Resenha do quadrinho Democracia de de Alecos Papadatos, Abraham Kawa e Annie Di Donna
Lielson Zeni é editor na DarkSide Books e doutorando na UFRJ. Escreve crítica, ensaio e textos acadêmicos sobre quadrinhos e literatura; lida com roteiros de cinema e quadrinhos e prosa de ficção. Membro do Balbúrdia http://balburdia.net
Democracia na estante
E não é que isso aqui me aparece no Brasil bem agora? O livro de quadrinhos Democracia, de Alecos Papadatos, Abraham Kawa e Annie Di Donna (WMF Martins Fontes, 2019, tradução de Rafael Mantovani e *EDIT: letreirização de Marcela Fehrenbach*) não quadriniza a história do surgimento do regime democrático em Atenas, mas constrói uma trama que usa esses acontecimentos como cenário.
Nesses tempo bicudos, em que a democracia é posta em dúvida, repensada e questionada (o que não é o problema, já me explico), em que há pessoas egoístas e mal informadas que defendem o seu fim em favor do autoritarismo, chega ao Brasil um quadrinho que fala do nascimento da democracia na Grécia. Se no Brasil elegemos um presidente entusiasta do governo militar que nega ter sido ditadura e da morte dos adversários políticos, no resto do mundo há a ascensão de extremas direitas populistas moralistas, belicistas e de pouco diálogo. E justamente em “pouco diálogo” que me prendo um pouco.
Disse ali que questionar e repensar a democracia não é um problema, que pensar em formas alternativas de regimes políticos também é de boa. Particularmente, acho nosso regime democrático bastante esfiapado, mas até hoje nenhum outro sistema garantiu tanta possibilidade de igualdade e de ajuste quanto a democracia. Trocar um regime que permite mudança e ajustes pelo autoritarismo não faz sentido. E é algo tão simples, que até fica difícil de argumentar mais que isto: mais escolhas é mais abrangente e atende mais pessoas (porque as pessoas são diferentes), por isso, precisamos de uma política inclusiva. Quando a gente elege um presidente que diz que as minorias precisam se dobrar à maioria e que vai metralhar os ideologicamente contrários, a lição de democracia já foi esquecida faz tempo.
O livro de Papadatos, Kawa e Di Donna conta a história do personagem Leandro (criado pelos autores), que convive com personagens históricos e mitológicos, e tem por cenário a mudança do regime político de Atenas: saíam os tiranos e entrava a votação dos cidadãos. Claro, que o conceito de cidadão lá ainda era muito restrito, mas aí entra a noção de a democracia ser questionada, discutida e repensada. Por exemplo, hoje, há muito menos mulheres e negros do que homens brancos na câmara e no senado se comparada à proporção de mulheres e negros da população brasileira, ou seja, estão sub-representados. É preciso achar meios para que essa representação se torne real no regime democrático e não acabar com a democracia (ver exemplo aqui, a partir do minuro 06:45). Do mesmo modo que a corrupção, nepotismo ou desvio de dinheiro não pede o fim da democracia, mas sim ajustes e fiscalização.
A forma de derrubar os tiranos (que na Grécia era o nome do líder com poderes ilimitados, mas de olho em atender os desejos populares) era pela força popular ou por um golpe dado por outra pessoa que se tornaria o novo tirano. Em uma hipotética ditadura, a única forma de derrubar um tirano por aqui seria também à força. Se o autoritarismo passeia pelos cadáveres das ideias contestadoras e das pessoas contrárias, ele se realimenta e se mantém com o sangue daqueles que se serviram dele.
Um quadrinho que faz seu leitor confrontar todas essas questões, todas tão urgentes, cumpre o objetivo. Democracia traz, acima de tudo, a história de Leandro, que encontra figuras importantes da Grécia e costura diversas informações do nascimento da ideia de democracia, enquanto acompanhamos sua história contada por ele mesmo, na noite anterior a uma importante batalha entre atenienses e persas. Mas para entender essa história, passamos pelas mudanças atenienses e suas novas ideias de política.
A arte é do mesmo time de Logicomix: Uma jornada épica em busca da verdade (WMF Martins Fontes, 2010, tradução de Alexandre Boide), e Papadatos e Di Donna usam figuras simplificadas em composições cuidadosas, e cores chapadas com leve sombreamento. A dupla de arte faz algumas páginas muito chamativas e dedicadas, que conduzem a trama de forma muito eficiente, além de serem interessantes por si mesmas.
Em tempos que se grita pela ditadura, só o título “democracia” na estante já é uma voz valiosa. Mas é melhor ainda quando o livro é aberto e o diálogo começa.