Os patrimônios de natureza material e imaterial são portadores de referência à identidade, as ações humanas nos espaços de relação e à memória dos grupos instituidores das organizações sociais, formando a riqueza cultural da nação, dos estados e dos municípios.
A evolução urbana das principais cidades brasileiras, no processo de formação do atual espaço físico e social, privilegiou, a partir principalmente do final do século XIX início do XX, a representação do moderno e a identificação do progresso, como ainda se realiza nas diversas obras que adaptam as cidades ao crescimento econômico e populacional acelerado das últimas décadas.
As transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas no período histórico de formação dos núcleos urbanos, refletem a maneira de se viver nos e construir os espaços físicos, nas formas arquitetônicas utilizadas e nos objetivos traçados para suas construções; havendo perdas de referenciais e representações do tempo inicial, quando das reformas ou demolições destes espaços. O estudo do patrimônio cultural material dos lugares urbanos e das manifestações sociais nestes, permitem ao historiador entender a própria identidade social e cultural das cidades.
Imagem 1: Registro do ano de 1950 no trecho da Praia de Ipanema, permite visualizar a direita construções no bairro Leblon, sem grandes edifícios e no Morro Dois Irmãos extensões consideráveis da Mata Atlântica. Sem informações sobre o seu autor, recebido via e-mail.
Como reavivar, preservar e divulgar para as gerações futuras os referenciais urbanos fundamentais para a compreensão e perpetuação do patrimônio cultural material arquitetônico e da própria memória individual e coletiva destes municípios, se o processo de urbanização, essencialmente definido pela organização dos espaços sociais, privilegia a substituição do antigo pelo moderno, fazendo desaparecer o primeiro literalmente transformado em pó?
A História como ciência social e cultural, através do historiador no seu fazer e conhecer realidades do passado e do presente, no procedimento de descobrir e tornar permanente a memória humana, não pode prescindir da aceitação da diversificação dos fragmentos/documentos históricos, conforme sinaliza as escolas historiográficas contemporâneas. A fonte historiográfica que melhor responde a esta indagação é a fotografia, pois esta não rememora o passado, “não fala (forçosamente) daquilo que não é mais, mas apenas e com certeza daquilo que foi.” (BATHER, 2008).
Considero que os registros visuais como as obras de arte e as fotografias, fragmentos estáticos de um determinado objeto, paisagem ou sujeito(s) em seu tempo histórico, tem sua presença de importância neste contexto, pela possibilidade de interpretação e por permitirem a mudança do mundo em animação à imagem estática, conservadora dos simbolismos culturais e sociais; mais do que meras ilustrações, como afirma Barthes são um “certificado de presença” (2008); e na mesma dimensão, como testemunho direto ou indireto de um tempo anterior, apresentando-se como “evidências no processo de reconstrução da cultura material do passado.” (BURKE,2004)
Tal reflexão apoia-se essencialmente na perspectiva que corresponde à afirmativa de Goff de que a história é a forma científica da memória, completando que “(…) os materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador”. (GOFF, [online])
Imagem 2: Vista à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas. Vê-se o Morro Dois Irmãos, Pedra da Gávea e umas palmeiras enfileiradas, possivelmente do Jardim Botânico além de uma construção. Em primeiro plano aparece uma linha de trem e uma residência ostentando a bandeira da França e um casal conversando na presença de uma criança. Óleo sobre tela de FACCHINETTI, Nicolau, datada de 1888, atualmente no Museu Mariano Procópio em Juiz de Fora/MG.
Não se pode mais identificar a memória como um método parcial e limitado de recordar fatos passados, servindo como simples auxiliar para as ciências humanas. A memória se baseia na construção de referenciais de distintos grupos sociais sobre as experiências vividas anteriormente e no presente, respaldados nas tradições e atrelado a mudanças culturais. (CHIOZZINI, [online])
Da memória presente ao “lugar de memória”, buscando a organização de um “lugar da memória virtual”, a aplicação teórica da fotografia como fonte historiográfica, neste artigo abarca o processo de urbanização ocorrido no Morro Dois Irmãos, no Leblon, Rio de Janeiro/RJ durante todo o século XX e a formação dos espaços sociais em seu entorno, principalmente a Favela do Vidigal. Destaca-se neste contexto, o tempo do desenvolvimento da cidade e consequente expansão geográfica e populacional, sem adentrar na avaliação de hipóteses explicativas para o fato, mas, através de comparação de alguns registros fotográficos, perceber a dinâmica deste movimento transformador da paisagem.
