Memória da Ditadura
Hugo Gaspar Rezende Emerick
Hugo Gaspar Rezende Emerick
Graduação em Licenciatura em História pelo Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional no polo universitário da Universidade Federal Fluminense de Campos dos Goytacazes. Membro do Laboratório de Estudos das Direitas e do Autoritarismo (LEDA – UFF) e participante do projeto de extensão “Pré-vestibular social #Vemprocursinho”, pelo Instituto Latino-Americano para Ciência, Educação e Desenvolvimento. Possui interesse nos estudos referente a História Oral, Memória e Ditadura Empresarial-Militar brasileira. Tem como recorte principal de pesquisa Memória dos marginalizados no período ditatorial brasileiro.
Memória da Ditadura
Hugo Gaspar Rezende Emerick
É possível iniciar uma análise sobre a construção das memórias da ditadura empresarial-militar, mais especificamente pelos governos da nova democracia formulada a partir de 1985. Também é importante discutir como descobertas recentes fizeram com que esta memória fosse revista, a luta pela hegemonia histórica do período e como nas políticas atuais a ditadura se faz tão presente e importante para entender determinados jogos da organização política e social.
No texto “A constituição das memórias sobre a repressão da ditadura: o projeto Brasil Nunca Mais e a abertura da vala de Perus”, a historiadora Janaína de Almeida Teles desenvolve uma análise sobre este processo histórico utilizando a publicação do projeto Brasil Nunca Mais de 1985 e a abertura da vala de Perus em 1990. O diálogo entre estas duas fontes teve como objetivo trazer reflexões sobre a formação da memória social brasileira referente à ditadura empresarial-militar, marcada por grandes silêncios e interdições do Estado. O processo de redemocratização brasileira sucedeu sem romper definitivamente com os baluartes da ditadura. Em função desta continuidade, que a efêmera democracia brasileira se predispusera a avaliar os vinte e um anos de um governo autoritário enfrentaria grandes dificuldades. Estas dificuldades eram impostas pelos resquícios que a democracia herdara dos seus governos antecessores.
Quase sessenta anos depois do golpe, o Brasil segue em uma disputa entre as novas e antigas gerações que se colocam à disposição de ler o passado ditatorial. As discussões em cima das análises sobre este passado se liga diretamente aos atores sociais que compõe a materialização destas memórias, caracterizada pela necessidade em afirmar a legitimidade dos seus processos individuais com o passado e a parcialidade do Estado ao compor quais atores irão dar voz no processo de construção das Histórias e Memórias Oficias[i] composição destas narrativas é a responsável por silenciar determinados grupos e/ao exaltar outros, reverberando pelo território nacional inverdades sobre o que de fato foi a ditadura.
A publicação do livro “Brasil Nunca Mais (doravante, BNM)” em 1985 pode ser considerado o marco inicial na disputa de memória que o Brasil começaria a enfrentar após a redemocratização. Em suas páginas o livro expõe crimes cometidos pelo Estado através de registros encontrados nos arquivos da justiça militar. O exemplar se tornou artefato de domínio público. Assim, o BNM influenciou a construção de uma consciência coletiva referente aos crimes cometidos pelo Estado, se tornou objeto de formação nas escolas e universidades, denunciando os crimes que de certa forma se desdobram até os dias atuais. Além disso, o BNM registrou as condições das vítimas que contavam de forma detalhada suas agonias diante das torturas sofridas, registrando de forma muito clara a instrumentalização da tortura pelo regime[ii]. O impacto do livro pode ser compreendido ao expormos alguns relatos gráficos e chocantes, como os exemplos a seguir. O primeiro é o relato de José Milton Ferreira de Almeida, engenheiro de 31 anos que descreveu como era o “pau-de-arara”:
(…) que o pau-de-arara era uma estrutura metálica, desmontável, (…) que era constituído de dois triângulos de tubo galvanizado em que um dos vértices possuia duas meias-luas em que eram apoiados e que, por sua vez, era introduzida debaixo de seus joelhos e entre as suas mãos que eram amarradas e levadas até os joelhos; (…)[iii]
A jornalista de 20 anos Miriam de Almeida Leitão Netto, por sua vez, conta como insetos e animais eram usados nas torturas e interrogatórios:
(..) que as apesar de estar grávida na ocasião e disto ter ciência os seus torturadores (…) ficou vários dias sem qualquer alimentação (…);
(…) que as pessoas que procediam os interrogatórios, soltavam cães e cobras para cima da interrogada; (…)[iv]
O bancário de 28 anos Apio Costa Rosa relatou as torturas que sofreu pelas autoridades policiais:
(…) que em determinada oportunidade foi-lhe introduzido no ânus pelas autoridades policiais um objeto parecido com um limpador de garrafas; que em outra oportunidade essas mesmas autoridades determinaram que o interrogado permanecesse em pé sobre latas, posicão em que vez por outra recebia além de murros, queimaduras de cigarros; que a isto as autoridades davam o nome de Viet Nan; que o interrogado mostrou a este Conselho uma marca a altura do abdômem como tem sido lesão que fora produzida pelas autoridades policiais (gilete); (…) [v]
Em termos de vendagem, a seleção de trechos e denúncias como as destacadas acima foi muito bem sucedida o BNM por dois anos subsequentes de sua publicação vendeu mais de 300 mil cópias, sendo a obra mais vendida no Brasil durante este período, possuiu sua publicação até 2009 com 38 edições.[vi] O BNM foi responsável por fomentar no país outras iniciativas que visavam investigar e expor os crimes do governo militar.
