“Daspu”: Estigma ante o imaginário social da prostituição.

Milena Gomes de Senna

 

Milena Gomes de Senna

Licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) – Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional (ESR), Campos dos Goytacazes. Atuou como bolsista no “Programa Bolsa Desenvolvimento Acadêmico 2017”, associada ao Projeto “ Ensino de História, Lei 10.639 e a formação de professores: Perspectivas para a educação das relações étnico-raciais”. No ano de 2018 a 2019, atuou como bolsista na Iniciação à Docência CAPES (PIRP), pelo Projeto “Enquadramento de Memórias de Campos dos Goytacazes: História Pública e Ensino de História” residindo no Colégio Liceu de Humanidades de Campos. Atualmente participa do projeto de extensão “Formação continuada para professores que atuam na rede pública do município de Campos dos Goytacazes: tecnologias em sala de aula, uma relação entre o saber e o fazer” na UENF, Laboratório CCH/LEEL. Também é aluna na Universidade Federal Fluminense (UFF), na modalidade de bacharelado em História.

 

“Daspu”: Estigma ante o imaginário social da prostituição.

Resumo:

Este artigo tem como objetivo refletir o imaginário social atribuído às trabalhadoras sexuais ao longo da história da humanidade, que por sua vez está atrelado ao estigma produzido socialmente. Na contramão das imposições sociais  nasceu a ONG Davida e a grife Daspu que serão abordados devido à importância deste movimento na busca de reivindicar o direito à cidadania, o respeito à cultura, segurança, a manifestação contra a marginalização da profissão e seu estigma histórico-cultural que corresponde à demarcação civilizatória das sociedades em que o patriarcado é reproduzido no âmbito da composição da família nuclear. O debate apresentado neste trabalho é realizado com base nos pressupostos de Erving Goffman, acerca do conceito de estigma social,  relacionando-o a obra de Michel Foucault e o livro “Puta feminismo” da Monique Prada militante em defesa dos direitos das trabalhadoras sexuais, assim como a respeito da influência do feminismo como tema “fundante” das reivindicações por direitos humanos e o bem estar em busca da regulamentação por lei.
Palavra chave: ONG Davida; Daspu; Estigma; Imaginário Social.

 

INTRODUÇÃO:

 

Cada indivíduo desenvolve um papel construído no espaço das interações sociais, podendo ser estigmatizado caso não cumpra o modelo que lhe foi esperado socialmente (GOFFMAN, 1980). Nesta perspectiva, o presente trabalho tem como objeto a prostituição feminina, uma profissão que conseguiu avançar em relação aos direitos civis ao longo do século XX, porém ainda não é regulamentada no Brasil contribuindo para o seu exercício na clandestinidade. Importante salientar algumas premissas básicas para a compreensão deste trabalho, pois se restringe a tratar de um grupo de trabalhadoras sexuais em sua grande maioria cisgênero, de classe social baixa, maiores de idade que optaram por exercer tal profissão, não pretendendo adentrar a causa desta escolha ou casos de exploração sexual e abuso, que se enquadram como um ato totalmente criminoso e repudiado.
A reflexão se inicia  abordando a teoria do estigma social tratada pelo sociólogo Erving Goffman, investigando a forma de se relacionar dos indivíduos, simbolismos e a maneira que se dá a relação social em diferentes grupos, sobretudo os enquadrados como categoria de descrédito. A discussão ressalta uma breve perspectiva histórica acerca da profissão e o papel desempenhado pela mulher na civilização Antiga à Idade Moderna.
No capítulo seguinte é abordado a construção do movimento de prostitutas no Brasil, no final dos anos 1970 com base no livro “Daspu: A moda sem vergonha.” de LENZ, Flavio, 2008, com uma grande mobilização das mulheres no centro de São Paulo contra a violência e opressão recorrentes no cotidiano da categoria. Este acontecimento fortalece a militância de Gabriela Leite, liderança na busca por direito e a realização de novos projetos que contribuem na construção de um novo imaginário a respeito desta atividade desenvolvida por mulheres, confrontando um outro estigma: o da vitimização. A grife Daspu nasceu no ano de 2005 na cidade do Rio de Janeiro e ganhou visibilidade nos meios de comunicação, despertando o interesse do público com a “batalha das grifes” iniciada pela butique paulistana Daslu, que demonstrou o preconceito moralista “pequeno burguês”, e suas proprietárias receberam críticas por suas atitudes preconceituosas.
Resgatar essas memórias é humanizar as histórias de vida destas profissionais, que são mães, filhas e avós considerando a importância de combater ao estado de exclusão normativa, condenada pela moral dos “bons costumes” que as perseguem durante séculos.