Cada espaço físico urbano surge com funções originalmente particulares e distintas. Os registros fotográficos revelam-se de suma importância por permitirem a observação cuidadosa dos processos de rupturas, continuidades e sobreposições arrastados no âmbito das alterações urbanas, sendo possível esta compreensão pelo papel de perpetuação dos fatos e tempos históricos, que especialmente o material fotográfico disponível de diversos acervos, concede-nos.
Não desconheço a necessidade de utilizar de outras fontes se a proposta se ampliar e for o desejo de algum historiador ou representante de outra ciência social, compreender a dinâmica e as motivações que engendraram o referido processo.
Imagem 3: Vê-se uma capela ao longe nas margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. Ao fundo a direita o Morro Dois Irmãos. Em primeiro plano parte de uma edificação que pode ser a sede da Fábrica de Pólvora. Aquarelado de autoria ENDER, Thomas, 1817-1818. Encontra-se no Gabinete de gravuras da Academia de Belas- Artes de Viena. Registros visuais anteriores ao advento da fotografia, da mesma forma que esta, não dispensam a complementação de informações oriundas de outras fontes históricas.
“As fotografias que sobreviveram nos interessam de pronto, mas também devem ser localizadas outras fontes que possam transmitir informações acerca dos assuntos que foram objeto de registro em dado momento histórico, dos fotógrafos que atuaram nos diferentes espaços e períodos e das tecnologias particulares empregadas nas várias épocas.” (KOSSOY, 2003)
Com a concentração populacional ocorrendo determinantemente nas grandes e médias cidades brasileiras num período inicial compreendido pelo primeiro quarto do século XX, muitos foram afastados dos centros urbanos confrontados prioritariamente pela modernização desses espaços. Com o processo de favelização são demarcados limites de territorialidades sociais, criando-se oposições entre o centro e a periferia, mesmo quando esta não se encontra afastada destes espaços, como ocorre com a Favela do Vidigal, exemplo neste artigo apresentado.
Esta possibilidade intrínseca a fotografia, fragmento perpetuável de uma paisagem passível de transformação pelas mãos humanas, permite-nos, pelo menos, visualizar as mudanças ocorridas em determinado espaço físico, ao se comparar fragmentos extraídos em tempos históricos distintos, fundamental aos historiadores urbanos que elegem “a cidade como artefato.” (Burke, 2001) É importante registrar que a fotografia em si, como as demais fontes historiográficas, não são a história, nem testemunhas isoladas dos fatos históricos, não é explicativa por si mesma, mas confirmadora de mudanças ocorridas ao longo de um período. Sempre recebi de amigos e colegas de profissão, fotografias das mais diversas, relacionadas ou não as pesquisas ou aos escritos que realizo. Há algum tempo, imagens fotográficas do século XX da cidade do Rio de Janeiro, chegaram-me as mãos, infelizmente, sem as anotações importantes quanto ao seu autor ou autores, o instrumento fotográfico utilizado, a data da reprodução etc.
Imagem 4: Registro da Avenida Delfim Moreira, Leblon, no início da década de 10 do século passado. Sem autor conhecido, disponível no site <https://rioquemoranomar.blogspot.com/2018/07/lebloncentenario.html>. Acesso abr. 2021.
Imagem 5: Fotografia da praia do Leblon, ao fundo o Morro Dois irmãos, permitindo visualizar possíveis pequenas intervenções na mata original (espaços desmatados), ao fundo a esquerda. Registro de Marc Ferrez de 1912. Coleção Gilberto Ferrez do Instituto Moreira Salles.
Inicialmente, diante da imagem 1, apontamento tirado da Praia de Ipanema, que permite visualizar a Praia do Leblon e ao fundo o Morro Dois Irmãos, na década de 50 do século XX, procurei realizar um exercício, sem muitas pretensões, de encontrar outras fotografias ou obras de arte, que registrassem, preferencialmente, o mesmo ângulo ou aproximado, permitindo comparações, e desta forma, a representação das transformações ocorridas ao longo do tempo.
O Morro Dois Irmãos, denominado desta maneira pela presença dos dois picos similares, está localizado no bairro do Leblon, Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, dividindo Leblon e São Conrado. O bairro e a praia do Leblon compartilham sua costa com os bairros e praias de Ipanema e Arpoador, ocupando a faixa final deste espaço, e estendendo-se aproximadamente por quase 1 km.
Imagem 6: O Morro Dois irmãos e construções na Avenida Delfim Moreira, sem autor e data definidos.
Imagem 7: O registro evidencia de forma mais contundente as intervenções não apenas na orla da praia do Leblon, mas também na base do Morro Dois Irmãos. Autor e data desconhecidos.
