Alberto Torres: Um Intelectual Orgânico

Rodrigo Andrade Augusto

 

 

Rodrigo Andrade Augusto é graduando em História pela Universidade Federal Fluminense com interesse em História Contemporânea, História Social e História da Argentina

 

Alberto Torres: Um Intelectual Orgânico

Rodrigo Andrade Augusto

 

Resumo

O presente artigo teórico tem como objetivo analisar a relevância da intelectualidade exercida pelo político Alberto Torres, relacionando-a com a perspectiva do conceito de intelectual orgânico, desenvolvido por Antônio Gramsci. Tal perspectiva é relevante para se pensar a história do nosso país a partir de uma reflexão sobre um intelectual brasileiro que produziu conhecimentos e interpretações sobre a construção ideológica, social e política do Brasil. Mobilizadas a partir da categoria de Bloco Histórico, as discussões promovidas sobre o intelectual Alberto Torres são resultado da metodologia de análise documental em torno d a obra A Organização Nacional de Alberto Torres, bem como da análise bibliográfica de autores que dialogam com o tema proposto.
Palavras-Chave: Intelectual Orgânico; Alberto Torres; Bloco Histórico.

Abstract
This theoretical article aims to analyze the relevance of the intellectuality exercised by the politician Alberto Torres, relating it to the perspective of the concept of organic intellectual, developed by Antônio Gramsci. Such perspective is relevant to think about the history of our country from a reflection on a Brazilian intellectual who produced knowledge and interpretations about the ideological, social and political construction of Brazil. Mobilized from the category of Historic Block, the discussions promoted about the intellectual Alberto Torres are the result of the methodology of document analysis around “The National Organization”, by Alberto Torres, as well as the bibliographic analysis of authors who dialogue with the proposed theme.

Keywords: Organic Intellectual; Alberto Torres; Historic Block.

Introdução

À memória de minha bisavó materna,
D. MARIA JOAQUINA DA COSTA CORDEIRO,
tipo da energia, da virtude e da coragem da matrona brasileira, falecida aos noventa e cinco anos, após uma existência de contínuos trabalhos, só abandonados nos últimos dias da vida.
E à memória dos escravos mortos,
bem como aos ainda vivos de sua fazenda,
que me deram, no convívio íntimo da infância, lições de bondade e de pureza de costumes e exemplos de amor ao trabalho e de veneração,
dedico este apelo aos meus patrícios, em prol da reorganização da nossa vida política e social, sob inspiração das nossas tradições de honra e de bom senso, e com os progressos sólidos e humanos próprios da nossa índole.
Alberto Torres.

A dedicatória presente em seu livro A Organização Nacional demonstra o posicionamento de Alberto de Seixas Martins Torres (1865–1917) diante da realidade brasileira entre o fim do século XIX e o início do século XX. Alberto Torres atuou na política e defendeu os ideais republicanos e abolicionistas, tendo sido deputado da Assembleia Constituinte do Estado do Rio de Janeiro (1892), deputado federal, ministro da Justiça e Negócios Interiores, presidente do Estado do Rio de Janeiro e ministro do Supremo Tribunal Federal. Dedicou-se também à intelectualidade, produzindo artigos publicados em jornais como Diário de Notícias e Jornal do Comércio . Segundo seu admirador e seguidor Cândido Motta Filho:
Alberto Torres exerceu a política, discretamente, mediocremente. Foi presidente do Estado do Rio de Janeiro, foi parlamentar, ministro de Estado, conspirador da revolução republicana; mas, em todas as funções políticas em que esteve, não deixou um traço que o distinguisse da mediania dos políticos brasileiros. No governo do Estado escreveu magníficas mensagens; isto quer dizer que ele só se destacou na política, quando pode apresentar-se como pensador