Estigma:

O interacionismo simbólico faz parte do conjunto de sociologias contemporâneas,‌ também chamada de representação teatral com a ideia de que os indivíduos desenvolvem papéis nas relações cotidianas como se estivessem em um teatro. Para refletir sobre o desempenho desses papéis,‌ será utilizado como base a obra “Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”,‌  do sociólogo,‌ antropólogo e escritor canadense Erving Goffman no século XX,  a teoria  traça uma análise na década de 60 para compreender como ocorre o processo de separação dos indivíduos considerados “diferentes”, sofrendo exclusões constantemente. O estigma pertence a todos os cidadãos, é um desvio do padrão de comportamento esperado que é imposto socialmente a determinados grupos ou indivíduos.
Os argumentos cristãos segundo Lima e Teixeira, (2008) contribuem para sustentar a misoginia, pois associam a mulher como detentora do mal, do perigo, sedutora, pecadora, à filha de Eva. Diante disso, o exemplo de comportamento feminino a ser seguido deveria ser o de Maria, mãe de Jesus, se dedicando a ser mãe, esposa e “pura”, propagando a concepção de que “a mulher é fruto de uma costela do homem”. Para Michel Foucault, o desenvolvimento das sociedades burguesas vitorianas e do capitalismo inicia uma hipótese repressiva, vista de maneira autoritária transformando a sexualidade que antes do século XVI era relativamente livre e passa a ser centralizada na família e resguardada para quatro paredes, no quarto dos pais e avós. No entanto, embora a Igreja afirmasse sua posição rígida contra todo relacionamento sexual fora do matrimônio, considerando o ato como pecado, a prostituição nunca foi proibida pois passou a ser encarada como um “mal necessário”, destinado aos homens. Contudo a Idade Média, atribuiu uma significativa rejeição no imaginário coletivo em relação ao trabalho sexual, sinônimo de desvio de caráter e moral.
Atualmente a palavra estigma possui diferentes significados, mas especialmente no que se refere aos aspectos sociais, para a sociologia o conceito de estigma social está relacionado com a categorização de um grupo por outro,‌ conferindo um grau inferior de status social, seja pela sua origem ou condição. Atribuir uma marca a um grupo está associado às pré-concepções que estereotipa esses indivíduos, revelando o preconceito semelhante ao ocorrido “guerra das grifes” iniciada pela butique paulistana Daslu, alegando que qualquer comparação a grife Daspu estaria rebaixando sua imagem, pois a marca carioca seria composta por trabalhadoras sexuais, indivíduos automaticamente desacreditados socialmente.

Considerando a teoria goffmaniana, será abordado neste trabalho especificamente a categorização conforme “culpa de caráter individual”, percebida como distúrbios mentais,‌ questões relativas ao comportamento ligados a sexualidade,‌ paixões tirânicas ou não naturais,‌ crenças consideradas falsas como religiões afro-brasileiras,‌ desonestidade,‌ posicionamento político radical entre outros. Estes não são atributos necessariamente do corpo físico, visível de imediato, porém são condições que levam alguém a ser estigmatizado. A escritora e trabalhadora sexual Monique Prada, afirma que:

Em geral, as pessoas não conseguem perceber que a prostituta pode ser a vizinha que cria seus filhos sozinha, a universitária que mora ao lado, a moça independente e discreta da casa da frente. Almoçamos, jantamos, consumimos. Existimos, por mais que existirmos também fora do gueto seja inconveniente em uma sociedade profundamente hipócrita e conservadora – uma sociedade que nos alimenta, mas não quer que sentemos à mesa. (p.68)”.

