HISTÓRIA DO MANGÁ

*Por Lauren Nascimento

Quando falamos em mangá, uma das primeiras coisas que vem à mente são histórias com muita ação e velocidade, personagens caricatos com olhos grandes, em histórias fantásticas que se leem de trás pra frente. No Brasil, esse tipo de leitura ainda é associado apenas a um pequeno nicho de leitores jovens e aficionados pela cultura japonesa, porém, há um consumo bem expressivo no país, inclusive em períodos em que a produção editorial de quadrinhos no Brasil ainda era exclusiva a grandes conglomerados como os quadrinhos Disney publicados pela Abril.

Mangás são, na verdade, uma forma de história em quadrinhos que compartilha de alguns traços específicos surgidos no Japão, e remetendo, muitas vezes, a elementos fantásticos. Dentre os traços mais compartilhados estão a linha contínua e o desenho quase exclusivamente em preto e branco, devido ao fato de serem produzidos massivamente em impressão barata para rápida comercialização. Embora elementos da cultura japonesa abundem em boa parte de seus derivados, hoje há mangás de diversas nacionalidades, inclusive brasileira. O objetivo desse artigo é apresentar a história do mangá, a partir de renovações estéticas e do impacto das relações de consumo com esse ramo tão peculiar de histórias em quadrinhos.

O termo mangá

Mangá significa literalmente “desenho irreverente”, e esse termo foi usado pela primeira vez no século XIX pelo famoso artista de ukiyo-e (imagem desenhada na madeira) Katsushika Hokusai. Ele deu esse nome a seus livros de desenhos variados e esboços, a Hokusai Manga (algo como “desenhos irreverentes de Hokusai”); (BRAGA, 2005, p. 83). Até hoje, a partir das criações de Hokusai, mangás ainda são imaginados como apenas aqueles de raiz cômica, com forma exagerada de contar suas histórias, porém mais adiante observaremos os diferentes gêneros existentes.

Figura 1 – Kanji para “Mangá” Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/7/75/Manga_in_Jp.svg/275px-Manga_in_Jp.svg.png

As raízes desse gênero se encontram um pouco mais no passado, durante o Período Nara (século VIII d.C), quando surgem os primeiros e-makimonos, pergaminhos enrolados que iam contando uma história ao serem abertos, sendo, nesse momento, ainda cópias de obras chinesas que separavam o texto do desenho. A partir do século XI, começam a ser produzidos os primeiros e-makimonos com estilo japonês, sendo mais famoso deles obra do monge Toba Sojo, preservado no templo de Kozangi, em Kyoto. Essa obra traz, em sua maioria, cenas humorísticas com animais desenhadas em uma superfície de madeira e estampadas em papiros (BRAGA, 2005, p. 83).

Figura 2 – Diagrama de um e-makimono Fonte: Wikimedia Commons (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Emaki_-_outline.png)

 Tanto o e-makimonos quanto seus sucessores, os kibyoshis (livros ilustrados do final do século XVIII) compartilhavam narrativas satíricas, cômicas, que tratavam do dia a dia daquela sociedade, histórias essas destinadas a um público adulto, nota-se, porém, que o texto dos kibyoshis e e-makimonos eram usados de forma descritiva em relação às imagens. Eles diferiam-se, portanto, da forma do mangá e das histórias em quadrinhos de hoje, cuja características são a relação artrológica estabelecida pelos diversos elementos na página: como explica o teórico dos quadrinhos Thierry Groesnteen, narrativas em imagens têm em comum o fato de compreenderem uma “solidariedade icônica”, i.e., elementos imagéticos diferentes que se relacionam entre si, e o fato de estarem dispostos em uma sequência.

Porém, a relação estabelecida entre as imagens, em uma página de histórias em quadrinhos, é “artrológica”, há uma articulação entre elas que cria uma relação de sequencialidade narrativa. À diferença de um livro ilustrado, como os kibyoshis, por exemplo, em que essa relação se dá página a página, nos quadrinhos ela ocorre em uma mesma “espaçotopia”, outro termo utilizado pelo teórico (GROENSTEEN, 2015). Nesse sentido, os mangás podem ser lidos como uma tradução para uma vasta gama de gêneros de quadrinhos surgidos no Japão.

O mangá que conhecemos hoje, segundo o pesquisador Amaro Braga (2020) é fruto de muitos processos históricos que, através de aculturações e transculturações, modificaram além da aparência a forma de os japoneses contarem e desenharem suas histórias. Dentre essas influências estrangeiras, em meados do século XX, técnicas como o uso de balões de diálogos passaram a ser incorporados nas obras, assim como a introdução das autorias coletivas, como no caso de Shû Chan No Bôken (As aventuras de Sho-Chan), de Katsuichi Kabashima (desenhos) com Nobutsune Oda (com os enredos da história).

A partir da década de 1950, Ozamu Tezuka causou grandes mudanças na estética do mangá, ao introduzir influências do mundo Disney em suas obras, sendo Shin Takarajima (A Nova Ilha do Tesouro, no Brasil) um marco no estilo e na indústria japonesa da época, trazendo as bases para o que conhecemos com mangá moderno (BAUDRY, HÉBERT, ROGER, 2019, p. 54-55).

Também passaram a fazer parte da linguagem utilizada nos mangás a partir das décadas de 1940-1950 os cortes e angulações de câmera, forte contraste de preto e cinza e a utilização das chamadas “linhas de ação”, com a intenção de ilustrar rapidez e movimentação. Há também influências diretas do cinema noir, como “obras de tons escurecidos, temática e fotograficamente, surpreendentes em sua representação crítica e fatalista da sociedade americana e na subversão à unidade e estabilidade típicas do classicismo de Hollywood” (MASCARELLO, 2006, p. 176).

Figura 3- One Punch Man (2016 – atual) – Panini

A divisão das publicações entre revistas para meninos e meninas já acontecia há muito tempo, com a popularização das revistas voltadas ao público infantil, no fim da Era Meiji; surgiram aí publicações famosas como a Shonen Sekai (desde 1895), publicação voltada para meninos, e a Shojo Sekai (1906), versão para meninas (BRAGA, 2020). Durante a Guerra Sino-Japonesa (1937 – 1945), uma nova temática foi introduzida nos mangás, a propaganda pró-guerra e defesa dos valores do Império Japonês. Mudanças na forma de produção também aconteceram durante esse período, como a escassez do papel e outros materiais, forçando as editoras a reduzir páginas em seus volumes e passar a utilizar o papel jornal por ser mais barato; até que, em 1937, o governo militar japonês proibiu as revistas de entretenimento (BRAGA, 2020).

Após a Segunda Guerra Mundial  o mangá no Japão toma um novo fôlego e novas temáticas são exploradas nas histórias, explorando o cotidiano da população e trazendo personagens com enredos capazes de ajudar o povo desse país, que saiu perdedor da Grande Guerra, a se reerguer e ultrapassar as dificuldades daquele momento tornando-se uma das maiores economias do mundo. A divisão do mercado de mangá por “demografias” – faixa etária e social – serviu para ampliar a distribuição de materiais dos mais variados temas sem que algum se sobressaísse aos outros pois cada divisão possui seu público de interesse. Se tratando de divisão por idade e gênero as classificações mais conhecidas são: “Kodomo (crianças), Shonem (meninos adolescentes), Shojo (meninas adolescentes), Seinen (homens adultos) e Josei (mulheres adultas). Mas não para por aí… Em cada uma destas nomenclaturas pode haver outras subdivisões para especificar os gêneros e o tipo de público dentro de cada categoria” (BRAGA, 2020, p. 84).