Considerando a citação acima, este artigo tem como objetivo discutir a intelectualidade de Alberto Torres; nesse sentido, é relevante compreender suas ideologias e motivações políticas.
Filho do magistrado e político Manuel Martins Torres, formou-se em direito em 1885, atuando como advogado e jornalista no Rio de Janeiro. Apesar de ser republicano, Alberto Torres não poupou críticas a essa forma de governo, conforme aponta Edison Bariani (2005)
Assim como grande parte de sua geração, Alberto Torres – embora republicano – manifestava profunda decepção com a República, o modo como foi proclamada por meio de uma quartelada e como se constituiu, mantendo as vicissitudes do Império: ainda grassava o personalismo, o privatismo, o clientelismo e faltava racionalidade político-administrativa na condução dos negócios públicos. (Bariani, 2005, p. 2)

Desse modo, Alberto Torres buscou, nas palavras de Sirinelli (1996), inscrever “sua ação no tempo curto do debate cívico” através de suas contribuições e reflexões sobre os rumos da política brasileira. Seguindo a perspectiva do historiador Jean-François Sirinelli, Alberto Torres pode ser considerado um intelectual que teve como base uma noção sociocultural e de engajamento:
No primeiro caso, estão abrangidos tanto o jornalista como o escritor, o professor secundário como o erudito. […] Também podem ser reunidos em torno de uma segunda definição, mais estreita e baseada na noção de engajamento na vida da cidade como ator – mas segundo modalidades específicas, como por exemplo a assinatura de manifestos –, testemunha ou consciência. Uma tal acepção não é, no fundo, autônoma da anterior, já que são dois elementos de natureza sociocultural, sua notoriedade eventual ou sua “especialização” reconhecida pela sociedade em que ele vive – especialização esta que legitima e mesmo privilegia sua intervenção no debate da cidade – que o intelectual põe a serviço da causa que defende. (Sirinelli, 1996, p. 243)

A citação acima pode ser comprovada a partir de sua trajetória pessoal e profissional através do uso de sua posição política e social para defender o nacionalismo numa clara oposição ao imperialismo dos países colonizadores. Além disso, em sua concepção sobre a raça, Alberto Torres “afasta peremptoriamente qualquer possibilidade de desigualdade (e conseqüente hierarquização) biológica entre os seres humanos” (Bariani, 2005, p. 4). O intelectual afirmava que a ideia de uma superioridade racial “seria produto da invenção da ciência imperialista” (Bariani, 2005, p. 4). Sendo assim, apesar de associar a definição de intelectual conforme as ideias de Jean-François Sirinelli, neste artigo é defendida a hipótese de que Alberto Torres foi um intelectual orgânico, de acordo com Antônio Gramsci, pois ao mesmo tempo em que ocupava uma posição privilegiada na sociedade brasileira, o político e intelectual denunciava os problemas e inconsistências da formação da nação brasileira.
Em O Problema Nacional Brasileiro, Alberto Torres afirma que a questão central do país seria a falta de ordenamento adequado no sentido da condução dos seus reais problemas, o que demandaria urgentemente a organização nacional. Segundo ele, este seria à época um país sem história, sem sociedade, sem povo, sem raça, sem nacionalidade, sem caráter, sem economia nacional, sem cultura, sem opinião, sem direção mental, sem política nacional, enfim, sem organização. A definição é negativa, o país é definido pelo que lhe falta, não pelo possui. (Bariani, 2005, p. 4-5)

A respeito das elites políticas que fazia parte, Alberto Torres as definiu como “uma “classe artificial”, produto do divórcio entre sociedade e política, do alheamento da política (e seus executores) em relação à vida social e a seus problemas” (Bariani, 2005, p. 8). Tais críticas demonstram que, apesar de fazer parte de uma elite política, Torres rompeu com a tradição elitizada ao não compactuar com o pensamento hegemônico que as beneficiava, afinal:
Incomodava particularmente ao autor a inorganicidade da sociedade brasileira, a qual teria sido propiciada pela sua conformação de improviso, transplantação de instituições e excessos do liberalismo, situação esta que se expressaria na fragilidade do Estado, na ausência de sociedade e povo, de solidariedade, estruturação sócio-econômica e sentimento coletivo e patriótico, que viabilizariam a existência plena da Nação. (Bariani, 2005, p. 3)

Com base nos conceitos esmiuçados , utiliza-se, neste artigo, os conceitos de bloco histórico e a concepção de intelectual orgânico de Gramsci a fim de contextualizar a trajetória intelectual e profissional de Alberto Torres, assunto que será desenvolvido no item a seguir.