Numa breve avaliação entre as ilustrações 1, 4 e 5, percebe-se a ocorrência das transformações no espaço urbano, principalmente nas construções na orla da praia do Leblon, na Avenida Delfim Moreira, e pequenos traços de desmatamento na mata original; mais evidentes nas imagens 6 e 7, registros entre as décadas de 20 e 50 do século passado. “O papel da fotografia é conservar o traço do passado ou auxiliar as ciências em seu esforço para uma melhor apresentação da realidade do mundo.” (Dubois,2009)
Ao considerar o uso das imagens no processo de reconstrução da cultura material do passado, Peter Burke afirma que:
“Imagens são especialmente valiosas na reconstrução da cultura cotidiana de pessoas comuns, suas formas de habitação, por exemplo, algumas vezes construídas com materiais que não eram destinados a durar… Quando a Associação Nacional de Registro Fotográfico foi fundada na Inglaterra em 1897, para fazer fotografias e colecioná-las no Museu Britânico, os fundadores da entidade pensavam especialmente em registros de prédios e outras formas tradicionais da cultura material.” (Burke, 2001)
Imagem 8: Final da praia do Leblon, com a presença do Hotel Sheraton quase a centro e a esquerda, a Favela do Vidigal. Sem informação de data e autor.
Imagem 9: Fotografia colorida, reproduzida 58 anos após a fotografia 1, permite-nos observar transformações de ordem urbana na paisagem, demonstrando a intervenção do homem neste processo. Este registro foi reproduzida por Céfas de Sá Lira em 13 de maio de 2008, encontrando-se disponível no site: http://www.baixaki.com.br/papel-de-parede//22848-praia-de-ipanema-rio-de-janeiro.htm
Mesmo que reproduzida a fotografia 8 numa posição mais aproximada do que a da fotografia 1, na comparação entre ambas e com a fotografia 9, é possível identificar as mudanças ocorridas na paisagem entre três tempos históricos distintos. À direita observam-se edifícios mais elevados, maior concentração urbana que se estende a base do Morro Dois Irmãos até o Hotel Sheraton, um dos “cinco estrelas” mais luxuosos da cidade, com sua construção iniciada em 1968.
A principal constatação que podemos fazer é a presença à esquerda, na fotografia 8 e 9, da Favela do Vidigal, permitindo-nos constatar que este processo de urbanização ocorreu de forma mais intensa, após a realização das fotografias anteriores.
“O nome Vidigal era sinônimo de poder no Rio de Janeiro do Primeiro Império (1822-1831). O major de milícias e cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, Miguel Nunes Vidigal, por exemplo, foi um dos homens mais influentes da cidade no século XIX. Por causa disso, recebeu presentes diversos ao longo da vida. Alguns deles bem valiosos, como o enorme terreno aos pés do Morro Dois Irmãos, exatamente onde hoje existe a favela. O major recebeu o agrado de monges beneditinos por volta de 1820. Daí a origem do nome Vidigal, que batizou primeiro a praia e depois a favela. Segundo o livro “Memórias de um Sargento de Milícias, obra de Manuel Antonio”, Vidigal, era considerado um perseguidor implacável dos candomblés, das rodas de samba e especialmente dos capoeiras. Manuel Antônio de Almeida, ao escrever “Memórias de um Sargento de Milícias” assim fala sobre ele: “O Major Vidigal, que principia aparecendo em 1809, foi durante muitos anos, mais que o chefe, o dono da Polícia colonial (…). Habilíssimo nas diligências, perverso e ditatorial nos castigos, era o horror das classes desprotegidas do Rio de Janeiro”. Noutro trecho da obra, o descreve da seguinte forma: “Era Vidigal um homem alto não muito gordo, com ares de moleirão. Tinha o olhar sempre baixo, os movimentos lentos, a voz descansada e adocicada. Apesar desse aspecto de mansidão, não se encontraria, por certo, homem mais apto para o cargo… Vidigal, era o único personagem não fictício desta obra.O terreno ficou em mãos de herdeiros do major Vidigal até 1886, quando foi comprado pelo engenheiro João Dantas. Seu sonho era construir ali o ponto de partida de uma linha férrea que seguiria até o litoral sul fluminense. João Dantas gastou todo seu patrimônio na empreitada, que no final acabou não virando realidade, mas serviu como base para a construção da atual Avenida Niemeyer, que liga os bairros do Leblon e São Conrado. Os primeiros barracos do Vidigal começaram a ser construídos na década de 40. No início, a comunidade era conhecida como Favela da Rampa da Avenida Niemeyer. A explosão demográfica no local aconteceu nos anos 60 junto com a urbanização dos bairros do Leblon e Ipanema.”