Resumidamente, ainda segundo Amaro Braga, os mangás Shonen são aqueles em que os protagonistas (geralmente jovens meninos ou adolescentes) passam por muitos desafios e aventuras para, com muita dor e sofrimento, ultrapassar esses obstáculos. É comum que haja também subenredos dentro das histórias que envolvam ficção científica, esportes e fantasia; como exemplos de alguns mais famosos no ocidente temos Hunter X Hunter, Saint Seiya, One Piece, Dragon Ball Z, entre outros. Já os mangás dirigidos às jovens meninas e adolescentes, os Shojo, apresentam temáticas que em geral são mais dramáticas, envolvendo romances, conflitos psicológicos que podem ocorrer em família ou escola. Assim como nos Shonen, o Shoujo também se utiliza de planos de fundo dos mais variados tipos, como colegiais ou ficção científica, para contar suas histórias.

As personagens apresentadas geralmente são meninas gentis, inseguras e o protagonismo feminino tende a ser foco nas histórias; dentre algumas mais famosas temos Fruits Basket, Sailor Moon, Ao Haru Ride, Cardcaptor Sakura, Orange. Direcionado ao público infantil temos a demografia denominada Kodomo, com histórias de cunho humorístico e desenhos mais simples, geralmente trazem alguma lição moralizante e/ou pedagógica e a presença de animais companheiros. Amaro Braga cita Doraemon, A caminhada de Yaya, Pan Pan Panda, Roji, Kimba e o Leão Branco como alguns exemplos de mangá Kodomo.

Como uma “versão ampliada do Shonem” (BRAGA, 2020, p. 85), os mangás Seinen são voltados para homens adultos jovens e, em geral, trazem desenhos menos caricatos e menos humorísticos. Situações de violência, horror e até mesmo cenas mais eróticas costumam fazer parte dessa narrativa. Alguns exemplos citados por Amaro Braga são: Death Note, Attack On Titan, Monster, Black Lagoon, Ghost in the Shell e Cowboy Bebop. Já para as mulheres jovens adultas são explorados temas relacionados a família, casamento e vida doméstica. Em geral o foco das revistas Josei recai sobre personagens masculinos bem sucedidos e interessados em casar. Nos roteiros é possível encontrar muitas vezes situações de atividade sexual – sem cenas explícitas ou violentas – e “que (quase) nunca são consumadas.

Em certas medidas, o crescente sucesso deste gênero é que levará ao surgimento de subgêneros eróticos problemáticos para o ocidente” (BRAGA, 2020, p. 86). Alguns exemplos de mangá Josei são: Happy Mania, Suppli, Loveless, 07-Ghost, Karneval, Gokusen, Paradise Kiss. Os mangás Hentai – que literalmente significa “pervertido” – são voltados justamente para essas temáticas pornográficas e eróticas, com cenas se sexo explícito, explorando diversas temáticas relacionadas ao desejo sexual. No Japão são conhecidos como Seijin e em geral, não possuem enredos profundos e os desenhos buscam quadros mais abertos e explorando a nudez do corpo feminino. Alguns exemplos de Hentai são: Henshin, Power Play, Twin Milf, Boy Meets Harem, Nudist Beach ni Shuugaku Ryokou de!!, Giri Giri Sisters.

Os mangás denominados Yaoi e Yuri são subdivisões dos mangás Shoujo. Os Yaoi são romances, comédias, dramas ou aventuras com protagonistas gays, voltados ao público feminino) e os Yuri, com as mesmas características dos Yaoi porém retratando relações entre mulheres. Outro detalhe é que, diferente do Yaoi, os mangás desse estilo podem ser publicados tanto em revistas de mangás masculinos quanto nas direcionadas para as garotas.

Atualmente é possível identificar algumas formas de hibridização, como diz Amaro Braga, tais como o Nouvelle Mangá, que traz um quadrinho com fortes influências do movimento do cinema francês conhecido como Nouvelle Vague, e o Mangá Nacional, produzido por brasileiros mesclando características culturais nacionais ao estilo mangá para compor suas narrativas.

Mangás brasileiros

No início do século XX, com imigração japonesa chegando ao Brasil (1908), temos a cultura japonesa introduzida diretamente no país e, a partir daí, mesmo que levemente, influenciando a cultura brasileira. Essas colônias japonesas do país, em especial a localizada até hoje no Bairro Liberdade em São Paulo, foram os primeiros a importar mangás para o país para consumo interno desses imigrantes. A partir das décadas de 1950 e 1960, alguns desses imigrantes passaram, então, a produzir quadrinhos inspirados no estilo japonês, sendo um deles Minami Keizi, que planejou publicar seu personagem Tupazinho em estilo mangá, inspirado em Astro Boy de Tezuka,  na editora Pan Juvenil, porém foi orientado a adotar o estilo ocidental (NARANJO,2018). A editora Pan Juvenil foi a que, em 1966, publicou o primeiro mangá brasileiro, “Álbum Encantado”, com arte de Fabiano Júlio Dias e roteiro de Minami Keizi (PAN JUVENIL, 2007).

Figura 4- Álbum Encantado, 1966, Pan Juvenil  Disponível em:http://museudosgibis.blogspot.com/2017/01/album-encantado-editora-pan-juvenil.html

Na década de 1960, o descendente de japoneses Claudio Seto passou a fazer parte do quadro da EDREL (Editora de Revistas e Livros, fundada após o fim da Pan Juvenil por Minami Keizi, Jinki Yamamoto e Salvador Bentivegna) e se tornou um dos primeiros autores de mangá conhecidos no Brasil, publicando títulos como O Samurai, Flavo (também inspirado em Astro Boy) e Maria Erótica (que traz semelhanças com os hentais japoneses – mangás eróticos) Claudio Seto chegou a ser premiado, em 1966 como “Pioneiro e Mestre do Mangá no Brasil” pela Associação dos Desenhistas de Mangá e Ilustradores (CLAUDIO SETO, 2007).

Figura 5- Tupanzinho, Editora Pan Juvenil, 1966 Disponível em: https://tvalenhaschmidt.blogspot.com/2018/05/gibis-antigos-classic-comics-brazilian.html?m=1

Ainda na EDREL, a primeira publicação a citar os mangás japoneses no Brasil é o livro A técnica universal das histórias em quadrinhos de Fernando Ikoma. A EDREL fechou em 1975 após várias trocas de direção (EDREL, 2007). A extinta editora Ninja publicou três edições do mangá erótico Angel de U-Jin, no início da década de 1990, sem licenciamento para publicação (GUIA DOS QUADRINHOS). Havia também revistas como a Animax, da Editora Magnum, e Herói, da Editora Acme em parceria com a Nova Sampa publicando quadrinhos brasileiros emulando estilos japoneses (CANALTECH, 2019), e até já se fazia pesquisa, como o notório trabalho da professora Sonia Luyten sobre quadrinhos japoneses, marcado por sua premiação como pesquisadora em 1988 com um Troféu HQ Mix, premiação destinada à histórias em quadrinhos, cartuns, charges e artes gráficas e pesquisas nessa área no Brasil, criado naquele mesmo ano. 

Os mangás, portanto, são um fenômeno editorial importante no país, em que tradicionalmente se consumia quadrinhos infantis e juvenis de origem americana vendidos em bancas de jornais. A partir dos anos 2000, a produção de mangás suplantou esse espaço, e cada vez mais percebe-se um maior interesse de editoras em publicarem traduções de mangás de diversos tipos. Há também uma produção em crescimento de mangás de autoria brasileira,  a produção da revista Holy Avenger, de 1999, escrita por Marcelo Cassaro e desenhada por Erika Awano e que mesmo nunca sendo tratada pelos autores com o termo mangá mas sim “em estilo mangá”.

