LEMBRANDO NOVEMBRO, SERIA O CASO DE TERMOS O MÊS DA CONSCIÊNCIA BRANCA?

Brancos têm consciência de si enquanto brancos? Além da pele, reconhecem-se como um certo modo de ser que rejeita outros modos de ser?

O ano tem 12 meses, um dado hoje, de senso comum, mas que foi complexamente elaborado como marcação de tempo da rotação da Terra em torno do sol, pelos babilônios, povo que viveu entre os anos de 1950 e 539 a.C. (antes de Cristo).

Passados cinco séculos de nossa existência brasileira colonial, imperial e republicana ou mais exatamente em 10 de novembro de 2011, a lei nº 12.519, oficializou o dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra, uma data que marcaria a reflexão sobre o negro na sociedade brasileira. Essa data, como é conhecimento de todos, refere-se ao dia atribuído à morte de Zumbi dos Palmares, pelos idos de 1695, líder da resistência negra frente à sociedade branca escravocrata. 

Sabemos que a razão de datas comemorativas, em geral, é a de trazer da memória fatos e acontecimentos que fazem parte de nossa identidade e que não devem ser esquecidos. Nesse caso, o da história da população negra na construção da nossa sociedade, ainda que, nos demais dias do ano, a resistência na vida cotidiana, as criações artísticas, as produções científicas e acadêmicas assim como os movimentos sociais estejam presentes, talvez sendo de fato a mola propulsora da luta para a condição de igualdade de acesso aos lugares sociais, bens materiais e culturais que historicamente são colocados e distribuídos desigualmente entre brancos e negros.

Divulgação sobre o dia da Consciência Negra. Fonte: http://www.camaradecaldas.go.gov.br/dia-da-consciencia-negra/ Acesso em 10/10/2020.
Atividade comemorativa dos 15 anos de política de cotas na Universidade de Brasília (2018). Fonte: https://noticias.unb.br/76-institucional/2319-aprovacao-das-cotas-raciais-na-unb-completa-15-anos. Acesso 10/10/2020.

No entanto, como provocação, não caberia um mês da consciência branca? Brancos têm consciência de si enquanto brancos? Além da pele, reconhecem-se como um certo modo de ser que rejeita outros modos de ser?

Essa é uma questão colocada em coro por várias vozes. Essas vozes os declaram como privilegiados sem consciência. Explica-nos o filósofo, advogado e professor Silvio Almeida que tal privilégio não deve ser entendido pelo viés moral, mas como construção de um lugar social com estrutura instituída que faz com que determinadas pessoas tenham vantagens sobre outras, que por sua vez, estão em outro lugar também estrutural e socialmente construídos.

Pelo fato de serem brancos, ocupam um lugar social em que olham para os não brancos com o poder de nomeá-los a partir desse lugar, como diz a pesquisadora Lia Vainer Shucman, da Universidade Federal de Santa Catarina e, confirmado por Cida Bento, pesquisadora das questões raciais do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), ao dizer que para o entendimento branco, a ocupação de lugares qualificados na sociedade não se dá por ser privilégio mas por resultado de seu mérito.   

Formandos negros. Fonte: https://www.huffpostbrasil.com/2018/05/22/formatura-preta-e-a-mensagem-poderosa-sobre-igualdade-racial-na-universidade_a_23441143/. Acesso em 10/10/2020.

Dentre todas as questões que circundam a vida, a saúde é condição fundamental para garantia do direito humano de viver dignamente. Saúde não implica apenas ausência de doenças mas diz respeito, por exemplo,  a como as pessoas se alimentam, onde e como vivem, quais são as condições de trabalho – e de locomoção para o trabalho – , com o que se divertem, como e onde moram, como diz Mônica Mendes Gonçalves. Será que o branco se sensibiliza com o fato de que algumas causas de mortes que podem ser evitadas não são evitadas da mesma maneira para as pessoas negras?

Basta lembrar a surpresa com a comoção em torno do assassinato do negro americano George Floyd entre os brancos brasileiros em detrimento do pouco envolvimento com o sofrimento das famílias negras quando perdem seus filhos, dada a violência institucional de quem deveria garantir à todos a segurança da vida.  Como diz Liv Sovik, da UFRJ (Universidade Federsal do Rio de Janeiro), ao estudar o racismo na música brasileira, o branco não se envolve com a dor do negro, apenas quer o samba e capoeira advindos dele.

