Em 2008, sobre o pseudônimo literário de Mário Cláudio, o escritor português Rui Manuel Pinto Barbot Costa publicou – em Portugal – seu vigésimo sexto romance, Boa noite, senhor Soares. De cunho biográfico, como apraz ao estilo do autor, a obra estabelece diálogo com o Livro do Desassossego[1] de Bernardo Soares, semi-heterônimo de Fernando Pessoa, e alcança, através do personagem Antônio da Silva Felício, aprendiz de caixeiro, uma teia de conexões que desfilam entre núcleos, da vida familiar e pessoal de Antônio, até a rotina do trabalho, sua relação com o Sr. Soares e as várias referências, explícitas ou não, do universo heteronímico pessoano. No decorrer deste ensaio, buscaremos apontar alguns dos eixos estabelecidos por Mário Cláudio e suas possíveis pontes com a obra de Pessoa, comparando fragmentos já publicados do espólio com trechos do romance, ora confirmando passagens, ora as questionando, na tentativa de propor um guia de referências para as aparições que vão se dando ao longo de todo o livro.
É Justo e esperado que partamos de Bernardo Soares em primeiro lugar. O ajudante de guarda-livros não é, segundo o próprio Pessoa, um heterônimo, mas sim um semi-heterônimo ou, como ele mais tarde o definiria, “não é um heterónimo, mas uma personalidade literária” (PESSOA, 1982, p. 90). Figurando como qualquer-coisa de intermédio entre o eu-ortônimo e o outro, Soares ganha, no romance de Mário Cláudio, traços biográficos muito próximos aos de Fernando António Nogueira Pessoa, como, por exemplo, uma irmã chamada Henriqueta Madalena[2], uma arca[3], onde deposita seus escritos, e a própria data de morte[4].
Pessoa ainda levantará, sobre seus desdobramentos de personalidade ou, antes, invenções de personalidades diferentes, dois graus ou tipos:
No primeiro grau, a personalidade distingue-se por ideias e sentimentos próprios, distintos dos meus, assim como, em mais baixo nível desse grau, se distingue por ideias, postas em raciocínio ou argumento, que não são minhas, ou, se o são, o não conheço. O Banqueiro Anarquista é um exemplo deste grau inferior; o Livro do Desassossego e a personagem Bernardo Soares são o grau superior. (PESSOA, 1966, p. 105)
Soares se diferencia de Pessoa no quesito ideológico e sensível, afasta-se da personalidade do ortônimo, ainda que não rompa o istmo que os une, e sorve a excisão fragmentada, a razão torta. A respeito dessa composição, em uma carta[5] de 13 de Janeiro de 1935, para Adolfo Casais Monteiro, o poeta afirma:
O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso. (PESSOA, 1986, p. 199)
A prosa, como modalidade escrita, dificultaria a dispersão, a independência de Soares, que tem por estilo, visto o próprio, a mesma prosa do ortônimo, com exceção do “raciocínio” e da “afetividade”. Todas essas aproximações e distanciamentos contribuem para a personagem composta no romance de Mario Cláudio. A experiência e o fluxo vital de Pessoa se misturam no Bernardo Soares de António, passam a fundamentar um universo de significação onde os heterônimos (Ricardo Reis, Álvaro de Campos, etc.) corporificam-se e o que antes existia apenas no intelecto, passa a caminhar pelas ruas de Lisboa, a interagir entre os seus e com os outros.