Foi reconhecida como mangá, em 2007, pelo Ministério dos Assuntos Estrangeiros do Japão, no Concurso Internacional de Mangás, sendo a única finalista brasileira na competição (CASSARO in NAGADO, 2011, p. 9); Mais atualmente temos muitos outros mangás criados por brasileiros como Tools Challenge, de Max Andrade (2011, Editora Draco), Sigma Pi, Shoujo de Adriana Yumi (2010, independente) e Shoujo Bomb (2019), que reúne várias autoras do cenário independente de mangás no Brasil como Renata Rinaldi, Cah Poszar, Lígia Zanella, Mari Petrovana, Janaina Araújo e Juliana Loyola, mostrando que esse jeito de fazer quadrinhos não mais se restringe aos japoneses.

Figura 6- Holy Avenger Vol. 23 Disponível em http://www.guiadosquadrinhos.com/capas/holy-avenger/ho091100

Mas o mangá brasileiro também possui algumas subdivisões que mostram apenas a operacionalização das produções de mangá feitas no país. Como nos mostra Amaro Braga, são três as divisões principais:

 (1) O Moho-Mangá ou Mangá-Mimético, que são aqueles que reproduzem totalmente os elementos do Mangá original, temática e esteticamente, e são reconhecidos como “nacionais” apenas por serem feitos no Brasil ou por brasileiros. Sendo, portanto, copias dos Mangás. Nestes materiais os autores querem mostrar que são desenhistas profissionais, competentes ao ponto de fazerem algo igualzinho ao original japonês e até mesmo trabalhar naquele mercado. Entre os modelos do Moho-Mangá, podem ser enquadradas a revista “Oiran”, do Studio Season de São Paulo, e as revistas “Vitral” e “O Príncipe do Best Seller”, das gêmeas do Futago Estúdio de Mangá: Silvana e Sônia de Alvarenga.

(2) O Kongo-Mangá ou Mangá-Híbrido, que se apropria de determinados bens estéticos ou temáticos dos Mangás, mas não reproduzem totalmente seus esquemas estilísticos, resultando em produtos híbridos. Grande parte da produção brasileira de Mangá fica enquadrada neste segmento.

E o terceiro, o (3) Nikkei-Mangá ou Mangá-Nativo, onde os quadrinhos se produzem como elemento nacional, brasileiro, com identidade própria e particular, porém esteticamente reconhecido como um “Mangá” japonês. (BRAGA, 2020, p. 114)

Mas, esses mangás produzidos fora do Japão, como os brasileiros, são ainda reconhecidos como mangá ou seriam quadrinhos no estilo japonês? O que faz o mangá é uma questão estilística ou geográfica? Durante um episódio do programa “Café com Aspas”, da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial, os pesquisadores Amaro Braga, Sonia B. Luyten, Valéria Fernandes e Gutts Tanar conversaram sobre a gênese dos mangás e entre os tópicos discutiram o que faz do mangá, realmente mangá. A historiadora e pesquisadora em questões de gênero nos mangás, Prof. Dra. Valéria Fernandes, afirma que é importante levar em consideração a origem geográfica e cultural dos mangás. Porém, assim como o Japão sofreu muitas influências externas em sua arte, os próprios japoneses reconhecem que a produção de mangás não se restringe ao continente nipônico, inclusive premiando os méritos de mangás feitos internacionalmente.

Amaro Braga salienta que, para os japoneses, toda a história em quadrinhos lá existente (de fonte externa ou não) é chamado mangá. Braga pontua, no entanto, que mangá também é questão de estilo, de uma linguagem estética que, entre pesquisadores, leitores e também os artistas (quadrinistas), passou-se a associar ao mangá. São certas características, formas de desenho e de contar histórias que são parte do imaginário compartilhado no ocidente do que seria a produção autenticamente japonesa. Sendo assim, esse tipo de julgamento depende muito da perspectiva teórica adotada, pois, “cada campo de pesquisa tem seu escopo teórico e defendem diferentes vertentes” (BRAGA, 2021).

Essas pesquisas nos ajudam a compreender como um formato característico da cultura japonesa consegue alcançar tão diversos públicos e também ser adaptado/apropriado por essas culturas para contar suas próprias histórias. Ainda assim, perspectivas sociais, históricas, culturais, literárias e linguísticas ainda podem ser muito estudadas abrangendo as diversas possibilidades de análise, uso e compreensão desse jeito de fazer quadrinhos.

Aos poucos a área de quadrinhos e, mais especificamente, de mangás vai se expandindo no país, com novas frentes de pesquisa e novos artistas também trabalhando no estilo. O quadrinho digital também vem ganhando força no Brasil abrindo portas para novos artistas explorarem o meio e alcançarem o público de forma cada vez mais independente.

Muitas discussões ainda são possíveis, sejam elas quanto a genealogia do mangá no Brasil, autoria de mangás brasileiros, questões estilísticas ou de gênero. Grandes pesquisadores pavimentam o caminho dos estudos de quadrinhos e mangá no Brasil, permitindo que, a partir de suas pesquisas, sigamos caminhos diferentes ou aprofundemos suas temáticas, propiciando também aos próprios quadrinistas uma melhor compreensão do mercado no qual se inserem, fortalecendo a produção de materiais em um contexto tão diferente do originário da linguagem mangá, porém altamente adaptável e de forte apelo ao público brasileiro.

Estudos como os de Amaro Braga, que buscam na sociologia formas de compreender o fenômeno do mangá produzido no Brasil nos ajudam a pensar essas questões identitárias e de estilo que permeiam a produção nacional de mangás, como no artigo Mangá Nacional: Crises Identitárias na Produção Brasileira de Histórias no qual aborda justamente essa possível hibridização cultural corroborada pela adoção de estéticas nipônicas na produção de quadrinhos brasileiros.

A perspectiva de gênero, que permeia a pesquisa da historiadora Valéria Fernandes, apoia a ideia de que os mangás ainda são campo pouco explorado e com muitas possibilidades no país. Autora também de um conhecido blog sobre mangás, o Shoujo Café, a autora dedica-se ao estudo dos mangás desde 2007, com a publicação de um artigo chamado “História, Shoujo Mangá e Feminismo: Um Olhar Sobre a Rosa de Versalhes”. Dentre os estudos mais importantes para se compreender o “fenômeno” mangá, temos a pioneira nesses estudos no Brasil, Sonia Bibe Luyten, com uma perspectiva histórica que nos ajuda a compreender também como funciona o mercado interno do mangá no Japão, além de nos propiciar ferramentas para aprofundar e abranger os estudos nos quadrinhos japoneses.

CONCLUSÃO

Sendo o Brasil a maior colônia de descendentes japoneses fora do Japão (LUYTEN, 2012, p. 148), não é surpresa que sejamos um país que consome muito mangá, sendo que, entre Janeiro e Fevereiro de 2021 já foram lançados 55 volumes apenas de mangá no país, incluindo lançamentos e reimpressões, número porém, inferior ao mesmo período do ano passado (2020), conforme mostra a figura a seguir:

Figura 7 – Volume de mangás publicados no Br entre Jan-Fev Disponível em:https://blogbbm.com/2021/03/08/resumo-do-mercado-brasileiro-de-mangas-02-2021/

Mesmo estando do outro lado do mundo, o Japão tem uma forte presença cultural no Brasil influenciando muitos artistas brasileiros a produzirem seus próprios mangás, como visto anteriormente. Com um mercado interno muito forte, o Japão carrega em seus quadrinhos uma certa identidade que a torna facilmente detectável mesmo passando por muitas hibridizações e sendo fortemente influenciado por artistas e técnicas estrangeiras. Com uma estética bastante diversa, é importante observar que o quadrinho japonês vem conquistando muitos outros países além do Brasil, países que não possuem tão significativo número de imigrantes e descendentes dessa cultura e, mesmo assim, absorvem e são impactados pelas histórias contadas pelos japoneses.