 

Os aspectos “não contaminados” da identidade social de um indivíduo não consegue lhe conferir o respeito e a consideração que ele havia previsto, mesmo que todas as demais características se apresente conforme a “norma”, ainda assim pode não ser compensatório em relação ao estigma que carrega. O contato entre os “normais” e os estigmatizados pode ser estabelecido por tensão ou acolhimento e compreensão das diferenças. O termo “iguais” na obra goffmaniana é utilizado para englobar todas as pessoas que apresentam um atributo que os diferencia dos demais como no caso da ONG Davida,‌ são indivíduos que possuem traços em comum e, portanto, se identificam um com os outros a partir da narrativa estigmatizado. O grupo de pessoas que concedem apoio aos estigmatizados são os “informados”,‌ essa terminologia faz analogia ao termo utilizado por homossexuais que ao longo do tempo foram chamados de simpatizantes. É a idéia dos indivíduos que de alguma maneira partilham da vida de quem é estigmatizado,‌ portanto gozam de certa aceitação dentro do grupos de “iguais”,‌ assim o “informado” que não possui um atributo de descrédito mas em função de uma certa simpatia pelo estigmatizado estará classificado no grupo que está entre os “normais” e “iguais” que possuem algum atributo,‌ como parentes e amigos. O estigma, portanto, provoca uma separação na sociedade entre os “normais” e os “desviantes”. Cria-se uma aproximação entre os estigmatizados como uma rede de proteção e aceitação da sua própria condição,‌ como por exemplo no caso da ONG Davida, que para além das trabalhadoras conta com a contribuição de familiares, amigos e cônjuges, os “informados”.

O Nascimento da Grife, Repercussão Midiática e Estigma:

Quanto à história do nascimento da grife Daspu é de grande relevância abordar sobre a fundadora, Gabriela Silva Leite, batizada como Otília e falecida em 2013 vítima de um câncer. Buscou fortalecer a cidadania das “mulheres da vida”, mobilizou juntamente com outras ativistas a criação de projetos como a Rede Brasileiras de Prostitutas e a ONG Davida. De acordo com o livro “Daspu: a moda sem vergonha” (2008), escrito pelo jornalista, ativista e companheiro de Gabriela, Flavio Lenz. Afirma que a Rede Brasileira de Prostitutas surgiu com o intuito de organizar mulheres que atuam na prostituição de diversos lugares do país, para conhecer suas diferentes reivindicações, saberes e dialogar com a sociedade. Seu ativismo inicia em 1979, porém o dia 12 de junho de 1982 é impulsionado, Gabriela mobiliza com suas colegas de ofício uma passeata em São Paulo para denunciar um ato de violência da polícia militar contra as prostitutas da Boca do Lixo ocasionando na morte de três mulheres, entre elas uma estaria grávida. Devido ao apoio da mídia que divulgou o caso, o movimento realizou uma assembleia dois dias após o ato que resultou no afastamento do delegado responsável, Wilson Richetti.

Em 1987, o desejo de Gabriela em reunir uma grande quantidade de trabalhadoras se concretiza com o I Encontro Nacional de Prostitutas na cidade do Rio de Janeiro, articulado junto a amiga Lourdes Barreto, ativista paraibana. Este evento promoveu a articulação política que dá base a Rede Brasileira de Prostitutas interligando e fortalecendo a identidade profissional do grupo. Estiveram presentes 70 mulheres de diferentes estados como São Paulo, Bahia, Pará, Goiás, Rio de Janeiro entre outros. Para debater e denunciar a violência por parte do Estado e  a epidemia da HIV/Aids, infecção sexualmente transmissível que segundo a medicina higiênica, homossexuais e prostitutas são enquadrados como “grupo de risco” (GUIMARÃES, 1996), aumentando a discriminação e estigma social sobre eles :

“O discurso médico sobre a prostituição produzido na segunda metade do séulo passado define a livre manifestação do desejo sexual pelas noções de excesso de prazer e/ou ausência da finalidade reprodutora e a insere no espaço da sexualidade pervetida e doente. (GUIMARÃES, 1996, p.300)”.

