A nascente sociedade urbana da Vila de Entre-Rios e o lugar dos escravos libertos e seus descendentes. – 4ª parte

A cidade de Três Rios, inicialmente Vila de Entre-Rios, tem sua formação urbana vinculada aos espaços físicos das fazendas de café que pertenceram à Mariana Claudina P. de Carvalho, a Condessa do Rio Novo e seus pais, o Barão e a Baronesa de Entre-Rios. Os escravos, personagens com pouca acuidade para a história vista de cima, mas importantes no contexto historiográfico da Nova História Cultural, foram libertos por desejo expresso no testamento da Condessa que deliberou a utilização das terras de uma das suas propriedades para o assentamento destes e criação da Colônia Agrícola de Nossa Senhora da Piedade composta no ano de 1882 e extinta em 1932 motivada por uma combinação de fatores.

Neste artigo, dividido em 4 partes para publicação, analiso a inserção da população pobre e negra no espaço urbano de relação daquela sociedade nascente no pós-abolição, utilizando-me pata tanto, além das referências literárias, das fotografias do acervo acumulado nas minhas pesquisas do mestrado, entendendo-as em sua dupla dimensão como fonte e testemunho de memória, um lugar de lembrança relacionado a todas as representações a elas associadas, percebendo presenças e ausências destes indivíduos em determinados espaços e grupos de relação.

É possível admitir que a coletividade entrerriense, mesmo sendo de uma cidade em formação no interior do Estado do Rio de Janeiro, refletia a configuração da sociedade brasileira a época: nova organização social burguesa republicana (comercial, industrial e financeira), capitalista e urbana e são os representantes desta elite que produziram as imagens analisadas: o olhar fotográfico reflete em sua maior parte “as cenas” do cotidiano deste grupo.

Educação e Trabalho

No campo da educação, importante para inserção do indivíduo na sociedade e para a conquista de melhores condições de trabalho e renda, as fotografias que seguem indicam as oportunidades experimentadas pelos descendentes dos negros libertos. Em uma escola particular não estão presentes, em um colégio do Estado são percebidos em número menor e em uma escola técnica profissional, meninos negros aparecem sendo preparados para funções no mercado de trabalho, onde se exigia capacitação técnica e não o ensino superior.

Fotografia 1: Vista externa do Gynásio Pinto Ferreira, instituição educacional tradicional com matriz na cidade de Petrópolis/RJ. Nesta imagem alunos e professores estão perfilados; os meninos na frente abaixo e as meninas na sacada do edifício, não sendo possível identificar um representante negro entre estes. Fotografia do ano de 1935, sem fotógrafo conhecido, do acervo André Mattos
Fotografia 2: Vista externa do Grupo Escolar Condessa do Rio Novo, na Praça São Sebastião, com seus alunos perfilados em frente à escola, observando-se no primeiro plano à direita, crianças plantando uma muda de árvore, e junto a elas, a professora Alva Coutinho Carvalhido. Nesta fotografia do início da década de 1940, é possível observar à presença em número maior de crianças brancas e em maioria meninas, mesmo sendo este um colégio mantido pelo Estado. Do acervo André Mattos sem autor conhecido.
Fotografia 3: Vista interna da Oficina da Escola Profissional de Entre-Rios, onde a presença de jovens meninos negros aparece com maior destaque. No segundo plano ao fundo a direita, membros da diretoria desta instituição de ensino e atrás bem ao fundo, dois possíveis instrutores, que em sendo, seriam os únicos professores negros observados nas fotografias. Registro da década de 1940, do acervo André Mattos.

“Dentre os libertos retiraram-se logo após a recepção de sua liberdade 8 indivíduos, todos do sexo masculino, e estes foram somente dos que tinham ofícios e que preferiram exercê-los fora da colônia, como mais rendosos. Foi interesse e não outro motivo que os fez emigrar.Eles eram carapinas, ferreiros, pedreiros e cozinheiros. Estes retirantes deixaram de obter lotes na colônia (…).” 1

Alguns negros desenvolviam nas fazendas outros ofícios além da atividade na agricultura, trabalhos que exigiam maior esforço físico, e que, imputaram a estes, a representação de indivíduos aptos ao trabalho na carpintaria, nas serralherias, nas obras urbanas, como pedreiros, pintores, entre outros.