A abertura de uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, em setembro de 1990 na cidade de São Paulo fomentada pela então prefeita Luiza Erundina (PT), conhecida como Vala de Perus, talvez seja o marco mais importante para a historiografia brasileira entender a tamanha violação dos direitos humanos que o Estado cometeu, a iniciativa buscava restos mortais dos militares assassinados pelo Estado, nesta vala foram retirados 1.049 sacos com ossos humanos[vii]. A abertura da Vala foi marcada por grandes episódios, o horror que o Brasil vivenciou por 21 anos se fazia presente, a impunidade e o abuso de poder se materializa frente a sociedade, foram encontrados corpos completos, mas também foram encontrados pedaços isolados. Certamente a Vala de Perus serviu como validação para todos os relatos das vítimas que o Estado se empenhou para serem esquecidas.
A descoberta dos restos mortais repercutiu por todo o país, causando grande comoção nacional, sendo notícia das maiores emissoras de telecomunicação do Brasil[viii]. O governo da prefeita Erundina abriu uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal de São Paulo, na pretensão de apurar os crimes que levaram tantos cidadãos brasileiros a este triste fim. A repercussão foi tão grande que desencadeou a abertura de outras valas clandestinas, como no Rio de Janeiro e Pernambuco[ix]. O Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo e Rio de Janeiro teve seus arquivos revisados graças a pressão da CPI e dos familiares das vítimas, que pediram ao então presidente Fernando Collor a abertura dos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS) em 1991, desencadeando na criação da Comissão de Direitos Humanos do Congresso Nacional e promulgação da Lei dos Mortos e Desaparecidos Políticos 9.140/1995[x].
A investigação comandada pela CPI fez uso dos documentos já produzidos até aquele momento para fazer com que os participantes tivessem noção do que eles estavam lidando de fato. Dentre os materiais utilizados, o BNM foi uma das peças chaves para revisitar o período da ditadura através das memórias coletadas na obra. Após um longo período de investigação, a CPI descobriu que o Cemitério Dom Bosco passou a receber os corpos de presos político graças a um acordo feito entre o IML, DEOPS e Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) de São Paulo. O DOI-CODI era especialista em criar versões falsas sobre os mortos por tortura. Assim, modificavam procedimentos do IML, forjando a causa raiz de seus falecimentos, atrelando as mortes nos calabolços por tortura a outras naturezas. Assim os falecidos nos porões do regime tinham como motivo da morte em seu laudo tiroteios, atropelamento acidentes, suicídios e diversas outras causas[xi].