Alberto Torres sob a perspectiva de Gramsci

O marxista italiano Antônio Gramsci (1891–1937) desenvolveu um conceito central para analisar a práxis política que embasa seu pensamento: o conceito de bloco histórico, que pode ser definido como uma situação histórica concreta que se constitui a partir de uma relação dialética entre a estrutura social e a superestrutura ideológica e política. Conforme aponta Waldemar Filho (1977), “a vinculação orgânica entre esses dois elementos produz certos grupos sociais cuja função é operar, não no nível econômico, mas na superestrutura: os intelectuais.” (FILHO, 1977, p. 62). Ainda segundo o autor,
[…] é no quadro da análise do bloco histórico que Gramsci estuda como se quebra a hegemonia da classe dirigente, se constrói um novo sistema hegemônico e se cria um novo bloco histórico. É neste último aspecto que está mais ligada a ação política. As superestruturas do bloco histórico formam uma totalidade complexa em cujo seio o autor distingue duas esferas essenciais: a sociedade civil ou direção cultural e moral da sociedade, por uma parte, e a sociedade política ou aparato do Estado e suas relações recíprocas, por outra. O conceito de sociedade civil faz-se importante na medida em que define a direção intelectual e moral de um sistema social. (Filho, 1977, p. 62)

Nascido no ano de 1865, Alberto Torres vivenciou a crise do império, a abolição da escravidão e a Proclamação da República, fatos históricos que representaram uma mudança na estrutura social, econômica e, sobretudo, política na sociedade brasileira. Dessa forma, a estrutura histórica vigente durante a vida de Alberto Torres foi marcada pela intensa disputa das ideologias monarquistas, de um lado, e positivistas, do outro, dentre as quais Torres fazia parte do segundo grupo, ao lado dos “vencedores”. No entanto, a implementação da República representou apenas o início dos desafios de se criar uma nação de acordo com novos valores de ordem e progresso que deveriam ser difundidos através da superestrutura, ou seja, da ideologia dominante, elaborada em benefício das elites oligárquicas que ocupavam o poder.
O processo de construção institucional apregoado por Alberto Torres partia da constatação da ausência de formas duradouras na sociedade brasileira, daí também a possibilidade de sua moldagem. Se lamenta o desarranjo da estrutura, estimula-o a falta de uma tradição edificada, permitindo assim a terraplanagem para construção de instituições duráveis e funcionalmente adequadas ao progresso político e material. […] O Brasil como país colonizado, sociedade “improvisada”, teria transplantadas para seu ambiente instituições dos países dominantes, tais transposições seriam funestas, pois estariam em desconexão com a realidade e as necessidades do país. “Governos coloniais e colonizadores fazem invasões e conquistas: não fundam nações; são exploradores: não são sócios” (TORRES, 1982b: 42). (BARIANI, 2005, p. 5-6)

Alberto Torres defendia que somente o Estado enquanto um aparelho político-administrativo poderia promover a transformação e o progresso do país. Desse modo:
Surge então o Estado como criador, construtor da Nação, ao dar partida e coordenação à organização do país. Soberano em sua autoridade política – já que para Torres esta se criaria a si mesma, legitimar-se-ia pela sua própria investidura -, o tal Estado seria intérprete da soma das vontades dominantes, expressando assim a vontade geral extraída da mentalidade coletiva. Ainda assim, não desconsideraria – segundo o autor – os indivíduos: ao organizar a sociedade, o Estado daria condições a esta de produzir indivíduos “úteis” ao país, o que contribuiria para a viabilização das tarefas de organização. “Estado e sociedade hão de organizar-se, reciprocamente, por um processo mútuo de formação e de educação” (TORRES, 1982b: 37). Procurava reconciliar, desta forma, sociedade e política. (BARIANI, 2005, p. 8)

Ao ter consciência sobre os dilemas da sociedade brasileira e apresentar análises que possibilitariam a reflexão sobre a necessidade de uma “força organizada” compromissada com o interesse público e saberes racionais e práticos, Alberto Torres apropriou-se de seus conhecimentos como instrumento mobilizador em prol da sociedade brasileira. Contudo,
Alberto Torres desencantou-se da política como exercício. Passara rudes momentos na sua clausura do Palácio Rio Negro, em Petrópolis, sofrera indignações, traições, nada acordante com o seu cristalino pensamento político. Lavava a alma em artigos na imprensa, sempre doutrinários de seu pensamento sócio-político, agora mais deitado à especulação sociológica para uma compreensão melhor do caráter do povo brasileiro que se transfigura quando no exercício da política de resultados.