A variedade de estilos dentro da estética do quadrinho japonês se torna um campo vasto para estudos e análises, pois cada uma tendo suas particularidades, merecem análises específicas e , quem sabe assim, possamos compreender um pouco melhor não só os métodos de criação e influências que perpassam os mangás mas também os motivos que os levam ao imenso sucesso alcançado no exterior.

Uma manifestação artística com raízes milenares como o quadrinho japonês e que se adapta e se molda a sua realidade, “ajaponeizando” influências estrangeiras, tornando-as suas e produzindo conteúdos em que não só o povo japonês se identifica, abrangendo temas variados e que se adaptam ao público ao qual se dirigem nos abre muitas portas para questionamentos. Diversas chaves de leitura e perspectivas teóricas são ainda possíveis já que, além dos “gêneros” já conhecidos dentro do mangá ainda há novas hibridizações que surgem ao longo do tempo conforme o estilo mangá vai sendo incorporado por artistas de diversas escolas e vertentes. Não é possível, portanto, estudar o mangá sem pensar nessa diversidade e constante transformação: como os quadrinhos, o nome hoje abriga uma multiplicidade de obras para públicos bastantes diversos, com estéticas e temáticas bem diferentes.

*Lauren Nascimento é formada em comunicação, atualmente estudante do Bacharelado em Letras – Português na UFSM. Pesquisadora de Iniciação Científica do grupo de pesquisa “Oficinas de escrita, histórias em quadrinhos e tradução: teoria da literatura e práticas literárias, no Diretório de Grupos do CNPq, coordenado pela Prof. Dra. Maria Clara Carneiro. Atualmente pesquisando a relação do mangá e Psicogeografia assim como o movimento do Nouvelle Mangá e estilo nos quadrinhos.

REFERÊNCIAS

BAUDRY, J.; HÉBERT, X.; ROGER, K. Hériter, imiter. Paris: Classiques Garnier, 2019.  Disponível em: https://classiques-garnier.com/style-s-de-la-bande-dessinee-heriter-imiter.html.

BRAGA JR, A. X. Desvendando o mangá brasileiro: reprodução ou hibridização?  2005. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005.

_____. Histórias em quadrinhos japonesas: história, estética e impactos sociais. São Leopoldo: Faculdades EST, 2020 (Livro Didático). Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1dRSYUtDzsdt6RdaMmKLmN004ndYG96qx/view. Acesso em: 7 mar. 2021.

O MANGÁ NO BRASIL. Confins do Universo: episódio 46. Entrevistadores: Sidney Gusman, Samir Naliato, Sérgio Codespoti e Marcelo Naranjo. Entrevistados: Beth Kodama e Cassius Medauar. [S.I] Universo HQ, 21 mar. 2018. Podcast.Disponível em:http://universohq.com/podcast/confins-do-universo-046-o-manga-no-brasil/. Acesso em: 24 fev. 2021.

GROENSTEEN,T. O Sistema dos Quadrinhos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Marsupial Editora, 2015.

EDITORA EDREL. In: Guia dos Quadrinhos, 2007. Disponível em: http://www.guiadosquadrinhos.com/editora/edrel/152 Acesso em 23/02.

PAN JUVENIL. In: Guia dos Quadrinhos, mar. 2007.Disponível em http://www.guiadosquadrinhos.com/gibis-da-editora/pan-juvenil/159. Acesso em 24 fev. 2021.

LUYTEN, S.B. Currículo do sistema currículo Lattes. 08 ago. 2020. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/3523112773488026. Acesso em 19/02.

_____.  Mangá – o poder dos quadrinhos japoneses. 3.ed. São Paulo: Hedra, 2012

MANGÁ GÊNESE, 2021. 1 vídeo (1:09:54s). Publicado pelo canal Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hsC7BkHAlHQ&t=2s. Acesso em: 23 fev. 2021.

MANGÁ. In: WIKIPEDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mang%C3%A1. Acesso em: 19 fev. 2021.

MASCARELLO, F. (org.) História do cinema mundial. São Paulo: Papirus Editora, 2006

NAGADO, A. MATSUDA, M. GOES, R. de. Cultura pop japonesa – histórias e curiosidades, 2011. E-book (203 p.) Disponível em https://nagado.blogspot.com/2011/12/cultura-pop-japonesa-e-book-gratuito.html

SILVA, VALÉRIA F. Currículo do sistema currículo Lattes. 10 maio 2016. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/1268363663441580. Acesso em: 23 fev. 2021.

CLAUDIO SETO. In: Guia dos Quadrinhos, maio 2007. Disponível em: http://www.guiadosquadrinhos.com/artista/claudio-seto/1491. Acesso em 23 fev. 2021.

YUGE C. 25 anos da Herói: Editores relembram curiosidades e desafios da revista. Canaltech, dez 2019. Disponível em: https://canaltech.com.br/entretenimento/25-anos-da-heroi-editores-relembram-curiosidades-e-desafios-da-revista-158451/. Acesso em: 21 fev. 2021.

PARRHESÍA FOUCAULTIANA: A coragem da verdade e seus desdobramentos na contemporaneidade

Bárbara Merlin

Resumo:

O presente texto tem como objetivo articular o conceito de parrhesía em perspectiva foucaultiana trazendo para os dias atuais com a finalidade em mostrar a possibilidade do falar – franco nas relações do cotidiano, sobretudo na nova era digital. Michel Foucault (1926 – 1984) em seus cursos ministrados no Collège de France nos anos de 1981 – 1984 dará destaque a este conceito de parrhesía desde Filodemo (um Epicurista que viveu em Roma) e que nos permitirá pensar este conceito tão antigo na contemporaneidade. O enfoque é demonstrar com os cursos ministrados de Foucault a correspondência entre a parrhésia e os dias atuais, para isso seguiremos tais pontos: (i) o conceito de parrhésia; (ii) o falar a verdade e o outro; (iii) parrhésia e suas contingências nos dias atuais.

Leia o artigo completo.

Inge Morath, “uma sacerdotisa da fotografia”

A fotografia é um fenômeno estranho … Você confia em seus olhos ao mesmo tempo em que desnuda sua alma” (I.M.)

No filme “Abraços Partidos” de Almodóvar (2009) há uma cena em que o protagonista Mateo, um escritor cego, comenta que o dramaturgo Arthur Miller após ter se divorciado de Marilyn Monroe, foi casado com uma fotógrafa com quem teve um filho com síndrome de down, o qual rejeitou durante toda a vida. A fotógrafa em questão era Inge Morath, que embora relativamente pouco conhecida no Brasil, foi uma artista importante para a sua época. Trabalhou na poderosa Agência Magnum, ganhou prêmios, viajou documentando povos e culturas, e hoje existe uma fundação com seu nome que promove concursos anuais para fotógrafas iniciantes.

Autorretrato, Jerusalém, 1958.

Ela pode ser considerada uma das fotógrafas pioneiras, no sentido em que foi uma das que quebraram barreiras, ousaram, inovaram e deixaram um legado artístico permanente. Nascida Ingeborg Hermine Morath, em 1923 em Graz na Áustria, seu pai era cientista cujo trabalho levou-o a diferentes laboratórios e universidades na Europa durante a sua infância, e ela acabou indo morar em Berlim. O primeiro encontro que teve com a arte-vanguardista foi o Entartete Kunst (Arte Degenerada) exposição organizada pelo partido nazista em 1937, que buscava influenciar a opinião pública contra a arte moderna.