A memória da ditadura iniciou um processo de investigação muito forte a partir destes acontecimentos. Também foi neste momento que o Estado começou a bloquear inúmeros processos de responsabilização. A descoberta da vala de Perus poderia ter mudado o rumo que a história brasileira se tivesse sido vista com a relevância que lhe cabia para memória nacional. Infelizmente os processos judiciais e extrajudiciais para recuperar de fato o que aconteceu com as vítimas encontradas nas valas foi limitada em sua sistematização e divulgação. As atitudes tomadas pelo Estado neste período reverberam na atualidade já que causaram uma deficiência na construção de debates sobre a herança que a ditadura empresarial-militar deixou para a memória sobre o regime ditatorial, marcando mais uma vez a impunidade aos criminosos contra o estado democrático.[xii]
O caso da vala de Perus e do BNM são apenas dois exemplos aqui escolhidos para levantar questionamentos sobre o que foi a ditadura brasileira e como a mesma se reverberou na memória coletiva, em especial no que diz respeito a direitos-humanos. Graças aos grupos sociais que enfrentaram o Estado e os aparatos militares, no ato corajoso de produzir estes materiais, os crimes não foram totalmente abafados, ecoam na memória coletiva do país, mesmo que de forma limitada. Na atualidade, estes materiais são objetos de pesquisa para os profissionais da memória que tomam para si o dever de fazer com que o Brasil mude suas políticas de impunidade e atraso na reconstituição real dos crimes da ditadura. Diferentemente dos países latino-americanos que também enfrentaram períodos de ditadura, mas que possuem compromissos com as memórias subterrâneas, o Brasil não soube aproveitar as oportunidades de mudar este nacional.[xiii]
Histórias e Memórias Oficiais estão fadadas a modificação, e dependem em particular das forças políticas que ocupam os cargos chefes dos três poderes da democracia brasileira, principalmente do Poder Executivo. Este peso se constrói porque este pode deter grande influência na ideologia do país, marcando constantes mutações na leitura do passado. Forte exemplo desta afirmação foi a cerimônia que a então presidenta Dilma Rousseff organizou em 16 de maio de 2012, para sancionar a Lei de Acesso à Informação (LAI) 12.527/2011, que em suas linhas gerais determina que todos os cidadãos têm direito à informação.
A Lei 12.528/2011 que criava a Comissão Nacional da Verdade (CNV), possuindo como objetivo central a investigação as violações dos direitos humanos entre os anos de 1946 e 1988. O evento teve caráter solene, e nele se encontravam todos os ex-presidentes do regime pós-1988 caracterizando o objetivo da presidenta em reavaliar as violações do passado brasileiro. Importante relembrar que a própria presidenta foi vítima destes crimes, e daí a tentativa de marcar seu governo como um grande divisor de águas ao que se refere a Memória e História da ditadura.[xiv]
A CNV apresentou um relatório após dois anos e sete meses; este relatório foi dividido em três volumes com mais de quatro mil páginas. O material foi entregue à presidenta Dilma Rousseff em dezembro de 2014. A partir desta pesquisa feita pelo Estado diversos trabalhos começaram a ser produzidos nos mais variados espaços, nos canais abertos de televisão, os telejornais dedicavam matérias completas a entrevistas com vítimas do regime, além de produzirem conteúdos fictícios sobre o período na pretensão de fazer com que o grande público possuísse conhecimentos básicos sobre a ditadura, entre eles a supersérie “Os Dias Eram Assim” da rede Globo estrelado em 17 de abril de 2017 foi a que mais se difundiu. Nas academias os estudiosos começaram a produzir trabalhos analisando , exaltando mas, também questionando a CNV, seus aparatos e indo a lugares que a mesma foi incapaz de alcançar. No campo jurídico muito foi revisto sobre leis e mecanismos para que o Brasil não corresse o risco de viver momentos como os de outrora. A Comissão Nacional da Verdade contribuiu para modificar a Memória e a História do Brasil.
Ao se difundir em todo território brasileiro a Comissão Nacional da Verdade se fez presente nos municípios (Comissão Municipal da Verdade) e os estados (Comissão Estadual da Verdade) que iniciaram seus levantamentos sobre os crimes aos direitos humanos independente dos estudos feito pelo Estado. Esta movimentação ficou conhecida como “justiça de transição”, já que a CNV foi uma instituição criada no âmbito jurídico-politico. Seus desdobramentos foram tomando forma desde 1990, uma vez que nesse período muitos países (principalmente os latino-americanos) estavam enfrentando as heranças de governos autoritários. A “justiça de transição”ocupou lugar relevância internacional no momento em que a Organização das Nações Unidas (ONU) iniciou a valorização de conceitos como: “direito de saber”, “direito de lembrar”, “direito à memória” e “direito à verdade”[xv].