Entanto, esse encontro serviu para firmar os laços, a identidade e base para a fundação de associação em diferentes estados, uma rede ou melhor uma união da cidadania de cada uma, valorizando seu protagonismo como afirma o slogan  do encontro “Mulher: da vida, é preciso falar”.
Após alguns anos, em 1992, a ativista funda a Organização não governamental Davida – prostituição, direitos civis e saúde, que se concretiza como entidade que atua por trás da criação de todos os projetos e políticas públicas voltado às necessidades das profissionais dos sexo, seja na área da cultura, educação ou saúde contando com parcerias como o Programa Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde. Com o intuito de organizar a categoria contra o preconceito, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, violências em geral, além do reconhecimento da prostituição como profissão legal e direitos humanos. O jornal Beijo da Rua é mais um veículo criado por Gabriela e aliados no ano de 1988, para disseminar a comunicação, notícias, poemas, desfiles de moda entre outras coisas sobre a prostituição a nível nacional e internacional dando a elas o total protagonismo.
Devido a articulação da categoria contra o estigma, a favor do cuidado e a elevação da autoestima, no ano de 2002 se tornou possível que o Ministério da Saúde produzisse uma campanha nacional de prevenção à HIV/Aids com o slogan “Sem vergonha, garota. Você tem profissão”. A iniciativa contou com adesivos, cartilha, manual, agenda, bottons e spot de rádio informando sobre as principais doenças sexualmente transmissíveis, a importância do preservativo, informações sobre o câncer de mama, dependência química entre outros assuntos que contribuíram na área de políticas públicas. Para o movimento é importante dar um passo além da área de saúde, assim no mesmo ano a prostituição foi incluída na relação de atividades profissionais do Ministério do Trabalho, a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO).
Em julho de 2005 a Ong Davida completava 13 anos em ótimo estado financeiro e de realizações, bastante focado em ações culturais e comunicação em busca de uma maior integração social. Neste período os projetos existentes eram o grupo de “Mulheres Seresteiras”, a apresentação da terceira temporada da peça “Cabaré Davida” um espetáculo para agregar conhecimento e quebra de estigma contra o Hiv/Aids, e o bloco de carnaval “Prazeres Davida”, os três eventos acontecem em praças e ruas do centro do Rio de Janeiro, geralmente no principal ponto boêmio e espaço de batalha das mulheres que atuam na Ong, a Praça Tiradentes.  Com todo esse clima de festa e realizações, na tarde de 15 de julho de 2005 os membros da Ong celebram na sede no bairro do Estácio, os 13 anos de mobilização e trabalho com petiscos, conversas, danças e bebidas. Nesta noite sentada em uma mesa no segundo andar da casa sede, Gabriela e alguns membros da Davida, entre eles o designer Sylvio de Oliveira, para quem comenta sobre a ideia de uma confecção proposta inicialmente por Imperalina Piedade da Silva colaboradora ativa nas criações da organização e costureira. Segundo Gabriela: “As meninas, a Lina, principalmente, andava falando muito de a gente ter uma confecção. Acho que seria melhor uma história de grife, de moda mesmo, que pudesse até levantar dinheiro para a Davida” (LENZ, 2008, p.47).

