante na formação cidade de Três Rios/RJ.
Rompendo o silêncio imposto ou os impedimentos a leitura deste discurso, as fotografias narram experiências sensíveis, aspectos das relações sociais, colaborando para a compreensão da vida desta comunidade étnica, sugerindo espaços de rupturas e continuidades, mesmo representado pelo olhar de outro grupo social. Quando os referentes fotográficos abarcam as atividades sociais nos espaços públicos da cidade, os indivíduos negros e mulatos aparecem em manifestações diversas, como expressos nas imagens 5 e 6.
Porém, quando as imagens fotográficas destacam algum grupo do restante da população, seja por representação econômica, política ou religiosa, não se encontram nos registros a presença de indivíduos negros, conforme as fotografias a seguir analisadas.
Pierre Bourdieu, escreveu que para ele:
A fotografia é um objeto que me interessou. Considerei, naturalmente, o fato desta ser a única prática com uma dimensão artística acessível a todos e de ser o único bem cultural universalmente consumido. Achei, assim, que, por meio desse desvio, conseguiria desenvolver uma teoria geral da estética. Era algo, ao mesmo tempo, muito modesto e muito ambicioso. É corrente dizer que as fotografias populares são horríveis etc. Eu queria, em primeiro lugar, entender por que razão isso é assim e, em segundo, tentar explicar, por exemplo, a frontalidade dessas imagens e o fato de nelas revelarem-se relações entre pessoas e uma série de coisas que indicam a medida de sua necessidade e que, por isso, têm o efeito de reabilitá-las. E então decidi analisar uma coleção de fotografias que pertenciam a Jeannot, um amigo de infância: examinei-as uma a uma e embrenhei-me nelas. Parece que encontrei muita coisa nesta caixa de sapatos.
Uma das razões desta paixão que nutro pela fotografia, também está no fato de “nelas revelarem-se relações entre pessoas”, de demonstrarem as demarcações nos espaços de relações sociais construídos nos embates de poder e memória, de “possuírem” histórias silenciadas, que aguardam serem retiradas da “caixa de sapatos.”
Referências:
BOURDIEU, Pierre e BOURDIEU, Marie-Claire. “O camponês e a fotografia”. Rev. Sociol. Polít., 26. (2006): 31-39.
DIETRICH, Ana Maria. Percurso de memória(s) traumática(s) da II Guerra Mundial. Disponível no site: http://pt.scribd.com/ana_diet/d/63676819-PERCURSOS-DE-MEMORIA . Acesso em 11 de out. de 2011.
KLING, Hugo José. Cinzas que Falam. Juiz de Fora/MG, 1ª Edição, Sociedade Propagadora Esdeva – Lar Católico – 1971