Percebe-se então de forma simplificada, que utilizado em “parceria” com outras fontes históricas, a fotografia consente uma leitura sobre as intervenções humanas nos espaços urbanos, as realizações materiais na paisagem; possibilitando a expressão do imaginário social, político e econômico dos sujeitos pertencentes e realizadores da história deste núcleo observado, consentindo a divulgação e preservação de uma memória cultural da cidade.
Uma das dificuldades que encontramos nas pesquisas é a falta de informação quanto aos autores das fotografias, o instrumento fotográfico utilizado e o ano da sua realização. Outro aspecto evidente e que ocorre comumente é que as fotos foram utilizadas como meras ilustrações, sem maiores detalhes.
Quais as motivações para os processos de transformação desta paisagem urbana? Como ocorreram e por quais sujeitos históricos se configuraram estas mudanças? Questões como estas e outras pertinentes a este fato histórico, terão respostas em pesquisas e com a utilização também de outras fontes históricas, permitindo a sua construção historiográfica. E a fotografia tem parcela considerável para a escrita da história, notadamente no exemplo deste artigo, com suas representações e possibilidades de perpetuação de uma memória individual ou coletiva.
Citado por Dubois, Baudelaire, reservando a cada prática – arte (pintura) e fotografia -, seu campo próprio, sobre esta última afirma:
“… que seja finalmente a secretária e o caderno de notas de alguém que tenha necessidade em sua profissão de uma exatidão material absoluta, até aqui não existe nada melhor. Que salve do esquecimento as ruínas oscilantes, os livros, as estampas e os manuscritos que o tempo devora, as coisas preciosas cuja forma desaparecerá e que necessitam de um lugar nos arquivos de nossa memória, seremos gratos a ela e iremos aplaudi-la” (Dubois, 2009)
Imagem 10: Como último registro, esta belíssima fotografia, onde se vê a Lagoa Rodrigo de Freitas, vista da Fonte da Saudade, e ao fundo Morro Dois Irmãos, Gávea e Pedra Bonita. Autoria de FERREZ, Marc, de 1890 da Coleção Gilberto Ferrez, do Instituto Moreira Sales.
No seu nascedouro, quais as fotografias ocorreram com a consciência de se registrar e perpetuar o espaço físico, seus modelos arquitetônicos, as motivações e objetivos de sua construção? Quais foram frutos de fotógrafos que apenas se “deliciavam” com a beleza de uma paisagem aproveitando para tornar sempre presente aquele lugar em sua memória, dividindo este prazer com outras pessoas? Apenas com estas indagações percebemos o quanto à fotografia não deverá apresentar-se sozinha para que o historiador reconstrua o passado, mas sem dúvida, não podemos desprezar seu potencial como “fontes insubstituíveis para a reconstituição histórica doscenários, das memórias de vida (individuais e coletivas), de fatos do passado centenário, como dos mais recentes.” (Kossoy, 2009)
Referências:
BARTHES, Roland. “A Câmara Clara”. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira. 2008.
BURKE, Peter. “Testemunha Ocular. História e Imagem.” São Paulo. EDUSC. 2001.
A Fotografia e a Sociologia surgiram quase ao mesmo tempo no século dezenove, a sociologia com o “Discours sur l’esprit positif” de Augusto Comte em 1844 e a fotografia em 1839 com a exposição pública de Daguerre sobre o modo de fixar a imagem em uma placa metálica. Depois disso, ambas seguiram percursos distintos: a fotografia procurou seu reconhecimento no campo da arte, já que a maioria dos primeiros fotógrafos eram pintores que não conseguiram triunfar nos salões e que viram na fotografia um meio alternativo de consagração artística. A sociologia trilhou caminhos que a levaram à sua institucionalização como ciência positiva, preocupada com a elaboração de grandes teorias, apoiando-se em técnicas e metodologias semelhantes às das ciências naturais, no período em que a obra de Émile Durkheim (1858-1917) foi paradigmática.
Embora tanto tempo tenha se passado e novas tecnologias tenham sido incorporadas, o estatuto artístico da fotografia ainda continua sendo objeto de discussões. Desde o seu início, a fotografia foi negada enquanto arte legítima, mesmo pelos pintores realistas. Por um lado ela foi, inicialmente comparada ao empiricismo, com a observação racional e com a “reprodução direta do natural”. Por outro lado, a partir do momento em que se simplificaram os procedimentos que permitiram a qualquer pessoa fazer fotografias, a “aura” que envolvia a fotografia e que lhe conferia um caráter elitizado, desapareceu.