Nesse exato período, a grife da alta sociedade paulistana Daslu, estava envolvida em um escândalo de lavagem de dinheiro e sonegação de imposto estampado em todos os jornais, sites e tv. Com o assunto em alta, Sylvio aborda “Ah, já sei o nome: Daspu!” gerando gargalhada das pessoas ao redor, pois ninguém imaginaria que a ideia fosse a frente, porém ela foi concebida, devido uma descoberta de forma inusitada. Segundo o assessor de comunicação da Daspu, Flávio Lenz (2008), relata que o projeto foi deixado um pouco de lado após a festa de aniversário da Ong, devido às tarefas diárias já existentes, mas ainda era pauta de discussão na mesa do bar, (LENZ, 2008), cita a possibilidade de bares na Glória o “Taberna” ou “Caçador”, chamado pelo grupo de Varanda’s ambos eram bastante frequentados por eles, por tanto esses locais considera-se a hipótese de algum ouvinte alheios ali presente, ter vazado para imprensa uma versão do surgimento da grife diferente da original. No entanto, no dia 20 de novembro de 2005, saiu uma nota do Elio Gaspari no jornal “O Globo”, dizendo sobre o surgimento de uma grife de prostitutas, a Daspu, e ainda menciona o apoio de uma ONG escandinava, estrangeira.
Assustados com essa informação do nascimento da grife e com receio de terem perdido uma ideia, Gabriela como dirigente da organização começa entrar em contato com alguns colegas, para saber a origem dessa ONG estrangeira. Mas logo, o telefone tocou à procura de informações sobre a tal grife, era o Marcelo Bastos, jornalista do “O Dia”, em busca de detalhes do surgimento. Roupas, confecção, proposta e protagonistas por trás da Daspu, para serem lançadas em uma matéria, Gabriela confirma a existência da marca, afirmando ter uma “linha completa”: “Folia, com roupas de festa; Básica, para visual do dia-a-dia, e Lingerie, direcionada às prostitutas que trabalham em locais fechados, com direito a peças apimentadas”(LENZ, 2008, p. 47). A equipe se tranquiliza após o contato do jornalista, pois a ideia estava firme, porém faltava planejamento, agora era o momento de criar de fato o visual da marca, um logotipo para sair no jornal e pensar na confecção. O designer Sylvio cuidou da parte estética imediatamente e no dia 21 de novembro, segunda-feira, saiu a matéria no jornal “O Dia”, identificando o nascimento inesperado e o susto da grife. Naquela mesma agitada segunda-feira, a ONG recebeu ligações dos jornais Folha de São Paulo e Isto É. Um repórter da revista semanal marcou de comparecer à sede da ONG no dia seguinte para fotografar as peças da grife, porém a única foto possível foi de Gabriela segurando dois papéis de folha A4, um com a imagem da marca e outro com a arte-final da camiseta do bloco Prazeres Davida, que por acaso teria ensaio na mesma segunda-feira, aproveitando para expandir a ideia da grife nas ruas, gerar mais visibilidade para o bloco entre os carnavalescos e movimentar lucro com a venda de camisas. O evento aconteceu na Praça Tiradentes percorrendo até a rua Imperatriz Leopoldina, no centro do Rio de Janeiro, com a presença de muitos foliões chamando atenção de jornais e revistas a grife era a queridinha do momento, com toda essa movimentação e popularidade em três dias, na quarta-feira 23 de novembro, os organizadores decidem produzir a primeira peça de forma rápida e básica, uma camiseta com o logo da marca na frente, feito em transfer. No dia seguinte estava pronta e gerando a felicidade do grupo. Nota-se que a grife não estava estruturada, pois o nascimento ocorreu de forma inesperada, porém chamou a atenção da mídia que noticiou cada informação descoberta do projeto criado por prostitutas na cidade carioca, aumentando cada vez mais a visibilidade e apressando seu desenvolvimento. Após dias de estreia, as prostitutas recebem um convite do programa Fantástico para aparecer na TV nacional assistida por uma grande massa, com uma matéria exclusiva, contando sobre a marca e desfile das suas peças, porém a equipe tenta adiar um pouco para o mês de dezembro. Devido ao convite inesperado, novamente tudo se dá na correia, Imperalina Piedade da Silva, a Lina foi fundamental produzindo cada roupa, desde minissaia a vestido com flu-flu. Conquistando espaços de comunicação de massa, as ativistas dispõem da possibilidade de propagar não apenas sua marca, mas a causa ideológica, cultural e política das prostitutas. No entanto a repercussão da grife que reafirma a identidade das putas Davida, se assemelhando ao nome da famosa luxuosa multimarca paulistana Daslu criada em 1958, em alta nas manchetes de jornal do período devido a acusação de sonegação fiscal, subfaturamento na importação de mercadorias e contrabando envolvendo a sócia Eliana Tranchesi, presa pela Polícia Federal. A visibilidade da recém grife deu início imediato a dois movimentos opostos, a movimentação da equipe Daspu para conseguir de fato concretizar a marca, fazendo o projeto sair do imaginário, e da Daslu que não estava gostando das notícias associando uma grife de prostitutas ao nome da butique paulistana pois iria difamar sua imagem, por tanto se mobilizam rapidamente para impedir. No dia 28 de novembro, segunda-feira a Ong recebe uma notificação extrajudicial datada no dia 24 de novembro de 2005, que se  refere a brincadeira publicada no jornal Folha de São Paulo com o nome “Daslu x Daspu”, vista pela multimarcas milionária como uma forma de “sujar” sua imagem, por tanto ameaça processar a ONG caso o nome “Daspu”, não fosse trocado em dez dias, demonstrando grande ato de preconceito da sonegadora paulistana direcionado a categoria social aborda como marginais, que por outro lado, acabou ganhando mais repercussão midiática com o escândalo. No dia primeiro de dezembro, a mídia informa que a Daspu havia contratado um advogado para cuidar do caso e não desistiria do nome, já que a decisão de continuar teria derivado de centenas de mensagens diárias, com o apoio de mulheres da vida e aliados da causa, denominado por Goffman de “iguais” e “informados”, que se indignaram com a atitude tomada pela butique da alta burguesia paulistana Daslu, e a evidente posição da mídia que contribuiu discursivamente a seu favor gerando a chamada “batalha das grifes”.

