Mesmo antes do período da pandemia, pesquisas já vinham mostrando que o adoecimento mental dos docentes é recorrente em professores, acometendo parcelas importantes de professores-trabalhadores (CODO, 2000; SELLIGMANN SILVA, 1999), quase como se fosse uma doença ocupacional, inerente à atividade em si.
Nas últimas décadas, frente a uma flexibilização dos valores modernos, assim como a crise de autoridade da escola e do professor tem explicitado conflitos geracionais na relação entre professores e alunos. Também um cenário de flexibilização dos direitos trabalhistas tem materializado uma sensação de desafiliação social, que desampara trabalhadores. O professor tem em sua atividade essencial a mediação entre o aluno e o conhecimento, ajudando na aprendizagem das crianças. Nesse sentido, lida diretamente com emoções, afeto e empatia. Isso pode exaurir o docente, e se este se encontra enfraquecido psicologicamente, pode desenvolver patologias como depressão, ansiedade, e outros quadros. Enquanto uma abordagem dá margem ao stress e ao Burnout focando um olhar mais organicista do adoecimento, uma segunda abordagem prioriza o olhar para a subjetividade e o inconsciente do trabalhador, que luta para vencer o sofrimento que o trabalho provoca. A relação entre professor-aluno também é fundamental e depende da saúde do docente. Todo trabalho causa sofrimento, mas o docente precisa estar saudável para poder dar uma resolução criativa e superá-lo. Esse sofrimento não necessariamente é ruim, e só tem capacidade destrutiva se o trabalhador não estiver saudável, ou seja, se não conseguir se recuperar em relação às dificuldades.
No contexto atual de trabalho temos presenciado um condições materiais que provocam o sofrimento de forma sistematizada. Portanto, a terceira abordagem sobre a saúde mental docente trata-se do modelo teórico do desgaste mental, em que analisamos as condições de trabalho em que o indivíduo se insere: o controle do trabalho pela gestão, o desgaste humano nas relações com alunos e pais e a carga de trabalho (dupla ou tripla carga, no caso de professoras mulheres) (HASHIZUME, 2018). Também há fatores que precisam ser considerados pano de fundo do trabalho: as jornadas de trabalho extensas para que viabilizem o custo de vida de uma grande metrópole, a violência nas escolas/ doméstica faz com que cada docente vivencie a partir de suas marcas pessoais o trabalho.
O acirramento e exploração da mão de obra nos diferentes setores de trabalho se mostram presentes também na educação, precarizando uma situação laboral já bastante esgarçada: as práticas privadas nas escolas públicas em nome do discurso da eficiência. Nesse sentido, no meio da pandemia, as tecnologias da informação (ensino remoto) são apresentadas à comunidade escolar como sinônimo de eficiência e garantia da qualidade do ensino através do cumprimento do calendário escolar e dos conteúdos previstos. Precisamos ter cautela com esse discurso.
A atividade docente não pode ser equiparada a outros setores, principalmente no que se refere à produtividade. O docente tem sido alvo de intensificação da jornada de trabalho, uso de ferramentas tecnológicas particulares e pessoais, que acarretam impactos psicológicos, como manipulação psicológica, violência como decorrência do acirramento da superexploração da subjetividade do trabalhador nesse contexto. Nesse sentido, o Neotaylorismo prega a perspectiva tecnocêntrica, com ênfase na flexibilização quantitativa e desemprego massivo. Tais tecnologias exponencializam maior controle da atividade visando aumento da produtividade por trabalhador.
Este se submete, então, pelo e para o capital, aprofundando sua subordinação. No caso das professoras mulheres, a invasão do tempo livre e aceleração do tempo produtivo tem exaurido a vida pessoal e profissional, afetando, inversamente, a performance de sua atividade.
ADOECIMENTO MENTAL NA PANDEMIA
O mesmo negacionismo político da doença que temos presenciado por parte de autoridades também tem sido praticado por gestores da educação, das prefeituras, estados que cobram os docentes por sua produtividade, como se a vida transcorresse na mais perfeita normalidade. Nas escolas privadas, práticas empresariais de otimização de custos têm sobrecarregado os docentes com a junção de turmas numa mesma sala virtual, que se desdobra em infinitos atendimentos individuais dos alunos e de seus pais. O isolamento social acaba por prejudicar as possibilidades de alianças coletivas, deixando o docente à deriva de controles gerenciais através das gravações, cobranças por relatórios ou materiais, sem que haja legislação suficiente para resguardar os direitos trabalhistas dos docentes nesse momento de ensino remoto.