Dentre as várias pontes entre Boa noite, senhor Soares e o Livro do Desassossego, está a menção de uma rixa entre Soares e Sérgio:
Percebia-se que o senhor Soares não ia muito à missa do Sérgio, e não me esqueço daquele dia em que o rapaz entrou, cheio de importância, e como quem vai meter conversa com o tradutor, e ainda estou a ver este, virando-se com o olhar corragado de ódio, um ódio que eu nunca lhe surpreendera, que obrigou o caixeirito a bater em retirada para o armazém, e a limitar-se a um “Boa noite, senhor Soares”. […] Não há dúvida de que o senhor Soares, tão agradável com todos nós, não gramava o Sérgio, nem à mão direita de Deus-Padre, conforme se costuma dizer. CLÁUDIO, 2009, p. 26-27)
Ainda que Sérgio apareça em um dos fragmentos originais[6], parece-nos ser num excerto pessoano que a desavença toma corpo. Pessoa, em um apontamento solto, dirá sobre um tal Pereira, também empregado do armazém, muito brincalhão e tomado a pegadinhas, com quem Soares não suporta travar relações. O sobrenome de Sérgio não é mencionado no romance, o que nos leva a crer, pelo seu caráter “tão irônico” (CLÁUDIO, 2009, p. 45), que seja ele o Pereira.
O Soares e o Pereira, empregados do mesmo escritório, eram inimigos de alma. Não havia questão de serviço, ainda que nela rigorosamente não pudesse surgir conflito entre os dois, em que não surgisse conflito entre os dois. E, embora nunca seguissem por aquelas vias chamadas de facto, fervia em pouco tempo a descompostura mútua. De besta para cima e para baixo, todos os arredores de malandro, com passagem por gatuno e grande escala por tudo, verem-se era discordarem, olharem-se era a primeira palavra de se descomporem. (PESSOA, 1993, p. 267)
Além de Bernardo Soares, outros elementos se manifestam no correr da narrativa. Durante uma visita às hortas, num domingo, com a irmã Florinda e seus familiares, António estranhará a presença do Sr. Soares no local e, para mais surpreender, o fato incomum de haver com ele uma companhia:
Não sei como lanço a vista por cima do pessoal que ali acampava, a merendar, ou a bater a sesta, e que nada tinha a ver com o que quer que fosse que respeitasse ao senhor Soares, e dou com o sujeito, ou com o que se me assemelhou ser ele porque as lentes dos óculos redondos chispavam na luz, em mandas de camisa, e encostado a uma manta que entalava entre as costas e o tronco de uma oliveira. Diante do senhor Soares alapava-se um cavalheiro, um tipo que eu não conseguia identificar porque a sombra lhe cobria o rosto, e entre ambos distinguiam-se duas garrafas, e um embrulho aberto com o que julguei serem figos. […] O que o acompanhava, e o ajudava a festejar não imagino o quê, fora um dia, recordei-me então, ao escritório à procura do amigo, e confiara-me um cartão-de-visita que me retraí de entregar, conforme ele me pedira, ao destinatário. Era um pedaço de papel encorpado, a puxar para o amarelo, e que tinha impresso, “Ricardo Reis”, e por baixo, “Médico”, e ainda, escrito à mão, e a tinta preta, “passou por aqui”. (CLÁUDIO, 2009, p. 40-41)
Eis que surge nossa primeira referência direta aos outros “eus”. Ricardo Reis, heterônimo de Pessoa, médico, nascido no Porto, em 1887, com aproximadamente quarenta anos – visto que o romance se passa na década de trinta – aparece conversando com Bernardo Soares. Mario Cláudio coloca, para mais saber, uma visita de Reis a Portugal, detalhe que nos passa despercebido em uma primeira leitura e sem informações outras. Se Reis é português, parece normal sua estadia em Lisboa, mas acontece que o médico havia partido para o Brasil, com relativa certeza de permanencia, em 1919, por ocasião da revolta. Em uma passagem da carta a Casais Monteiro, Pessoa fala sobre a viagem de Reis:
Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. […] Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. (PESSOA, 1986, p. 199)
No entanto, por ocasião da morte de Alberto Caeiro, 1915, Álvaro de Campos dirá, em uma das Notas para a recordação do meu mestre Caeiro, que não presenciara a partida do mestre, pois estava em Inglaterra, e que o “próprio Ricardo Reis não estava em Lisboa; estava de volta no Brasil” (PESSOA, 1980, p. 267). Assim, fica claro que Reis tinha por costume viajar à antiga colônia e nada impede que, passado já um tempo em terras brasileiras, tenha feito uma visita a Portugal, antes da volta definitiva em 1936, ficcionalidade por Saramago, em O Ano da Morte de Ricardo Reis[7] (1984).