A Daspu, como todo  empreendimento, precisava de publicidade para entrar e se manter no mercado, no caso da grife das prostitutas a mídia espontânea foi a grande aliada. No dia seguinte, quarta-feira, a marca tinha a esperada gravação para o programa “Fantástico” com um desfile exclusivo que contou com poucas peças confeccionadas pela única costureira da Ong que acompanhou os bastidores. As imagens do desfile foram produzidas no Arcos da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro, com as modelos : Val Pereira, Jane Eloy, Maria Nilce e Juliana de Freitas. Demonstrando a afirmação da arte das putas em rede nacional e continuidade da marca, segundo Gabriela : “Quero deixar bem claro que a palavra DAS é uma palavra da língua portuguesa, não é de propriedade de ninguém. O PU é nosso, é da nossa profissão.”(LENZ, 2008. p.55)
Ao decorrer dos dias a cobertura midiática abordando a “batalha das grifes” só crescia, com notícia do “Jornal do Brasil” na coluna do Eric Nepomuceno no dia seis de dezembro, aborda de forma “crítica” o estigma jogado em cima dessas mulheres sem vergonha de ganhar a vida e caminhar na contramão da moral socialmente estabelecida. A reportagem da Folha de S.Paulo no dia onze de dezembro, na coluna da jornalista Mônica Bergamo, contextualiza o confronto jurídico entre as marcas, assunto que estava em alta no período e a construção da primeira coleção confeccionada para ser lançada em fevereiro, no entanto a Daspu já estava disponibilizando a venda de camisas pela internet, no site da marca.