A partir da interpretação da citação acima, fica evidente a forte influência da intelectualidade na vida de Alberto Torres, podendo ser definido como um intelectual orgânico. Seguindo a categoria conceitual de Gramsci,
[…] consideraremos intelectual aquele indivíduo que desempenha a função social de categoria profissional dos intelectuais; ou seja, o indivíduo que participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral e contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar. (Filho, 1977, p. 63)

Quanto à definição de intelectualidade orgânica, podemos classificá-la como intelectuais “dotados de características peculiares e especializações ligadas às necessidades da classe fundamental.” (FILHO, 1977, p. 63) Assim, ao ocupar cargos políticos e divulgar sua visão de mundo por meio de livros e artigos publicados, Alberto Torres buscou elaborar análises e interpretações que dessem conta de responder e legitimar suas ideologias por meio de sua experiência na vida política e pública. No entanto, Torres não deixou de fazer críticas à intelectualidade brasileira, afirmando que:
A inteligência brasileira, em sua grande maioria, estaria – para Torres (1982b: 91) – mergulhada nos males do intelectualismo, nas formas eruditas e ornamentais da cultura, que esgrimiria somente como armas de combate pessoal ou para manter-se no terreno das fórmulas vagas (e seguras) e das teorias abstratas. Desaparelhada para exercer um pensamento prático, descompromissada com a coisa pública e sem ambições para exercer influência mental e dirigir as condutas, a inteligência brasileira primaria pelo discursivismo, ineficácia, diletantismo, superficialidade, dialética, floreios de linguagem, uso de conceitos consagrados pela notoriedade ou prestígio da autoridade (TORRES, 1982b: 15); (BARIANI, 2005, p. 7)

Para Gramsci (1982), os intelectuais orgânicos no bloco histórico se opõem aos intelectuais do antigo bloco histórico, assim, Alberto Torres buscou promover uma ruptura com um pensamento hegemônico que permanecia desconectado com a realidade brasileira mesmo após a Proclamação da República. Portanto, é relevante considerar que as críticas promovidas por Alberto Torres sobre as elites políticas e a intelectualidade no Brasil foram construídas dentro de sua própria experiência enquanto alguém pertencente a um grupo social que, através da validação hegemônica, contribuiu para a criação e ação de novos meios de se pensar e projetar a nação republicana.
Ainda segundo Gramsci:
Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função não apenas no campo econômico, mas também no social e no político. (Gramsci, 1982, p. 3)

Nesse sentido, as principais obras de Alberto Torres, a saber A organização nacional e O problema nacional, são exemplos de produtos do conhecimento que buscaram responder aos problemas de seu próprio tempo histórico, cuja estrutura e superestrutura foram forjados de acordo com os valores nacionalistas em busca de uma nova concepção de ordem e progresso para o Brasil.

Referências bibliográficas

BARIANI, Edison. O ESTADO DEMIURGO: ALBERTO TORRES E A CONSTRUÇÃO NACIONAL. Resenha Temática • Cad. CRH 20 (49) • Abr 2007.
FILHO, Waldemar S. Pedreira Filho. Os intelectuais e a organização da cultura – Por Antonio Gramsci. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. 244 p. Resenha Bibliográfica • Rev. adm. empres. 17 (1) • Fev 1977
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René. Por uma história política: Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1996.
TORRES, Alberto. A Organização Nacional. Fonte Digital – Digitalização da 3a. Edição. 2002 (ebook)

Professora Doutora do Departamento de História do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do Laboratório de Estudos da Imanência e da Transcendência (LEIT) e do Laboratório de Estudos das Direitas e do Autoritarismo (LEDA). Membro do Grupo de Estudos do Integralismo (GEINT).

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