Em 05 de Abril de 1933, com o decimo oitavo aniversário de António, os rapazes do armazém decidem sair para comemorar. Após o expediente, vão a procura de um lugar onde possam beber e comer alguma coisa, encarreirando pelo Bairro Alto e indo parar numa tasquinha da qual o protagonista não lembra o nome. “Sentada junto da soleira da taberna, encontrava-se uma mulher gordalhufa” e mais para o fundo, sozinho e lendo o jornal, estava um “homem dos seus trinta anos, de pele um bocado amarelada”. Algum tempo depois, cessado o falatório dos que comemoravam, chegou pelo repente a “pergunta do taberneiro, dirigida ao sujeito amarelinho que ia comendo a sua refeição, ‘E então, senhor Tiago Veiga, caçou muitos elefantes lá na Guiné?’” (CLÁUDIO, 2009, p. 46). Ainda heterônimo, não mais de Pessoa. Essa seria, talvez, uma espécie de meta-referência, visto que Tiago Veiga é um criação do processo heteronímico mario-claudiano.
Publicado em 2011, Tiago Veiga, uma biografia conta a história de vida de um poeta que nascera numa aldeia do Alto Minho, no ano de 1900, e falecera, aos oitenta e oito anos, no mesmo lugar, de volta a sua terra. Bisneto pelo lado paterno de Camilo Castelo Branco, cruzaria com grandes nomes durante sua travessia, dentre eles, Jean Cocteau, o próprio Fernando Pessoa, Edith Sitwell, Marianne Moore, Luís Miguel Nava, Benedetto Croce e etc. Em uma entrevista intitulada Necessidade de reinventar a vida: entrevista com Mário Cláudio, autor de Tiago Veiga, uma biografia[8], concedida a José Cândido de Oliveira Martins, quando questionado sobre a possibilidade de haver em Veiga a gestação, bastante singular, de um heterônimo, Mário Cláudio se limitou a uma assertiva, dizendo que só se colocou a “fazer o relato biográfico de uma figura que o desafiou para tal”. Alguns leitores mais céticos quanto à existência do biografado, tentam comprovar “que a figura não existiu historicamente”, aponta o entrevistador, “mas que apenas existe dentro do pacto ficcional”. Para esses leitores, que colocam em cheque veracidade e autenticidade literária, vale lembrar o que disse Pessoa, em um dos trechos selecionados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, na coletânea Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (1966):
Primeiro, este volume, Livro do Desassossego, escrito por quem diz de si próprio chamar-se Vicente Guedes; depois O Guardador de Rebanhos e outros poemas e fragmentos do (também, e do mesmo modo, falecido) Alberto Caeiro, que nasceu próximo de Lisboa em 1889 e morreu onde nascera em 1915. Se me disserem que é absurdo falar assim de quem nunca existiu, respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer coisa onde quer que seja. (PESSOA, 1966, p. 95)
Aproveitando o ensejo, sem dar voltas no assunto, outra coisa chama a atenção no dito trecho acima posto. O autor do Livro do Desassossego, conhecidamente Bernardo Soares, está aqui apontado como Vicente Guedes. Dessa forma, nos encontramos com outra referência.
Após a comemoração de seu aniversário, enquanto voltava com os colegas pela Calçada do Combro, “mais ou menos pela altura da Igreja de Santa Catarina”, António se depara com o “senhor Soares, a subir pelo mesmo passeio, acompanhado por um sujeito, seu amigo”, que ele “sabia chamar-se Vicente Guedes” (CLÁUDIO, 2009, p. 49-50). O amigo misterioso de Soares não voltaria a aparecer, mesmo que por relance ou lembrança, até o fim do romance.