Compreendendo o fenômeno da globalização, com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa incorporados à vida em sociedade e a capacidade da difusão de ideias de maneira impactante, como vimos acima no caso Daslu x Daspu. Para Gramsci, a dominação  de um grupo exercida sobre as demais se estabelece de forma instável, possibilitando compreender o termo “lutas hegemônicas”, que seria a organização da luta de grupos excluídos socialmente se opondo e atingindo o poder, neste contexto se relaciona com a vitória da Daspu um projeto ligado a cultura, moda, arte e política. Desse modo, a mídia abrindo espaço para a divulgação do trabalho de grupos marginalizados, como a grife Daspu, é uma maneira de contribuir para uma maior visibilidade e divulgação em larga escala de grupos sociais como as prostitutas, denominado pela teoria goffmaniana como categoria de descrédito. A grife Daspu, que surpreendentemente surgiu na mídia e ganhou o apoio popular no conflito com a butique paulistana, possibilitou que esse grupo de mulheres ampliasse cada vez mais o espaço para expor suas questões e discutir sua posição de inferioridade na sociedade, se tornando mais que um símbolo comercial. Estas minorias de direitos, investem em narrativas que tem por objetivo, a desconstrução do imaginário hegemônico e de percepções sociais comprometidas com uma lógica elitista e excludente.
Diante de acontecimentos favoráveis para as dasputinhas, aproveita-se o finalzinho de dezembro, antes das datas comemorativas, para realizar o primeiro desfile da grife, com dez peças, que seria a prévia da coleção marcada para sair em março de 2006. Já o desfile acontece no dia 16 de dezembro, uma sexta-feira em praça pública, com autorização da prefeitura do Rio de Janeiro na Praça Tiradentes.
A grife Daspu, desde a sua primeira aparição obteve um grande espaço na mídia a nível mundial, tendo a oportunidade de divulgar não apenas seu trabalho, mas ocupar uma posição importante de visibilidade e combate ao preconceito em busca de direitos como o reconhecimento da prostituição como uma profissão legal.

Considerações finais:

No Brasil no ano de 2003, a regulamentação da prostituição foi apresentada como Projeto de Lei 98/2003, pelo ex-deputado federal do Rio de Janeiro, Fernando Gabeira pelo Partido Verde, porém este foi arquivado, surgindo no ano seguinte a PL 4244/2004, do ex-deputado Eduardo Valverde do Partido dos Trabalhadores, que também é arquivada. A pauta da regulamentação, voltou a ser apresentada no ano de 2012, através do ex-deputado Jean Wyllys do PSOL o Projeto de Lei 4211/2012, ficou conhecida como PL Gabriela Leite que contém a mesma finalidade dos projetos anteriormente apresentados. O Projeto, aborda a profissão para além do estigma, marginalização ou busca de direitos civis, ressaltando também a importância de distinguir a prostituição da exploração sexual, dando a possibilidade do Estado fiscalizar e combater a exploração sofrida por mulheres, jovens ou crianças. A exploração sexual consiste em atos como por exemplo, o não pagamento de serviços prestados voluntariamente, o indivíduo que é forçado a fazer todo e qualquer tipo de trabalho sexual independente da idade e o exercício da profissão por menores de dezoito anos, sendo enquadrado como abuso. Assim, a lei configura a exploração sexual como um ato criminoso, que deve ser averiguado e penalizado. Já o ofício da profissional do sexo, deve ser praticado de forma autônoma e voluntária, por indivíduo maior de idade, capaz psicologicamente e obtendo remuneração pelo seu serviço. A PL afirma que o intuito da regulamentação não é aumentar o número de profissionais, por outro lado busca a redução de riscos e preconceitos que carrega a atividade, além de afirmar direitos humanos, para um grupo marginalizado por uma falsa moralidade social.
O terceiro projeto de políticas públicas que reivindica a regulamentação e prevê direitos a longo prazo como a aposentadoria, se encontra atualmente arquivado. Este projeto de regulamentação criado pela Rede Brasileira de Prostitutas, a única rede em defesa das prostitutas neste contexto junto a assessoria do ex-deputado Jean Wyllys, divide opniões pois  no tempo presente existem outras redes de prostitutas a Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (CUTS) criada em 2015 e a Articulação Nacional de Profissionais do Sexo (ANPS) criada em 2016, que junto ao advento da internet tornou o debate mais amplo, questionando esse modelo de regulamentação que busca englobar todas as mulheres de diferentes classes e raça desconsiderando suas especificidades, algumas mulheres têm mais escolhas, outras tem menos escolhas. Assim, o debate sobre o que fazer com o trabalho sexual no Brasil deve ser assumido pelas prostitutas de forma mais direta.