Deve-se entender que a “justiça de transição” não é neutra e nem deve ser caracterizada como similar às lutas políticas ou sociais que enfrentavam o Estado para fazer com que a memória das vítimas não fossem esquecidas, que lutavam e lutam ainda para que os crimes fossem investigados e deixassem de sobre a sombra da impunidade. A luta dos familiares e amigos dos mortos e desaparecidos políticos não tiveram início no momento em que a CNV iniciou seus trabalhos, nem quando a ONU se atentou que todo cidadão deveria ter direito a verdade, muito menos quando o termo “justiça de transição” reverberou na sociedade brasileira. Esta luta começou há anos atrás em um enfrentamento direto com o Estado autoritário, quando não havia nenhuma força política capaz de proteger quem tentava buscar pelos seus desaparecidos.[xvi] A “justiça de transição” e a CNV foram instrumentos criados após o período autoritário para contribuir com o processo de dar visibilidade às vítimas, a construir mecanismos de valorização das memórias e ao desenvolvimento de uma reconciliação nacional com seu passado através da verdade.
A memória da ditadura empresarial-brasileira é marcada por lacunas que seguem esvaziadas e abafadas pelo Estado democrático. Ao selecionar a CNV como objeto de análise a partir desta perspectiva do esquecimento deve-se em primeiro lugar entender que a mesma foi criada por volta de três décadas após o fim definitivo do governo autoritário. O historiador Lucas Pedretti em seu texto “Silêncios que gritam: apontamentos sobre os limites da comissão nacional da verdade a partir do seu acervo” discute como o Brasil trilhou caminhos diferentes de países como a Argentina. Ou seja, não destacou a CNV da forma que esta ocupasse papel de importância na construção da memória hegemônica sobre este período, por não ter sido capaz de modificar o entendimento da grande massa sobre o que de fato foi a ditadura brasileira.
O Estado autoritário desde o início trabalhou para que a memória da ditadura fosse construída nos moldes que seus dirigentes queriam. Isto é: exaltavam de forma equivocada uma supremacia do Brasil neste período; produziram narrativas de que grandes feitos foram conquistados no período ditatorial, como por exemplo as construções faraônicas (Itaipu, Ponte Rio-Niterói entre outros exemplo). Assim, travou-se uma disputa entre a direita conservadora, que se descreveu como única capaz de manter a ordem no país diante das investidas da esquerda. Segundo os governantes autoritários, a esquerda desejava implementar um governo comunista, resgatando o fantasma que os Estados Unidos da América implementou em toda América Latina. sobre as falácias do que de fato era o comunismo através de torturas físicas, repressão, desaparecimento e morte dos militantes contra o regime.
Desta forma a memória que o historiador Marcos Napolitano em seu livro 1964 História do Regime Militar Brasileiro caracteriza como liberal foi responsável por difundir e introduzir inverdades na memória coletiva da país. Entre muitos mecanismos de manipulação da memória que o Estado desenvolveu, a relativização dos fatos históricos foi uma das formas através das quais o governo autoritário saiu deste período sem grandes penalidades. Dessa forma a elite brasileira condenou o regime, mas caracterizou o golpe como necessário para o Brasil, condenou os militares conhecidos como linha dura e absolveu os que participaram da transição à democracia, Geisel é levado ao status de herói nacional, enquanto Médici e Costa Silva ocupam lugar de vilões autoritários. Esta versão da memória também critica as ações da esquerda ativista mas compreende as ideologias que os levaram aos seus fins. Ou seja, esta memória consolida e reproduz diversas dicotomias equivocadas, que se desenvolveram para manipular e confundir a mente dos brasileiros. A memória liberal foi bem sucedida no que se dispuseram a fazer, apagando os traumas do regime e levantando uma ideologia fictícia dos fatos, que tem seu genesis na promulgação da Lei de Anistia[xvii].