Teresa Sobral Cunha, responsável por transcrever, junto com Maria Aliete Galhoz, muito do que fora selecionado por Jacinto Prado Coelho na edição de 1982[9] do Desassossego, acredita que Guedes seja um coautor do livro, responsável por uma primeira fase, nos anos dez e vinte, e deixando para Soares a parte final, responsável pelo período de trinta e quarenta.
Dentre as referências até o momento apontadas, esta é – possivelmente – uma das mais delicadas e instáveis. Não há muito publicado sobre Vicente Guedes, ainda que Pessoa tenha escrito sobre ele. Algumas poucas alusões estão em partes isoladas e notas soltas, como as encontradas na obra Pessoa por Conhecer – Textos para um Novo Mapa, selecionada por Teresa Rita Lopes:
…este livro suave.
É quanto resta e restará duma das almas mais subtis no raciocínio, mais debochadas no puro sonho que têm visto este mundo. Nunca – eu o creio – houve criatura por fora humana que mais complexamente vivesse a sua consciência de si-próprio. Dandy no espírito, passeou a arte de sonhar através do acaso de existir.
Este livro é a biografia de alguém que nunca teve vida.
De V[icente] G[uedes] não se sabe nem quem era, nem o que fazia, nem (…)
Este livro não é dele: é ele. Mas lembremo-nos sempre de que, por detrás de tudo quanto aqui está dito na sombra, misterioso (…)
Para V[icente] G[uedes] ter consciência de si foi uma arte e uma moral; saber foi uma religião.
Ele viveu definitivamente a anestesia interior, aquela atitude de alma que mais se parece com a própria atitude de corpo de um [?] aristocrata completo. (PESSOA, 1990, p. 184)
Podemos ainda buscar registro em planos de publicação, esquemas onde o Livro do Dessassossega aparecerá, novamente, ligado ao nome de Vicente Guedes, como na edição francesa, Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: Héritage et création, organizada por Maria Teresa Rita Lopes:
ASPECTOS
«Prefácio geral».
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Alberto Caeiro (1889-1915) — «O Guardador de Rebanhos» e outros poemas e fragmentos.
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Ricardo Reis: «Odes».
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António Mora: «Alberto Caeiro e a renovação do paganismo».
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Álvaro de Campos: «Arco de Triunfo», Poemas.
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Vicente Guedes: «Livro do Desassossego». (PESSOA, 1977, p. 501)
Sem muita informação e carentes de dados que fomentem hipóteses mais ousadas, resta-nos, até segunda ordem, corroborar com a visão Teresa Sobral Cunha e supor que ambos, Soares e Guedes, coautores do livro, mantinham amizade e faziam parte do mesmo círculo, aproximados pelo empenho de escrever “a biografia de alguém que nunca teve vida”.
Com a volta de um parente a Portugal, Antônio e seus familiares chegam ao cais de Alcântara onde, aparecido o viajante, dada as boas vindas e os cumprimentos, prepararam-se para regressar a casa. Mais uma vez, inesperadamente, o protagonista acaba por descortinar o senhor Soares, acompanhado doutros dois, vindo das docas.
Voltando-me casualmente para trás, e para as docas que tínhamos abandonado, deparou-se-me o molhe vazio da multidão que momentos antes o povoara. Percorrendo-o com o vagar com que costumam deslocar-se os sonâmbulos, aproximavam-se de nós três personagens. A mais notória delas era o senhor Soares, caminhando ligeiramente curvo como sempre, e outro um cavalheiro estrangeirado, de monóculo, vestindo um bom fato de cheviote, e avançando com o passo travadinho dos que suscitam o piscar de olho dos moços de frete. Entre ambos marchava um jovem estivador, de cara enfarruscada, e de cabelo desgrenhado, de um louro muito baço, um Hércules que bem poderia servir de modelo a qualquer um desses escultores que trabalham por encomenda para os frontões, ou para os platibandas, dos grandes edifícios públicos. (CLÁUDIO, 2009, p. 70-71)
O cavalheiro metido em cheviote e com ares estrangeiros, não haveria de ser outro. Álvaro de Campos, também heterônimo de Pessoa, nascido em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890, precisamente às 13:30, engenheiro naval[10], acabara de chegar ao porto de Lisboa. Na já mencionada carta a Casais Monteiro, o ortônimo descreverá Campos:
Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. […] Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. […] Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. […] Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre. (PESSOA, 1986, p. 199)
Para além do monóculo, presente no romance, fica-nos também a menção ao decimo primeiro verso[11] da segunda estrofe do Poema em linha reta, atribuído a Álvaro de Campos, quanto “ao passo travadinho dos que suscitam o piscar de olho dos moços de frete”.