The Large Blue Horses“, Franz Marc (1911)

“Eu encontrei uma série de pinturas emocionantes e me apaixonei por Franz Marc, especialmente seu “Blue Horses”, ela escreveu mais tarde. Mas só eram permitidos comentários negativos, e assim começou um longo período de calar e esconder os pensamentos.” No final da II guerra, Morath foi encaminhada para o serviço da fábrica de Tempelhof, em Berlim, juntamente com prisioneiros de guerra ucranianos. Devido a essa experiência negativa,  ela recusou-se a fazer fotografias de guerra, preferindo trabalhar em temas que mostravam as suas consequências sociais.

Câmera Leica M2, número de série 39 (sem a lente), originalmente toda preta, de uso da fotógrafa¹

Após a Segunda Guerra Mundial, trabalhou como tradutora e jornalista. Em 1948, ela foi contratada inicialmente como correspondente de Viena e, posteriormente, como editora para Heute uma revista ilustrada publicada pelo Office of War Information, em Munique. Na Viena do pós-guerra, ela encontrou o fotógrafo Ernst Haas (1921-1986). Trabalhando juntos para a Heute, escreveu artigos para acompanhar as fotos de Haas. Em 1949, Morath e Haas foram convidados pelo fotógrafo Robert Capa a integrar a recém-fundada Magnum Photos², em Paris, onde ela atuaria como editora.

“Mulheres muçulmanas e cacatuas” – Shiraz, Iran – 1956

As chamadas cópias contatos fotográficas enviadas para o escritório da Magnum por um de seus membros fundadores – o ‘mítico’ Henri Cartier Bresson – deixou Inge fascinada. “Eu acho que aprendi a fotografar estudando o modo como Bresson fotografava, antes mesmo de ter uma câmera na minha mão”, escreveu. No ano de 1951, começou sua nova atividade, durante uma viagem a Veneza. “Ficou imediatamente claro para mim que a partir de agora eu seria fotógrafa, eu sabia que poderia expressar as coisas que eu queria dizer, dando-lhes forma através dos meus olhos.”

“Cópia contato” de Inge Morath (ensaio fotográfico sobre a Lhama em Times Square)

Inicialmente, começou a trabalhar como secretária junto à Simon Guttman, que era Editor da Imagem Post. Após vários meses de aprendizado para atuar como fotojornalista, Guttman quis saber o que ela queria fotografar, e porque. “Não importa o tema, porque após o isolamento do nazismo senti que tinha encontrado a minha linguagem na fotografia”, respondeu. Passou vários meses fazendo o que se conhece em fotografia como eventos sociais: cobertura de exposições, inaugurações, acontecimentos noturnos etc., sob o pseudônimo de Egni Tharom, seu nome escrito ao contrário.

“Lhama em Times Square”, NY, 1957 (Foto: I.M.)

Em 1953 por sugestão de Robert Capa, foi trabalhar com Cartier-Bresson como pesquisadora e assistente, e logo depois foi convidada para se tornar fotógrafa efetiva da Magnum Photos. Durante a década de 1950 viajou incessantemente, fazendo coberturas na Europa, Oriente Médio, África, Estados Unidos e América do Sul para publicações em revistas como Paris Match e Vogue. Morath escreveu e publicou também mais de trinta monografias sobre seus ensaios fotográficos.

“Bodas em Navalcán”, Toledo, Espanha-1955 (Foto: I.M.)

Como muitos membros da Magnum, trabalhou como fotógrafa em sets de filmagem, fazendo making of de vários filmes. Moulin Rouge (1952) do cineasta John Huston foi um dos primeiros trabalhos. Huston escreveu depois sobre ela: “É uma sacerdotisa da fotografia. Tem a rara capacidade de penetrar além das superfícies e revelar a essência das coisas”. Morath trabalhou novamente com Huston em 1960 no set de Os Desajustados, um ‘blockbuster’ com Marilyn Monroe, Clark Gable e Montgomery Clift, com roteiro do escritor Arthur Miller. Foi quando se conheceram.

 “The Misfits” (Os Desajustados)- Marilyn Monroe e Clark Gable, USA, Nevada, 1960 (Foto: I.M.)

Morath e Miller se casaram em 1962, e foram morar nos Estados Unidos, logo depois que ele se divorciou de Marylin Monroe. Tiveram uma primeira filha, Rebecca, que é hoje cineasta, atriz e escritora. O segundo filho do casal, Daniel, nasceu em 1966 com síndrome de Down e foi internado em uma instituição logo após seu nascimento. Arthur Miller jamais foi visitá-lo, apesar dos pedidos insistentes de Inge, e o filho não foi citado em sua biografia.

“Hat show” – Londres, 1955 (Foto: I.M.)- © The Inge Morath Foundation/Magnum Photos

Durante os anos 60 e 70, trabalharam juntos em vários projetos. Sua primeira colaboração com Miller foi o livro Na Rússia (1969), que juntamente com Encontros Chineses (1979), descreveu as suas viagens na União Soviética e na República Popular da China. Embora a fotografia fosse o principal meio através do qual Morath encontrou sua expressão, era também escritora e falava diversos idiomas, isso fez com que tivesse fama incomum entre seus colegas. Ela escreveu muitas vezes de forma divertida sobre seus temas fotográficos, mas a maioria de seus textos só foram publicados postumamente.

Portfólio “6:30AM, Avenida Chang An” – Beijing, China, trabalho em parceria com Arthur Miller (Foto: I.M.)

Inge Morath foi uma das poucas mulheres que se tornaram membros da Magnum Photos, que até hoje permanece como uma organização predominantemente masculina. Muitos críticos têm analisado os elementos lúdico e de surrealismo que caracterizam o trabalho de Morath do início de sua carreira de fotógrafa. Ela atribuiu isso às conversas que teve com Cartier Bresson, durante as suas viagens à Europa e aos Estados Unidos. Continuou com seu trabalho até idade avançada, recebendo o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Hartford (Connecticut, EUA) em 1984.

Série “Máscaras”, em colaboração com Saul Steinberg, 1961- (Foto: I.M.)

A fotógrafa viveu até 2002, completando 78 anos. A Inge Morath Foundation foi criada por sua família em 2003, para preservar e compartilhar seu legado. Ela sempre encorajou entusiasticamente as mulheres fotógrafas e como tributo à sua colega, os membros da Magnum Photos estabeleceram a Inge Morath Award, um prêmio anual administrado pela Fundação e concedido a jovens fotógrafas, para apoiar o trabalho e a realização de seus projetos documentais de longo prazo.

Grupo de fotógrafas e fotógrafos da Agência Magnum. Morath é a primeira (lado esquerdo, atrás) e
Henri Cartier Bresson é o último ( lado direito)

Pode-se dizer que o trabalho fotográfico de Morath foi motivado pela questão fundamental do “Humanismo” (ou “Realismo Poético”) formado tanto pela experiência da guerra, e por sua sombra persistente sobre o pós-guerra na Europa. Essa motivação aumenta em sua obra madura com temas em que ela documenta a resistência do espírito humano em situações de extrema opressão, bem como as suas manifestações de alegria. As imagens dos fotógrafos da Magnum foram (e ainda são) acompanhadas pelas declarações dos próprios autores, que analisam o contexto do seu trabalho, no aspecto ético e estético.