Fotografia 4: Vista externa do Armazém de Café construído em Entre-Rios pelo presidente de Minas Gerais, observando-se os trilhos da E. F. Central do Brasil, bem em frente de um dos galpões. Nota-se que os que estão descarregando as sacas de café do vagão são todos negros, em destaque na imagem pela posição e por estarem bem trajados, em sua maioria, por senhores brancos. Fotografia do início da década de 1930, sem fotógrafo conhecido, do acervo Srº Altair.

Esta condição de serem trabalhadores acostumados com a lida braçal, acrescido da necessidade de sobrevivência além das fronteiras das fazendas, conduziu a população negra a atividades outras nas cidades, mas sempre em posições onde havia o imperativo de uma mão-de-obra menos qualificada, nos setores residuais, limitados às práticas ou ocupações inadequadamente retribuídas e degradadas, posições onde havia o imperativo de uma mão-de-obra menos qualificada.

Identificado em alguns jornais com o nome de Carlos (há referências também ao Lucas da Lata D`água), temos como exemplo desta realidade, o indivíduo destacado no registro que se segue, que vendia latões de água pelas ruas do distrito de Entre-Rios. No segundo plano veem-se lojas comerciais, além da presença de três crianças, sendo que apenas uma está com os pés calçados.

Fotografia 5: Registro da década de 1920, sem informação do fotógrafo, acervo Srº Altair.

Desta maneira, quando da implantação das propostas de educação para o trabalho, como as Escolas Profissionais, estas receberam no seu início, um número maior de alunos negros. A educação formal, que permitia com mais possibilidades a ascensão social, educando os doutores e bacharéis, comerciantes e industriais, atendia majoritariamente, as crianças e os jovens da elite branca.

Um aspecto importante percebido na fotografia 8, única do meu acervo a demonstrar sua condição da mulher negra como provedora familiar através da ajuda assistencial, indicando que mesmo entre grupos silenciados e esquecidos, subsistem…

“(…) zonas mudas e, no que se refere ao passado, um oceano de silêncio, ligado à partilha desigual dos traços, da memória e, ainda mais, da História, este relato que, por muito tempo, “esqueceu” as mulheres, como se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução, elas estivessem fora do tempo, ou ao menos fora do acontecimento.” 2

Pesquisando sobre as transformações urbanas na Vila e depois, distrito de Entre-Rios, através dos testemunhos das fontes fotográficas, os estudos apontaram para um crescimento urbano no entorno dos espaços “indicados” pelas estradas rodoviária e ferroviária, além dos terrenos à margem esquerda do rio Paraíba do Sul, constituindo-se o que atualmente é identificado como o centro da cidade de Três Rios.

Neste período entre a Vila de Entre-Rios e a emancipação e criação do município de Entre-Rios, grupos sociais escreveram a suas histórias e memórias, refletindo na própria concepção dos espaços sociais de relação, seus embates de memória, concebendo zonas segregadoras e de inter-relação, nos territórios da cidade, não somente considerando sua ocupação física, mas e principalmente, a formação econômica e cultural da sociedade.

Uma análise da população da cidade de Três Rios na atualidade através dos espaços urbanos organizados em bairros residências populares e o centro dividindo-se principalmente entre os prédios mais luxuosos e casas residenciais e lojas comerciais – incluindo-se clubes, escolas particulares e universidades; permite constatar que os indivíduos negros e mulatos em sua grande maioria estão vivendo nos bairros em casas mais simples e trabalhando em atividades profissionais que exigem mais esforço físico e um nível escolar menor.