Em 28 de Agosto de 1979, o então presidente João Figueiredo promulgou a Lei Nº 6.683 que em seu primeiro artigo delega:
É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares[xviii]
Ao promulgar esta lei em 1979, o Estado autoritário marcou o início de um longo período marcado pela impunidade diante dos crimes cometidos aos direitos humanos e à democracia pelas autoridades brasileiras no exercício do governo militar. Disfarçada de um perdão que o Estado daria aos anistiados e presos políticos, a lei mirava na surdina de seu desenvolvimento a absolvição dos crimes cometidos pelos militares e forças de ordem, que já estavam sofrendo com pressões dos familiares e das vítimas do regime. O projeto de anistia explanou no Brasil uma afirmativa de que só seria possível alcançar a democracia novamente se a ditadura e seus crimes fossem esquecidos, sem julgamentos, sem culpados e sem penalidades. A memória brasileira começava a caminhar rumo ao esquecimento e manipulação dos futuros governos e elites brasileiras.
Apesar destas dificuldades enfrentadas no desenrolar do processo de redemocratização, alguns governos da nova democracia se empenharam para fazer com que este passado fosse reavaliado. Governos como o de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e de Dilma Rousseff (PT) foram os que mais reuniram forças para tornar a ditadura um legado menos pesado. Ou seja, foram estes governos os que trabalharam para possibilitar o enfrentamento contra as impunidades, possibilitando que muitos brasileiros vítimas e familiares dos que já morreram conseguissem o mínimo de dignidade para viver suas vidas tão atormentadas pelo Estado.
A memória da ditadura vem sendo pautada em muitos momentos dos últimos anos. É possível pensar que a luta pela hegemonia histórica deste período mais uma vez ocupa lugar de destaque na sociedade brasileira. O governo de Jair Messias Bolsonaro (PL) infelizmente fez com que este período tão delicado da história fosse retratado de forma totalmente deturpada, utilizando de seu poder para exaltar torturadores condenados pela CNV, como Carlos Alberto Brilhante Ustra. Ustra foi um coronel do exército brasileiro, ex-chefe dos centros de tortura e assassinato de pessoas que se opunham à ditadura militar. Era tido como influência direta do governante que durante toda sua trajetória no cargo de chefe de estado utilizou preceitos autoritários e criminosos para comandar o país. Governos como o de Bolsonaro podem servir para que o Brasil entenda como este passado ainda não foi superado e muito deve ser feito para que a democracia brasileira caminhe em passos mais tranquilos sem medo do velho fantasma da ditadura.
Como muito bem sinalizou o poeta brasileiro Millôr Fernandes “o Brasil possui um longo passado pela frente”. Esta afirmação pode ser entendida na chave de que o Brasil ainda segue passando por situações de boicotes à democracia de forma descarada e como estes boicotes estão eivados dos problemas não resolvidos no passado. Para ilustrar esta afirmativa o golpe que a presidenta Dilma Rousseff sofreu em 2016, a prisão política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2018 e o atentado aos três poderes em 08 de janeiro de 2023 (no qual criminosos invadiram e depredaram os prédios do Executivo, Legislativo e Judiciário logo após a posse do presidente Lula pela terceira vez) são alguns dos inúmeros episódios que o Brasil enfrentou desde sua redemocratização. E esta redemocratização segue sob ataques constantes.
Quando este trabalho é escrito, o Brasil enfrenta este passado com seriedade e faz com que o país, principalmente os estudiosos sobre a memória da ditadura fiquem mais otimistas com o futuro. O hodierno ministro Direitos Humanos e Cidadania do terceiro mandato do governo Lula, Silvio Almeida vem se posicionando frente aos crimes cometidos na ditadura, na busca em entender onde o Estado brasileiro falhou e segue falhando, no desejo de reescrever esta memória tão flagelada pelos seus antecessores. O ministro acredita que disputar a memória da ditadura é peça fundamental para interromper a violência existente no Brasil. Assim, em 03 de março de 2023, véspera do quinquagésimo nono aniversário do golpe militar de 1964, na Comissão de Anistia Silvio de Almeida defendeu a necessidade de que a sociedade brasileira retornasse suas atenções à memória da ditadura, desprovidos da ideia que este revisitar histórico tem relação com revanchismos:
Uma nova fase desse país de restauração da memória, da verdade e da justiça tem, no dia de hoje, um marco nesta primeira sessão plenária emblemática. Alguns veem nessas iniciativas revanchismos ou mesmo tentativas de dividir a nação brasileira. Eu diria que é justamente o contrário! Nenhuma nação se ergueu ou se manteve coesa sem olhar para suas fraturas e repará-las[xix].