Autorretrato da fotojornalista, EUA, 2000

Arthur Miller (1915-2005), definiu sua perspectiva filosófica, no artigo intitulado “Inge Morath And Borders” (em tradução livre):

“Para Inge, o conceito de fronteira entre culturas e raças era essencial para a compreensão dos povos. Criada sob o nazismo com seu credo super nacionalista maníaco, a resistência à tendência atual de caracterizar os indivíduos de acordo com suas origens e não como pessoas humanas era algo a ser combatido. (…) O que sua perspectiva histórica lhe deu foi um profundo respeito pelas diferenças e pelos indivíduos e suas culturas”. (Fonte- https://moazedi.blogspot.com/2016/02/inge-morath-and-borders-by-arthur-miller.html)

¹A Leica (abreviação de Leitz(sche) Camera) é uma empresa ótica alemã, com sede em Wetzlar fundada em 1913, por Ernst Leitz. Possui três unidades que produzem respectivamente: câmeras fotográficas, equipamentos de pesquisa geológica (topografia e geodésia) e microscópios. Para se ter uma ideia do valor das câmeras fotográficas: em maio de 2011 uma Leica, com ano de fabricação de 1923, foi leiloada por 1,9 milhão de dólares, tornando-se uma das máquinas mais caras da história.

(Fonte- https://pt.wikipedia.org/wiki/Leica_Camera)

² A Agência Magnum Photo foi criada em 1947 com sede em Paris na rua Faubourg Saint-Honoré, em instalações precárias e somente um telefone. “Foram cinco os fotógrafos fundadores: Robert Capa, David (Chim) Seymour, Henri Cartier- Bresson, George Rodger e Bill Vandivert, juntamente com duas fotógrafas fundadoras, Rita Vandivert e Maria Eisner − raramente citadas no processo constitutivo −, que se encarregaram das funções administrativas. Atualmente a Agência tem sedes em várias cidades, em quase todos os continentes.

(Fonte-https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/15/cultura/1497515001_383889.html)

Referências:

https://www.knowitall.org/photo/large-blue-horses-artopia

https://www.italyrivieralps.com/2019/08/29/read-more/argomenti/places-of-interest/articolo/genoa-photographic-exhibition-inge-morath-the-life-the-photography.html

https://www.magnumphotos.com/theory-and-practice/learning-from-the-master/

https://www.artsy.net/artwork/inge-morath-marylin-monroe

https://www.theguardian.com/artanddesign/gallery/2018/nov/23/from-llamas-to-lefties-the-intrepid-inge-morath-in-pictures

https://photoplay.livejournal.com/250916.html?thread=767524

http://blog.alemdoolhar.com/2013/03/magnum-photos-agencia-de-fotografia.html



Fotografia, nostalgia e utopia.

Na edição de domingo, 3 de abril de 2011 do jornal “O Globo”, em um trecho da reportagem “Exposição de fotos revela o passado do Rio – Memórias da Cidade reúne imagens das décadas de 50 e 60, que fazem parte do acervo da Agência O Globo”, vemos algumas imagens deste acervo, em exposição que reuniu 65 fotografias separadas por temas como mobiliário urbano, transporte e arquitetura.

No final do artigo encontra-se destacada a opinião do designer visual da exposição, Sr. Jair de Souza que, analisando as fotografias, afirmou que estas “mostram a atmosfera diferente, que existia no Rio: “__ Tem a foto do Parque Shanghai, que hoje voltou a ser visitado, de um homem ouvindo jogo do Brasil num rádio de pilha enquanto fazia a barba. É uma época que você não conheceu, mas [da qual] sente saudade”. (meu destaque)

Em tempos de exaustão emocional como o que vivemos atualmente, decorrente das restrições impostas pela pandemia do Coronavirus, a nostalgia e a saudade se apresentam como “o anseio por um tempo diferente, não necessariamente [mas também] a saudade de um lugar” (Silva, 2019), tempo e lugares que ressurgem depositados nas imagens fotográficas de um passado “ao qual não se pode mais ter acesso, mas também como artifício que pode gerar sensações de presença através das possibilidades do ter sido.” (Silva, 219)

A fotografia não pode ser confinada a “qualquer sistema redutor”, e entre os vários “olhares” ou discursos, tem-se a dimensão temporal da saudade e da nostalgia como objeto de análise, por conduzir alguns – e eu me incluo entre estes, a uma lembrança representativa de uma realidade vivida, experimentada, não apenas por sua construção ocorrida num tempo próximo e igualmente histórico, mas por uma aspiração da natureza do sentimento de atração pelo passado, por um período ou um lugar que estabelece associações agradáveis, surgindo “voluntária ou involuntariamente, como instrumento gerador da utopia, ancorado (…) nos sonhos de um outro lugar e de um outro tempo”. (BEBIANO, 2000)

Imagens 1, 2, 3 e 4: Da esquerda para direita, de cima para baixo: (1) tomada de um parquinho na Praça São Sebastião em frente à antiga sede da Escola Estadual Condessa do Rio Novo (atualmente Casa de Cultura); (2) registro do concurso Garota Simpatia de 1968, promovido pela Rádio Três Rios em comemoração pelos seus 21 anos, nas dependências do Clube Atlético Entre-Rios – CAER; (3) e (4) tomadas do desfile cívico de sete de setembro com apresentação da bateria do Colégio Cenecista Walter Franklin e de uma das quermesses realizada na Igreja São Sebastião. Fotos da década de 1960, sem fotógrafo conhecido, do acervo Rádio Três Rios. Todas as fotos da cidade de Três Rios/RJ.

Não entendemos saudade e nostalgia como sendo a mesma coisa, mas partimos da ideia de que a nostalgia carrega uma força narrativa que permite maior decomposição de sua estrutura; a saudade aparece como uma de suas dimensões. (…) A história da historiografia, como analítica da historicidade, contribui sobremaneira para compreender o papel narrativo das emoções ao representar o tempo, seja em leituras do passado, seja em projeções do futuro. Pôr em evidencia as dimensões emocionais do fazer historiográfico, além de instigar uma nova relação entre o historiador e seu objeto, lança novas sensibilidades e empatias para o leitor. (SILVA, 2019)

As atividades referenciadas nos registros fotográficos acima são práticas presentes em nossa sociedade e apesar de tantas mudanças sociais ocorridas no passar do tempo, são percebidas e experimentadas ainda por muitos, sendo possível observar-se – nostalgicamente -, semelhanças e diferenças com relação aos momentos do presente e do passado.

Quantas lembranças são movimentadas nas memórias das pessoas quando nos deparamos com as imagens de crianças brincando em um parquinho na praça? As atividades religiosas com procissão, barraquinhas de salgados e doces, fogos de artifício, ruas enfeitadas, pessoas com “roupa de ir à missa”, nostalgicamente removem do esquecimento as lembranças de tempos experimentados ou apenas percebidos nos discursos de outros, referendados que são nas fotografias. Realidades que os impositivos da pandemia vão aos poucos nos afastando pela necessidade de preservação de vidas.

Desfiles cívicos, bailes populares, programas de rádio, concursos de beleza, passeios na praia, jogo de futebol nos estádios ou nos pequenos campinhos de terra batida ao observar tais eventos, tem-se a memória sensorial, emocional, como efeito de proximidade, no comparecimento vivo através de uma imagem do passado, que retorna ao presente pela lembrança reencontrada, movimentada e compartilhada pelos reminiscentes presentes nas fotografias.

Imagem 5: Jovens confraternizando no interior do coreto da Praça São Sebastião em Três Rios/RJ, nesta tomada externa realizada entre o final dos 50 e o início dos 60. O isolamento social necessário diante das características de contágio do Covid 19, tem diminuído as aglomerações como estas, gerando, para muitos, saudades destas vivências. Fotografia do acervo Rádio Três Rios, sem autor conhecido.