Mesmo distinta na sua origem do período delimitado neste trabalho, tem-se na imagem 86 digitalizada de um jornal, a configuração de uma representação que se construiu como consequência dos embates de memória entre grupos detentores dos poderes políticos e econômicos e as minorias sociais, presente ainda atualmente – que perdura desde o século XIX e que entendo define muito bem os papéis imputados aos negros.

Fotografia 9: Imagem digitalizada da parte superior da capa do periódico “Correio Trirriense” na sua edição de nº 413 de 30 de abril de 1970.

A imagem do negro neste exemplo está diretamente relacionada às representações do trabalho, de um proletariado amigo e subserviente, do homem humilde e religioso, simboliza o popular que se expressa enquanto grupo social apenas nas manifestações de cultura, música e esporte, aquele que se faz feliz com os benefícios providenciados pelos grandes líderes políticos. A posição do homem negro nesta imagem – ele está num plano menor, numa atitude de reverência -, indica uma supremacia de um (o branco benevolente) para com o outro. O texto de inferência a imagem reforça estes estereótipos.

 “Alberto Lavinas, o líder popular [o homem branco como líder, o chefe, o que segue na dianteira e tem suas vontades e determinações definidas como as melhores para o povo], o amigo dos trabalhadores, comemora o 1º de maio inaugurando obras que farão mais feliz o proletariado trirriense. No flagrante de Abdisio, o Prefeito Lavinas abraçando a um dos muitos trabalhadores trirrienses, homenageia de maneira simbólica, aquele que constrói a grandeza nacional: o Trabalhador Brasileiro.”


Em 22 de janeiro do mesmo ano, ou seja, 5 meses antes, na edição nº 401 do “Correio Trirriense” na sua capa, esta mesma fotografia é utilizada pela primeira vez, para enaltecer a relação entre o povo da cidade de Três Rios/RJ, mais especificamente, do bairro Monte Castelo, que através deste gesto de um dos seus moradores “agradecia” as melhorias realizadas naquele logradouro pelo governo municipal. O abraço representava a devoção e a manifestação de carinho de todos os residentes:

 “O governador trirriense recebe “AQUELE ABRAÇO” tão querido José Grilo, trirriense autêntico, homem do povo, velho motorista do DNER, morador antigo do bairro do Monte Castelo e irrestrito admirador do Chefe do Executivo trirriense”. 4

Os discursos da cidade são construídos e reconstruídos nas ações dos diversos grupos sociais que a compõem; mas todos de uma forma ou de outra, lembrados ou deixados no esquecimento, “escrevem” seus traços identificadores culturais: assim também os negros libertos e seus descendentes construíram sua fala, sua narrativa, memória visitada pelas fontes e testemunhos literários e fotográficos.

Referencias:

1 – Boletim nº 3 da Sociedade Central de Imigração do Rio de Janeiro, de 1884. Relatório do Srº Drº Ennes de Souza, apud, INNOCENCIO, Isabela Torres de Castro. Liberdade e acesso à terra. Rio de Janeiro/RJ. Folha Carioca Editora Ltda. 2005.

2 – PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru/SP. Editora Edusc, 2005.

3 – PREFEITO homenageia data do trabalhador inaugurando melhoramentos. “Correio Trirriense”. Três Rios/RJ. Ano IX, quinta-feira, 30 de abril de 1970, nº 413, capa.

4 – PREFEITO homenageia data do trabalhador inaugurando melhoramentos. “Correio Trirriense”. Três Rios/RJ. Ano IX, quinta-feira, 30 de abril de 1970, nº 413, capa.

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Bacharel em Administração pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro , Licenciado em História pela Universidade de Uberaba, Pós-Graduado em Docência do Ensino Superior pela Faculdades Integradas de Jacarepaguá, Mestre em História Social - linha de pesquisa em História Cultural pela Universidade de Vassouras/RJ. Foi Presidente da Fundação Educacional de Três Rios/RJ, e Professor dos cursos de Pedagogia (História da Educação, História da Arte, Arte e Educação) e Logística (Comercio Exterior) da Faetec de Três Rios/RJ.

2 Comments

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