As memórias subterrâneas sempre lutaram para possuir seu espaço diante das disputas hegemônicas. No caso da ditadura empresarial-militar não seria diferente, famílias e vítimas do Estado em diversos momentos da História enfrentaram de forma solitária e muitas vezes suicidas os baluartes do governo autoritário, defendendo o legado dos seus, correndo risco de vida pelas repressões que os assolavam. Mas isso pouco importava já que as motivações pelo enfrentamento ultrapassaram qualquer temor. Políticas atuais incentivam que os familiares e vítimas deste período busquem seus direitos através dos requerimentos de anistia, direito adquirido através da Lei Nº 10.559, de 13 de Novembro de 2002, que em seu primeiro artigo diz:
Art. 1o O Regime do Anistiado Político compreende os seguintes direitos:
I – declaração da condição de anistiado político;
II – reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação única ou em prestação mensal, permanente e continuada, asseguradas a readmissão ou a promoção na inatividade, nas condições estabelecidas no caput e nos §§ 1o e 5o do art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;
III – contagem, para todos os efeitos, do tempo em que o anistiado político esteve compelido ao afastamento de suas atividades profissionais, em virtude de punição ou de fundada ameaça de punição, por motivo exclusivamente político, vedada a exigência de recolhimento de quaisquer contribuições previdenciárias;
IV – conclusão do curso, em escola pública, ou, na falta, com prioridade para bolsa de estudo, a partir do período letivo interrompido, para o punido na condição de estudante, em escola pública, ou registro do respectivo diploma para os que concluíram curso em instituições de ensino no exterior, mesmo que este não tenha correspondente no Brasil, exigindo-se para isso o diploma ou certificado de conclusão do curso em instituição de reconhecido prestígio internacional; e
V – reintegração dos servidores públicos civis e dos empregados públicos punidos, por interrupção de atividade profissional em decorrência de decisão dos trabalhadores, por adesão à greve em serviço público e em atividades essenciais de interesse da segurança nacional por motivo político.
Parágrafo único. Aqueles que foram afastados em processos administrativos, instalados com base na legislação de exceção, sem direito ao contraditório e à própria defesa, e impedidos de conhecer os motivos e fundamentos da decisão, serão reintegrados em seus cargos[xx].
A busca pelos direitos que o Estado Democrático oferece deve ser reivindicada por todos que lhe cabem. Através de organizações compostas por familiares que possuíram seus entes queridos ceifados, vítimas e defensores da memória e verdade, devem se fortalecer para que o governo brasileiro pague por todos os crimes cometidos. Assim, é possível estabelecer um confronto contínuo diante dos silenciamentos da História Oficial, para que a verdade extravase dos arquivos nacionais e ocupem palco em praças públicas da república; é possível que o povo saiba sobre seu passado e não aceite mais ser trajado de trouxa pelos governantes; é possível que o brasileiro saiba que sua magnitude social espelha o vasto território que este país continental possui e assim, poder defender seu local na democracia.
Cabe aos profissionais da memória lutar por um país no qual suas feridas sirvam de exemplo para os tempos futuros, delineando caminhos que já foram percorridos e que não devem mais ser sequer cogitados. E assim, estender os pecados da nação em museus, teatros e praças para que todos saibam quem são os que nos antecedem, sem o saudosismo hipócrita e mentiroso através dos quais são exaltados verdadeiros criminosos da história brasileira. A memória deve ser arquétipo de liberdade entre os cidadãos, e através da mesma, as instituições de ensino poderão reverberar a história real deste povo tão silenciado.
O Estado democratico brasileiro, unido com as estruturas acadêmicas e os profissionais de memória devem se unir em um esforço incansável para fazer com que as vítimas da ditadura possuam espaço entre as páginas dos livros de história. Além dos direitos à memória e à verdade, o Estado deve financiar como previsto em lei de forma material às vítimas e seus familiares que tiveram suas vidas destruídas pelo autoritarismo, já que muitas as vítimas dificilmente conseguem voltar a suas vidas de forma normal. Muitos sofrem pelo resto da vida sequelas psicológicas e/ou físicas das diversas torturar que passaram.