O isolamento social caracteriza-se por apresentar-se como agente fomentador de stress, com impactos psicológicos e emocionais e sentimentos de esgotamento físico e mental, agregando-se à solidão, à saudade, a depressão e desordens interpessoais; bem como, as experiências da fome, do desemprego, da morte e do luto, e da incerteza do futuro.

É neste contexto em que a nostalgia e a utopia se apresentam como impositivos de sentimentos no presente, que se atrelam ao passado que se pretende reviver (nostalgia) ou de um futuro (utopia) que se deseja construir.

A utopia nasce como gênero literário e discurso político. Enquanto a nostalgia é o anseio pela volta a casa, a utopia é o não lugar. As utopias não têm lugar definido, são peças do imaginário centradas na palavra e aspiram existência. Em seu sentido original, as utopias estão associadas à questão da ideologia. Compõem um conjunto de ideias e crenças que dão sentido e norteiam comportamentos. As utopias são a criação imaginária de uma sociedade em que as realizações de homens e mulheres são marcadas por valores de igualdade, justiça e bem-estar comum. O esfacelamento desses valores em uma sociedade cujas práticas (ou falta delas) são movidas pela expansão do capitalismo, pelo consumo e pelo fetiche do original tende a produzir uma incessante busca pelo passado idealizado. (SILVA, 2019)

Nostalgia e utopia se confundem neste momento em que o presente não corresponde aos anseios de todos por um país que proporcione segurança social em todos os seus campos, pois vivemos um …

(…) governo [que] vem se aproveitando do sofrimento do povo para aplicar medidas perversas de uma política econômica que esvazia as chances de um Estado soberano e com justiça social. Ao lado disso, esse governo e suas alianças promovem a mais danosa política ambiental e a escolha de um caminho isolado nas relações internacionais, em especial neste momento de extrema necessidade e dependência de tecnologias e insumos para o controle do novo coronavírus. O governo não é só incompetente em administrar o País na pior crise sanitária de nossa história. Ele trabalha contra os interesses das e dos brasileiros, deixando mortos pelo caminho, mentindo e fazendo descaso do sofrimento e aprofundando as condições de pobreza, com uma política econômica austericida que reduz o investimento público, considerado um modelo de política tosca, antiquada e de ineficácia comprovada em todo o mundo, mesmo entre teóricos conservadores. (RIZZOTTO, COSTA e LOBATO, 2020)

Neste contexto as fotografias então se qualificam como lugares de lembrança dos testemunhos de outros, que permanecem “vivos” no referente fotográfico, incitando não só uma leitura rememorativa de fatos e ações dos sujeitos históricos em seu tempo, mas também, através do olhar no presente, delinear as lembranças em comum; sem perder a condição de fonte e objeto de estudos e pesquisas multidisciplinares, permitindo abarcar temáticas diversas, passando do campo nostálgico e utópico, nas ciências humanas e destes para o campo dos estudos de memórias.

Fazemos parte de uma coletividade social e o nosso testemunho reflete muito do que absorvemos das relações nesta sociedade. Os referenciais de memória que formamos também espelham esta realidade, independente do tempo e dos espaços de relação de existência do ser, permitindo que os sentimentos de saudade e nostalgia também estejam entre as dimensões possíveis de análise das fotografias.

Imagem 6: Observa-se a presença do público – homens, mulheres e crianças -, durante a inauguração do estádio de futebol do Entrerriense Futebol Clube, na cidade de Três Rios/RJ, em 1930. Destaque à direita para arquibancada, que possuía, embaixo, os vestiários para os jogadores, e na esquerda, no primeiro plano, instrumentos musicais da Banda 1° de Maio. Os jogos de futebol tem ocorrido, nestes tempos de pandemia, sem a presença do público. Sem informação do autor da fotografia, acervo André Mattos

Como condição humana, a nostalgia é um elemento que acompanha as transformações da modernidade e faz parte de um repertório básico de experiências. Como conceito forte, seja por tradição seja por um tempo que não existe mais ou nunca existiu, ela é capaz de modular memórias individuais e coletivas. A nostalgia por muito foi entendida como um sintoma ou causa de buracos entre significantes e significados, uma doença que passou do estágio físico para o social e se transformou, numa análise conservadora, em uma abdicação da memória, um desejo inútil por um mundo ou um modo de vida do qual alguém é irrevogavelmente separado. (SILVA, 2019)

A nostalgia e a utopia em tempos de profundo impacto em habituais relações sociais, quando ocorre uma “busca ávida por traços distintivos de uma época [e lugares do passado ou pensados para o futuro], idílica, sempre se nos apresenta pulsante ao encararmos uma imagem já recuada no tempo.” (ARAUJO) Ademais, num outro “canto” deste conceito, é possível que o olhar de um fotógrafo do tempo presente observe no mundo ao seu redor, lugares, pessoas, hábitos, que encontrem similaridades ao experimentado e percebido por outras pessoas no passado; serão sempre como memórias compartilhadas.

Cada espaço vivido surge com funções originalmente particulares e distintas, e no seu processo de formação, as suas respectivas histórias e memórias se entrelaçam. Os registros fotográficos revelam-se de suma importância por permitirem a observação cuidadosa dos processos de rupturas, continuidades e sobreposições arrastados no âmbito das alterações urbanas, o que também favorece a percepção de caminhos possíveis que serão percorridos no futuro. A compreensão faz-se pelo papel de registro dos fatos em tempos históricos que, principalmente o material fotográfico disponível de diversos acervos concede. “Esquecer um período da vida é perder o contato com os que então nos rodeavam.” (HALBWACHS, 2009, p. 37)

Jean Duvignaud afirma que Maurice Halbwachs demonstra ser impossível “conceber o problema da recordação e da localização das lembranças quando não se toma como ponto de referência os contextos sociais reais que servem de baliza a essa reconstrução que chamamos de memória”, (DUVIGNAUD, 2009, prefácio p. 7-8) estabelecendo que a pesquisa historiográfica não deva se desvincular de uma apreciação das memórias coletivas. A experiência compartilhada da memória através das interações sociais é fator formador da identidade dos sujeitos, e suas lembranças são resultados deste processo, preservando uma experiência histórica repleta de valores e tradições culturais.

“Não esqueçamos que a memória parte do presente, de um presente ávido pelo passado, cuja percepção “é a apropriação veemente do que nós sabemos que não nos pertence mais,”” e a imagem fotográfica é “uma coisa viva… que sobe do passado com todo o seu frescor. Chamada de novo, trabalhada pela percepção do agora, arrisca-se a fugir da captura de um presente que não se reconhece nela.” (BOSI, 2004, p. 20)

Estas reflexões me conduziram ao personagem Gil Pender do filme de Woody Allen, Meia Noite em Paris (Midnight in Paris, 2011). Um homem vivendo os conflitos da modernidade, que encontra em passeios noturno por Paris um passado que ele não pode experenciar e que confia ser melhor que seu presente. Uma maneira de confrontar a realidade existencial do presente, que lhe ajuda a mudar o seu futuro (que no princípio da trama poderia ser visto como algo utópico).

Referências:

ARAUJO, Marcelo da Silva. Na imagem do passado a nostalgia do presente; memória, lazer e sociabilidade na Praça da Lira. Disponível no site: http://www.ffp.uerj.br/tamoios/2008.1/praca%20da%20lira%20Marcelo%20da%20Silva%20Ara%FAjo.pdf. Acesso mar. 2011.

BEBIANO, Rui. Nostalgia e imaginação: dois fatores dinâmicos num mundo global. Disponível no site: http://www.apfilosofia.org/documentos/pdf/RuiBebiano_Memoria_Globalizacao.pdf. Acesso abr. 2011.

BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória. Ensaios de Psicologia Social. Ateliê Editorial. São Paulo/SP, 2ª Edição, 2004.