Atravessados por outras demandas mais “urgentes e necessárias”, como a burocracia escolar, o docente se vê sofrendo e adoecendo. A grande exposição da subjetividade do docente em plataformas como whattszap, gravações e o uso do direito de imagem misturam o público e o privado e trazem problemas emocionais para os trabalhadores da educação.
Essa precariedade subjetiva ocasionada pela fragilização dos laços sociais nos faz acreditar que, nesse momento de pandemia, não temos força para questionar as possibilidades de movimentos coletivos possíveis entre os docentes. O medo do abandono (desemprego) tira as possibilidades de questionamento em relação à carga de trabalho vivenciada pelos docentes na pandemia, assim como atividades que são exigidas e que consomem todo o tempo do trabalhador. No caso de professores que não dominam as tecnologias da informação, isso pode exponencializar o tempo de investimento para preparação de aulas. O trabalho de home office docente dá uma sensação de isolamento, o que sobrecarrega os docentes pois não se veem amparados pela interação coletiva com os pares.
Essa sensação de isolamento repercute em adoecimento não só do docente como profissional, mas também pessoalmente, até porque, muitas professoras mulheres têm na sua atividade profissional sua rede de sociabilidade. Nesse contexto de quarentena, portanto, muitas mulheres têm adoecido tendo em vista terem sido tolhidas de suas experiências sociais e de lazer. Relatos com docentes têm explicitado uma sensação literal e simbólica de aprisionamento: pelas normas, hierarquização, medo da demissão ou represálias pela gestão, além da perda de liberdade que gera sofrimento no trabalho (sensação de sufocação, aperto e esmagamento). Relatos de perda de sono e pesadelos têm apontado o alto nível de ansiedade na crise sanitária, intensificando sintomas de quem já tinha transtornos psicológicos e psiquiátricos, e que no isolamento, tem essas manifestações mais acentuadas.
Tal situação de stress e esgotamento, aliada ao medo da doença, nos chama a atenção do que é necessário se oferecer às pessoas nesse momento de crise: informação confiável, orientação psicológica para conter a tensão, a tristeza e o tédio e também atendimento assistencial a quem já tem transtorno prévio à crise.
Essa situação deve ser entendida dentro de um cenário mais amplo de precarização e uberização das relações de trabalho, que se disseminam em todos os setores, inclusive no magistério, e especialmente em regiões do planeta mais pobres. Frente a esse cenário, apenas a visão médica/ psiquiátrica e seus tratamentos orgânicos e individuais além de remédios psicotrópicos não são suficientes para resolvermos o adoecimento dos docentes, que vem sendo acentuado no cenário pandêmico.
A educação em direitos humanos nos sinaliza uma possibilidade de se humanizar as relações sociais, a partir do reconhecimento dos direitos trabalhistas dignos aos docentes, além da valorização desse trabalhador essencial para a formação cidadã saudável.
Saúde docente é sinônimo de bem estar biopsicossocial, o que inclui a espiritualidade também, já que somos seres integrais que buscamos a felicidade como um todo.
A formação em educação e direitos humanos nos forma com valores mais solidários em relação à condição do outro, sem discursos totalitários e intolerantes como temos visto tão recorrentemente na vida política do nosso país. Acreditamos que estratégias de defesa eficazes se constroem, por exemplo, na formação de professores coletiva (em serviço): momento crucial para problematizar questões difíceis como as que apontamos nesse breve texto. Este encontro precisa ocorrer de forma frequente, ao longo do período letivo, mesmo nesse momento de pandemia. A saúde não pode ser fragmentada em física, psicológica, espiritual. Um olhar holístico é muito importante para um entendimento mais harmônico de si e da atividade que se desempenha.
Referências:
CODO, Wanderley. Educação: carinho e trabalho. Petrópolis: Vozes. 1999.
DUNKER, C. L. A arte da quarentena para principiantes. São Paulo: Boitempo, 2020.
HASHIZUME, C.M. Trabalho Docente e Precarização nas Relações Laborais da Educação: Uma Abordagem Crítica. Curitiba: Appris, 2018.
SELLIGMANN-SILVA, E. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez, 1999.