Em 2011 o deputado e pastor João Campos do PSDB-GO apresentou o PL 377/11, que criminaliza o ato de pagar ou oferecer pagamento a algum indivíduo pela prestação de serviço de natureza sexual. O PL transita no Congresso Nacional até o momento, uma ameaça aos direitos das trabalhadoras. No entanto, a luta das profissionais continua diante da necessidade de serem reconhecidas como cidadãs, interlocutoras e intelectuais da sua própria história.
No tempo presente o movimento político fundado por Gabriela Leite em 1992 no Rio de Janeiro, foi nomeado “coletivo puta da vida” e atua nas mídias digitais com mais frequência desde 15 de julho de 2020 devido à crise sanitária e humanitária do novo COVID-19. O novo formato de organização nas mídias sociais instagram e lives no youtube é uma alternativa de continuar fomentando os debates que rodeiam as trabalhadoras sexuais cisgêneras e transgêneras de todo Brasil. A luta das mulheres da vida se mantém a 29 anos, contra o estigma e por condições melhores para a sua ocupação profissional.

Bibliografia :

Estigma – Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução: Mathias Lambert. Data da Digitalização: 2004. Data Publicação Original: 1891.

“O termo “categoria” é perfeitamente abstrato – e pode ser aplicado a qualquer agregado, nesse caso a pessoas com um estigma particular. Grande parte daqueles que se incluem em determinada categoria de estigma podem-se referir à totalidade dos membros pelo termo “grupo” ou um equivalente, como “nós” ou “nossa gente”. Da mesma forma, os que estão fora da categoria podem designar os que estão dentro dela em termos grupais. (p.23)” GOFFMAN,‌ Erving.

LIMA, R. S. S.; TEIXEIRA, I. S. Ser mãe: o amor materno no discurso católico do século XIX. HORIZONTE-Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 6, n. 12, p. 113-126, 2008.

FOUCAULT, M. História da sexualidade I – A vontade de saber. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1994.

http://daspu.com.br/o-que-e/

LENZ, Flávio. “Daspu: A Moda sem Vergonha”. Coleção Tramas Urbanas da Editora AeroPlano, 2008.

GUIMARÃES, Carmen Dora., 1996. “Mais merece!”: O estigma da infecção sexual pelo HIV/AID sem mulheres. Revista de Estudos Feministas. p.297-318; 1996. Conferir:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16805/15396

Cartilha da campanha: “Sem vergonha, garota. Você tem profissão”
http://www.aids.gov.br/sites/default/files/campanhas/2002/38289/cartilha_maria_sem_vergonha.pdf

Matéria digital. Folha de S.Paulo, na coluna da jornalista Mônica Bergamo: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1112200510.htm

Monasta, Attilio.  Antonio Gramsci / Atillio Monasta; tradução: Paolo Nosella. – Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.  154 p.: il. – (Coleção Educadores)  Inclui bibliografia.  ISBN 978-85-7019-554-8. 1. Gramsci, Antonio, 1891-1937. 2. Educação – Pensadores – História. I. Título

Acesso ao projeto de Lei 93/2003 :

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=104691

PL 4244/2004 : https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/266197

https://www.instagram.com/coletivoputadavida/

Professora Doutora do Departamento de História do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do Laboratório de Estudos da Imanência e da Transcendência (LEIT) e do Laboratório de Estudos das Direitas e do Autoritarismo (LEDA). Membro do Grupo de Estudos do Integralismo (GEINT).

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