DUVIGNAUD, Jean in prefácio, HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Nova tradução de Beatriz Sidou. São Paulo/SP: Centauro Editora, 2009.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Nova tradução de Beatriz Sidou. São Paulo/SP: Centauro Editora, 2009.

RIZZOTTO, COSTA e LOBATO; Ana Maria Frizzon, Ana Maria e Laura de Vasconcelos Costa. A esperança impulsiona, alimenta, move e fortalece a utopia. Disponível em https://www.scielo.br/j/sdeb/a/K8T7nqTnzZLXRXP4GswTvHP/?format=pdf&lang=pt. Acesso jun. 2021.

SILVA, Rodrigo Machado da. História e Historiografia Analítica e sentimental: Preposições sobre a distância histórica, nostalgia e visões da modernidade brasileira dos oitocentos. Disponível em https://www.scielo.br/j/alm/a/WVtpzfdGG8xKHNJYsDD4h6r/?lang=pt#. Acesso jun. 2021.

CURSO CINEMA E PSICANÁLISE: HISTÓRIAS REAIS

O Curso Cinema e Psicanálise: Histórias Reais, que terá início no próximo dia 9 de junho, será ofertado pelo ambiente virtual da UEPG / NUTEAD¹.

Toda história de vida renderia um bom filme. Algumas delas foram retratadas pelo cinema. Com elas podemos exercer a leitura psicanalítica dos enredos criados pelo inconsciente, pela vida, pelos encontros e desencontros de outras histórias. Este curso vai analisar 8 filmes baseados em acontecimentos. Amor, Liberdade, Crime, Castração, Narcisismo, Morte, Desejo, Loucura, Neurose, Psicose, Perversão, Gozo, Poder e Criatividade serão alguns dos grandes temas que vamos trabalhar.  Veja mais detalhes, no cartaz abaixo.

Neste link você pode fazer sua inscrição: https://ead.uepg.br/site/curso/244/436

Boas vindas!
Célio Pinheiro

¹ UEPG- Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná)/ NUTEAD – Núcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a Distância.

Informações:

O que as histórias ditas reais retratadas no cinema podem nos ensinar? O que de fato podemos entender como real em uma história contada através do cinema? A construção de uma biografia através do filme é um exercício árduo. Não é possível remontar minuto a minuto a vida de uma pessoa. Contar sua história implica trazer à tona e à tela momentos marcantes, acontecimentos decisivos, decisões impactantes, dramas vividos, acidentes ocorridos e o encontro com outras pessoas cujos relacionamentos alteram os cursos de vida, tanto em aspectos positivos (como as histórias de amor e as histórias edificantes) quanto em aspectos trágicos (nos casos de violência, morte, etc.). Construir um caso na Psicanálise seria da mesma ordem da apresentação de uma história real? Pierre Bourdieu em seu clássico artigo A Ilusão Biográfica, crítica categoricamente a ideia de que a vida seja uma trajetória marcada por começo, meio e fim, e com um sentido implícito ou mesmo explícito. Escreveu ele: Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma seqüência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar. (1996, p. 185). De fato, as formas organizadas de publicação das trajetórias de vida de pessoas que se tornaram conhecidas (artistas, políticos, descobridores, assassinos, militantes…), parecem nos indicar que elas seguiram um fio condutor em suas vidas, um percurso, um trajeto, um script. Em geral o tempo e as sequencias de tempos são esses fios condutores que nos contam as peripécias ocorridas nestes intervalos. Mas e o próprio sujeito retratado sente e conta sua história dessa mesma forma? Entende ele sua vida como uma sucessão temporal de acontecimentos? O contraponto a essa visão é dado pelo próprio Bourdieu no mesmo artigo, destacou: Como diz Allain Robbe-Grillet, “o advento do romance moderno está ligado precisamente a esta descoberta: o real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório. (1996, p. 185). O grifo revela sua importância para articulações com conceitos da Psicanálise. Neste mesmo sentido, Guimarães Rosa (2001, p. 80) escreveu: “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”. E se quiséssemos continuar com Guimarães Rosa, diríamos que o que conta mesmo é a ‘travessia”, o “entre’ e não o sentido geral da história. Retomando a pergunta inicial, o que nos interessam nas histórias contadas pelo cinema não é o todo das biografias, pois elas passam pelo crivo da criação de sentido dado tanto pelo biógrafo, quanto pelo escritor, pelo roteirista e pelo diretor. Mas sim, nos interessam os pontos de injunção do Real na história, aqueles que possivelmente provocaram as viradas, que traumatizaram, que alteraram os rumos, as palavras que utilizaram para expressar o real que experimentam. Aqui o cinema é pródigo em nos remeter a essas vivências de forma emotiva, visual, colorida, cheia de sons, uma recriação do instante vivido por aquela figura retratada. Com essa história que nos é transmitida podemos fazer muitas coisas: sermos despertados para emoções escondidas, podermos identificar em nós características em comum e, no limite, podemos fazer teoria, ou seja, transformar em conceitos elaborados aquilo que para os personagens são pura vivência. De grande valia então, a transposição dessas histórias para as telas. E quantas transformações importantes ocorreram após o cinema ter tornado conhecidas essas histórias de vidas! Com esse pensamento é que esse curso busca trazer a análise de filmes cujas seqüências narrativas nos possibilitem conhecer mais sobre as potencialidades humanas, nos permitam conhecer e estudar as complexidades da subjetividade, nos ensinem a melhor manejar a vida e a relativizar as formas de lidar com os dilemas. O cinema e as tentativas de transposição das vidas e de acontecimentos reais podem ter um caráter preventivo por atuar como modo de estudar e prever acontecimentos terríveis e possíveis encontros desastrosos. Freud escreveu a palavra ‘fragmento’ para referir-se a acontecimentos dentro de um tempo e de dados biográficos consistentes afim de tornar conhecido um caso clínico. Pode-se afirmar que o cinema faz algo parecido. E são com esses fragmentos que construímos algo maior. Iremos além dos dados biográficos cuidadosamente escolhidos para aparecer na tela, vamos buscar outras fontes para cruzar informações, distorções e especialmente arriscar interpretações que levem em conta outras variáveis que não apenas a linearidade de uma biografia montada. Articulado a isso, encontramos em Bourdieu (1996, p. 189): Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito” cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações. Também, André Borges de Mattos (2006, p.4) em seu artigo (Re)Pensando o uso da autobiografia como fonte para a pesquisa antropológica: uma análise das “Confissões” de Darcy Ribeiro, afirma que “somente na narrativa os acontecimentos dispersos de uma vida adquirem coerência”. Esta proposta irá oportunizar momentos de interação entre o profissional da área da Saúde Mental e o público-alvo, a comunidade interna/externa à Universidade Estadual de Ponta Grossa, no formato de “Conversa com o Psicanalista”. O evento prevê momentos de estudo orientado, bem como a abertura de um espaço para exposição de demandas relativas aos temas propostos. Os textos e demais conteúdos propostos para estudo auxiliam na compreensão dos fenômenos. Este evento vinculado ao projeto de extensão “Techné: socialização da EaD como formação e política pública”, cujo objetivo é promover ações extensionistas de cunho formativo e informativo para atender demandas da sociedade, ofertando cursos, serviços e eventos disponibilizados no âmbito da Educação a Distância, da Educação Aberta e da Educação Tecnológica. Em síntese, o projeto “Techné”, ao qual se integra “Cinema E Psicanálise – Histórias Reais” compreende ações extensionistas próprias do Nutead, abrindo-se, ainda, a parcerias que envolvam a promoção de extensão na EaD.

Fonte: https://ead.uepg.br/site/curso/244/436