O Estado necessita guardar e proteger os direitos conquistados a partir da Constituição de 1988, bloqueando qualquer desenvolvimento golpista de elites sociais e políticas que veneram governos autoritários. Além do governo possuir o dever dessa proteção, os cidadãos brasileiros devem estar atentos para lutar contra as mazelas que podem abalar os alicerces da democracia e principalmente os historiadores e os profissionais de memória do Brasil devem zelar e travar como compromisso máximo, a instrução de períodos que outrora assolaram a União. São trabalhos como este que podem contribuir para que a História Real se difunda entre os estudiosos que lhe acessem, para que assim seja possível reverberar as memórias de um povo silenciado pelos arcabouços do autoritarismo.
Notas:
[i] TELES, Janaína de Almeida. A constituição das memórias sobre a repressão da ditadura:o projeto Brasil Nunca Mais e a abertura da vala de Perus. p. 264
[ii]TELES, Janaína de Almeida. A constituição das memórias sobre a repressão da ditadura:o projeto Brasil Nunca Mais e a abertura da vala de Perus. p. 265
[iii] ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO – “Brasil: Nunca Mais”. Petrópolis, Vozes, 1985.p. 34
[iv] ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO – “Brasil: Nunca Mais”. Petrópolis, Vozes, 1985.p. 39
[v] ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO – “Brasil: Nunca Mais”. Petrópolis, Vozes, 1985.p. 40
[vi] TELES, Janaína de Almeida. A constituição das memórias sobre a repressão da ditadura:o projeto Brasil Nunca Mais e a abertura da vala de Perus. p. 265
[vii] https://memoriasdaditadura.org.br/vala-de-perus-uma-biografia/
[viii]https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/vala-de-perus-descoberta-do-cemiterio-clandestino-onde-foram-enterradas-vitimas-da-ditadura.html
[ix] TELES, Janaína de Almeida. A constituição das memórias sobre a repressão da ditadura:o projeto Brasil Nunca Mais e a abertura da vala de Perus. p. 265
[x] TELES, Janaína de Almeida. A constituição das memórias sobre a repressão da ditadura:o projeto Brasil Nunca Mais e a abertura da vala de Perus. p. 265
[xi] TELES, Janaína de Almeida. A constituição das memórias sobre a repressão da ditadura:o projeto Brasil Nunca Mais e a abertura da vala de Perus. p. 282 e 283
[xii] TELES, Janaína de Almeida. A constituição das memórias sobre a repressão da ditadura:o projeto Brasil Nunca Mais e a abertura da vala de Perus. p. 266
[xiii] TELES, Janaína de Almeida. A constituição das memórias sobre a repressão da ditadura:o projeto Brasil Nunca Mais e a abertura da vala de Perus. p. 293 e 294
[xiv] PEDRETTI , Lucas. SILÊNCIOS QUE GRITAM: APONTAMENTOS SOBRE OS LIMITES DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE A PARTIR DO SEU ACERVO. Revista do Arquivo. São Paulo. p.62.
[xv] PEDRETTI , Lucas. SILÊNCIOS QUE GRITAM: APONTAMENTOS SOBRE OS LIMITES DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE A PARTIR DO SEU ACERVO. Revista do Arquivo. São Paulo. p.64.
[xvi] PEDRETTI , Lucas. SILÊNCIOS QUE GRITAM: APONTAMENTOS SOBRE OS LIMITES DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE A PARTIR DO SEU ACERVO. Revista do Arquivo. São Paulo.
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[xvii] NAPOLITANO, Marcos. 2021. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo, Contexto. p. 319
[xviii]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm#:~:text=1%C2%BA%20%C3%89%20concedida%20anistia%20a,de%20funda%C3%A7%C3%B5es%20vinculadas%20ao%20poder
[xix]https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-03/comissao-de-anistia-pede-recuperacao-da-memoria-contra-ditadura
[xx] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10559.htm
Graduação em Licenciatura em História pelo Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional no polo universitário da Universidade Federal Fluminense de Campos dos Goytacazes. Membro do Laboratório de Estudos das Direitas e do Autoritarismo (LEDA – UFF) e participante do projeto de extensão “Pré-vestibular social #Vemprocursinho”, pelo Instituto Latino-Americano para Ciência, Educação e Desenvolvimento. Possui interesse nos estudos referente a História Oral, Memória e Ditadura Empresarial-Militar brasileira. Tem como recorte principal de pesquisa Memória dos marginalizados no período ditatorial brasileiro.