Enquanto consciência, também valeria a pena fazer um jogo de nomes enquanto representantes da criação artística, científica e cultural, nacional, contrapondo-os ao conhecido universo branco. Por exemplo, conhece-se Anita Malfati mas quem foi Maria Auxiliadora? Conhece-se Cândido Portinari mas quem é Wilson Tibério? Conhece-se João Carlos Martins na música mas quem é Joel Barbosa? Conhece-se Mayana Zatz na ciência mas quem é Joana D’Arc Felix de Sousa? E quem é Priscila Santana? João Diamante?

MARIA AUXILIADORA

Maria Auxiliadora (1938-1974). Fonte: https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2018/03/maria-auxiliadora-uma-pintora-brasileira.html. Acesso em 10/10/2020.
“O almoço”, de Maria Auxiliadora (1970). Fonte: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 23 de Out. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7. Acesso em 10/10/2020.

WILSON TIBÉRIO

Wilson Tibério (1923-2005). Fonte: https://www.geledes.org.br/wilson-tiberio-a-negritude-de-um-genio-das-artes-plasticas/. Acesso em 10/10/2020.
“Autorretrato” (1941), de Wilson Tibério. Fonte: http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/indice-biografico/lista-de-biografias/biografia/2017/07/03/wilson-tib%C3%A9rio. Acesso em 10/10/2020.

JOEL BARBOSA

Maestro Joel Barbosa (1958). Fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/11/26/interna_cidadesdf,809118/conheca-o-maestro-joel-barbosa-que-encanta-os-brasilienses-com-a-musi.shtml. Acesso em 10/10/2020.

JOANA D´ARC FELIX DE SOUSA

Química Joana D’Arc Felix de Sousa (1963). Fonte: https://www.abpn.org.br/post/insubmissas-negras-joana-d-arc-f%C3%A9lix-de-sousa. Acesso em 10/10/2020.

JOÃO DIAMANTE

Chefe de cozinha João Diamante (1993). Fonte: http://simaigualdaderacial.com.br/jantar/index.php/member/joao-diamante/. Acesso em 10/10/2020.

Tomar consciência do lugar do branco enquanto privilégio numa sociedade historicamente desigual e expropriante do trabalho da população negra será possível? As opiniões não são unânimes: há quem desafia o branco a desconstruir o racismo sem depositar no colo das pessoas negras essa responsabilidade; há os que dizem que não será fácil, tampouco sem conflitos.

Antonio Sérgio Guimarães, crítico da ideia de raça na USP, mais um defensor de que o que há são posições sociais desiguais, entende que o branco precisa pensar a si mesmo enquanto ser branco e para tal reflexão,  lembrar o número de vezes que não foi interpelado pela polícia na rua e das situações em que obteve ajuda na escola para ter ideia de como se constitui ser branco em nossa sociedade.  Enfim, é necessário assumir que se tem vantagens, de saída, por ser branco.     

Lembrando as palavras da advogada Ana Helena Ithamar de que há a necessidade de cotidianamente tratar de contar, criticar  e valorizar não só uma única  história – a dos europeus brancos  –  mas  as histórias dos demais povos, não brancos, no espaço escolar, estas poderão  ser garantidas observando-se a lei nº 11.645 de 10 de março de 2008, que torna obrigatório o estudo de história e cultura indígena e afro-brasileira no ensino fundamental e médio. Contudo, para que a consciência branca presente nos estabelecimentos de ensino se constitua e se amplie de fato, é necessário que os cursos das licenciaturas dediquem-se ao preparo dos futuros docentes para tal, incluindo a temática em seus currículos. Por enquanto, tal  inclusão não se concretizou como obrigatória.

Deixo ainda um convite para acompanharem o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbol: http://afrocariocadecinema.org.br/encontro2020/programacao/

Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbol. Entre os dias 21 e 30 de outubro de 2020. Fonte: https://www.geledes.org.br/filmes-para-ver-de-graca-online-encontro-de-cinema-negro-zozimo-bulbul-reune-130-producoes/. Acesso em 22/10/2020.
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Possui graduação em psicologia e pedagogia, com doutorado em Educação: Psicologia da Educação, pela PUCSP. É especialista em temática de Direitos Humanos pela USP, SP e possui experiência na formação continuada de professores promovida pelo MEC e na formação inicial de professores nos cursos de pedagogia da Fundação Santo André, SP e Faculdades Oswaldo Cruz, SP, na formação continuada de professores em curso de EDH, pela UFABC, Campus Santo André e atualmente exerce função de coordenação pedagógica na educação básica.

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