Sobre a relação de amizade entre Soares e Campos, Pessoa deixará posto que há “notáveis semelhanças […] entre Bernardo Soares e Álvaro de Campos. Mas, desde logo, surge em Álvaro de Campos o desleixo do português, o desatado das imagens, mais íntimo e menos propositado que o de Soares” (PESSOA, 1966, p. 103). Esse estreitamento aparente ficará evidenciado em outras notas e considerações, assim como a noção de cansaço que envolveria o aparecimento das personagens em Pessoa e que Mario Cláudio cita no “vagar com que costumam deslocar-se os sonâmbulos”.
Quanto ao jovem estivador, o terceiro sujeito que vem pelo cais em companhia de Campos e Reis, poderíamos conjecturar novas referências. Mesmo que se trate de um carregador de bagagens comum e não tenha passado pela intenção do autor de Boa noite, senhor Soares se ligar a nenhuma personalidade heteronímica, a presença deste entre os outros dois poderia abrir brechas para interpretações. A figura hercúlea, de cabelo louro e desgrenhado, que “poderia servir de modelo a qualquer um desses escultores que trabalham por encomenda”, se aproxima de uma descrição feita do próprio mestre Caeiro, por Fernando Pessoa, onde diz que este “era de estatura média, e, embora realmente frágil […], não parecia tão frágil como era. […] louro sem cor, olhos azuis” (PESSOA, 1986, p. 199), ou ainda o longo mapeamento feito por Campos, outro seu discípulo:
Vejo-o diante de mim, vê-lo-ei talvez eternamente como primeiro o vi. Primeiro, os olhos azuis de criança que não têm medo; depois, os malares já um pouco salientes, a cor um pouco pálida, e o estranho ar grego, que vinha de dentro e era uma calma, e não de fora, porque não era expressão nem feições. O cabelo, quase abundante, era louro, mas, se faltava luz, acastanhava-se. A estatura era média, tendendo para mais alta, mas curvada, sem ombros altos. O gesto era branco, o sorriso era como era, a voz era igual, lançada num tom de quem não procura senão dizer o que está dizendo-nem alta, nem baixa, clara, livre de intenções, de hesitações, de timidezas. O olhar azul não sabia deixar de fitar. Se a nossa observação estranhava qualquer coisa, encontrava-a: a testa, sem ser alta, era poderosamente branca. Repito: era pela sua brancura, que parecia maior que a da cara pálida, que tinha majestade. As mãos um pouco delgadas, mas não muito; a palma era larga. A expressão da boca, a última coisa em que se reparava — como se falar fosse, para este homem, menos que existir — era a de um sorriso como o que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos agradam — flores, campos largos, águas com sol — um sorriso de existir, e não de nos falar. (PESSOA, 1980, p. 267)
Os malares salientes, os cabelos louros e de um estranho ar grego. Poderíamos suscitar, na figura do estivador, a figura do mestre? As aproximações são insuficientes, ainda que interessantes, e a data do óbito de Caeiro, 1915, inviabiliza por completo a tentativa de aproximação, mas cabe-nos ainda outra hipótese. As conexões até agora reconhecidas apontam para Bernardo Soares, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e, passada a morte de Soares, a nota sobre a transposição dos “restos mortais de Fernando Pessoa” (CLÁUDIO, 2009, p. 98). Dentre os discípulos diretos de Alberto Caeiro, apenas um não apareceu no romance de forma direta. O filósofo, menos famoso, talvez por não escrever em verso ou prosa poética, António Mora, compunha a tríade que mais se acercara de Caeiro. Campos mencionará:
Em torno do meu mestre Caeiro havia […] principa1mente três pessoas – o Ricardo Reis, o António Mora e eu. […] E todos nós três devemos o melhor da alma que hoje temos ao nosso contacto com o meu mestre Caeiro. […] O António Mora era uma sombra com veleidades especulativas. Passava a vida a mastigar Kant e tentar ver com o pensamento se a vida tinha sentido. Indeciso, como todos os fortes, não tinha encontrado a verdade, ou o que para ele fosse verdade, o que para mim é o mesmo. Encontrou Caeiro e encontrou a verdade. O meu mestre Caeiro deu-lhe a alma que ele não tinha; pôs dentro do Mora periférico, que ele sempre tinha apenas sido, um Mora central. E o resultado foi a redução a sistema e a verdade lógica dos pensamentos instintivos de Caeiro. O resultado triunfal foi esses dois tratados, maravilhas de originalidade e de pensamento, O Regresso dos Deuses e os Prolegómenos a uma Reformação do Paganismo. (PESSOA, 1990, p. 369)
Poderíamos crer que o terceiro indivíduo fosse então Mora, seguindo pelo cais na presença de seus dois amigos, visto que não há, dentre as descrições encontradas, nada que se volte para a fisionomia do filósofo. Mantendo apenas elucubrações curiosas, sem grandes concretudes, ficamos ainda com uma última colocação, não mais voltada pera o jovem de Alcântara, mas em especial para o protagonista, o Sr. António da Silva Felício.
Já ao fim do romance, em uma passagem onde se lembra de seu pai e da ocasião de sua partida para Lisboa em busca de trabalho, a personagem dirá:
Foi por essas alturas que me recordei desta promessa de meu pai, feita no dia em que eu partira para trabalhar em Lisboa. “Não te esqueças, se alguma vez tiveres fome, há sempre aqui uma tigela de sopa à tua espera”. […] Compreendi pois que o melhor caminho consistia em tornar à minha aldeia, e em me colocar à beira do meu velho, cavando a terra, planando as couves, e comendo à noitinha a tal tigela de sopa. (CLÁUDIO, 2009, p. 94)
Ainda que o sobrenome Silva seja extremamente comum em terras lusitanas e que várias aldeias estejam por lá estabelecidas desde há muito, uma “coincidência” pediu nosso cuidado. Caeiro viveu “quase toda a sua vida no campo” (PESSOA, 1986, p. 199), em sua aldeia, onde corre um rio mais belo que o Tejo por não ser o Tejo e correr ele pela aldeia e não em outro lugar[12]. O nome completo do poeta neo-pagão era Alberto da Silva Caeiro, casualmente o mesmo sobrenome do protagonista, posto na mesma posição, e o mestre tinha ainda parentes mencionados por Ricardo Reis, nos agradecimentos ao seu espólio cedido, que poderiam fomentar um possível parentesco:
A nossa gratidão vai para os srs. António Caeiro da Silva e Júlio Manuel Caeiro, a cuja cortesia devemos a cedência destes poemas. A obra do Mestre compõe-se, além destes, que formam o seu único livro inteiro, de «outros poemas e fragmentos». Confiamos em que os seus detentores não tardarão em dá-la à publicidade, se não à celebridade, porque essa só a obtêm (hoje), parece, os que a não merecem. (PESSOA, 1990, p. 382)
António Caeiro da Silva e Alberto Caeiro da Silva. Contingência e eventualidade? Pode ser, mas aqui nos vale a possibilidade e toda a gama de caminhos que essa cadeia de relações pode estabelecer.
Certos da cegueira e das passagens ignoradas, de haver o encoberto e dos alinhamentos sutis que nos escaparam, terminamos este ensaio sem o terminar. Assim como a obra pessoana – o universo contido na arca – um guia de referências direcionado para esse conglomerado (quase) infinito deve manter-se aberto, receptivo a novos contatos e contribuições.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALVÃO, Dalva. Narrativa biográfica e outras artes: reflexões sobre escrita literária e criação estética na Trilogia da mão, de Mário Cláudio. Niterói: Editora da UFF, 2008.
CLÁUDIO, Mário. Boa noite, senhor Soares. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.
CLÁUDIO, Mário. Tiago Veiga, Uma Biografia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2011.
PESSOA, Fernando. Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. (Introdução, apêndice e notas do destinatário.) Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982.
PESSOA, Fernando. Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas. (Introdução, organização e notas de Antoónio Quadros). Lisboa: Publ. Europa-América, 1986.
PESSOA, Fernando. Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: Héritage et création. (Organizado por Maria Teresa Rita Lopes). Paris: F. C. Gulbenkian, 1977.
PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. (Organização por Richard Zenith). 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol. I. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
PESSOA, Fernando. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho). Lisboa: Ática, 1966.
PESSOA, Fernando. Pessoa Inédito. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
PESSOA, Fernando. Pessoa por Conhecer – Textos para um Novo Mapa. (Organizado por Teresa Rita Lopes). Lisboa: Estampa, 1990.
PESSOA, Fernando. Poemas de Alberto Caeiro. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1993.
PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1944.
PESSOA, Fernando. Textos de Crítica e de Intervenção. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.
SARAMAGO, José. O Ano da Morte de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
[1] Existem muitos conflitos entre as edições já organizadas e seus respectivos organizadores. Comparando os trabalhos de Richard Zenith, Teresa Sobral Cunha e, mais recentemente, Jeronimo Pizarro, chegamos a obras consideravelmente diferentes em forma (estrutura) e conteúdo.
[2] Em 1901, Fernando Pessoa perdera uma irmã de nome inverso (Madalena Henriqueta).
[3] António, após chegar ao apartamento de Soares, narrará: Para além de uma cortina mal corrida descortinei um soalho onde batia o sol, e donde se esguia uma arca de couro que depreendi que estaria repleta de escritos nas folhas soltas que o senhor Soares costumava utilizar. (CLÁUDIO, 2009, p. 82)
[4] Soube então do falecimento do senhor Soares, ocorrido em Novembro do ano anterior [1935]. (CLÁUDIO, 2009, p. 96) – Fernando Pessoa morrera em 30 de novembro de 1935.
[5] Carta sobre a gênese dos heterônimos.
[6] Achego-me à minha secretária como a um baluarte contra a vida. Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um pouco para além de mim. Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar — ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como a grande indiferença das estrelas. (PESSOA, 1982, p. 81)
[7] O fantasma de Fernando Pessoa fala para Ricardo Reis: Você, Reis, tem sina de andar a fugir das revoluções, em mil novecentos e dezanove foi para o Brasil por causa de uma que falhou, agora foge do Brasil por causa de outra que, provavelmente, falhou também […]” (SARAMAGO, 1988, p. 49)
[8] Disponível em: http://goo.gl/DNl0qF
[9] Em 2011, a Companhia das Letras publicou no Brasil uma edição do Livro do Desassossego, organizada por Richard Zenith, com lugar reservado no apêndice para Textos que citam o nome de Vicente Guedes (PESSOA, 2011, p. 493).
[10] Glasgow ou, raramente na sua forma portuguesa, Glásgua é a maior cidade da Escócia, e a terceira mais populosa do Reino Unido, depois da capital Londres e de Birmingham, e a mais populosa cidade britânica fora da Inglaterra.
[11] Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, […] (PESSOA, 1944, p. 312)
[12] O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia […] (PESSOA, 1993, p. 46)