Inicialmente como meio de autorrepresentação e substituindo a pintura de retratos, a fotografia foi se tornando uma indústria onipotente e tentacular, em grande parte devido à capacidade de expansão de algumas empresas como a Kodak, que colocaram no mercado todos os produtos necessários à prática fotográfica, com preços acessíveis a uma larga camada da população.
A fotografia converteu-se rapidamente em um instrumento para manipular necessidades, vender mercadorias e modelar pensamentos. Através de seu uso nas campanhas publicitárias, ela se constituiu em uma ferramenta fundamental de apoio ao processo de expansão das economias modernas. A sua capacidade de reprodutividade permitiu também democratizar a obra de arte, tornando-a acessível a praticamente todas as faixas sociais. A imagem é de fácil compreensão, e tem a particularidade em apelar às emoções e assim no seu imediatismo reside sua força, mas também o seu perigo.
Contudo, a fotografia serviu de ferramenta de análise social para muitos dos primeiros fotógrafos que construíram sua história. Uma boa parte deles dedicou-se à exploração de temas caros à Sociologia através de fotos. Exemplos disso, são Lee Frielander e Gary Winogrand que fotografaram comportamentos no espaço público, abordando algumas das gandes questões sociológicas tratados nas obras de Georg Simmel e na “dramaturgia” de Erving Goffman.
A foto-reportagem ou foto-ensaio, surgida em 1920, gênero no qual foram precursores Eisenstaedt e Erich Salomon, confirmou a fotografia como instrumento de análise social. A fotografia mostrou imagens de sociedades longínquas, imagens que despertavam desejos e alargavam horizontes, mas trouxe também outras questões menos desejáveis. Robert Capa, fotógrafo da agência Magnum, e sua companheira Gerda Taro (fig. 1), foram precursores da fotografia de guerra, e portanto foi através de suas imagens que pessoas viram à distância cenas inéditas da Guerra Civil Espanhola, por exemplo. Ambos perceberam que a guerra é muito mais do que as batalhas: grande parte das suas melhores imagens retrata as periferias dos eventos históricos: as relações e as sociabilidades que se tecem em volta dos cenários de guerra. Fotógrafos como Dorothea Lange (fig. 2), Margaret Bourke-White, Russel Lee, Walker Evans foram financiados pela FSA (Farm Security Administration), um organismo estatal norte-americano para capturarem imagens dos problemas sociais da sociedade norte-americana, principalmente nas áreas rurais.
Fig. 2 – Mãe migrante, Califórnia, Eua, década de 30. Foto: Dorothea Lange.
O fotógrafo suiço Robert Frank (fig. 3), elaborou um projeto ambicioso de conhecimento da sociedade norte-americana através de suas lentes (“The Americans”) entre 1955 e 1956, retratando suas mais profundas contradições: as discriminações raciais, as desigualdades sócioeconômicas etc. o que foi muito mal recebido pelos americanos, pois dava a conhecer realidades sociais incômodas. Robert Frank refletiu em seu trabalho as influências das teorias de Tocqueville, Margaret Mead e Ruth Benedict. Mais recentemente, Henri Cartier-Bresson destacou-se como um dos mais notáveis fotógrafos sociais. Ao “congelar” o instante decisivo em cada foto que fazia, retratou comunidades na Índia, as convulsões políticas na Rússia e na China, assim como ritos e cerimônias sociais, como as danças de Bali.
No entanto, a Sociologia despertou tardiamente para a imagem, os sociólogos clássicos confiaram demasiado na palavra. A Antropologia usou mais precocemente os meios audiovisuais nas suas pesquisas de campo. Contudo, a fotografia e o cinema etnográfico e documental foram usados como técnicas complementares para comparar e ordenar o registro cultural, completar as notas de campo e ilustrar o texto verbal. Alguns sociólogos dedicaram-se a investigações que envolviam a fotografia, estudando os seus usos sociais, assim como utilizando a câmera como ferramenta de análise social. Pierre Bourdieu foi um dos sociólogos que interessou-se pelos usos sociais da fotografia, notando que esta cumpre “funções sociais específicas”, ao “solenizar” e “eternizar” determinados acontecimentos de relevo social: cerimônias e ritos como os nascimentos, os casamentos, a primeira comunhão etc., a fotografia como um instrumento para guardar memórias.
Fig. 3 – The Americains, década de 50. Foto: Robert Frank.
As questões aqui apenas esboçadas pretendem ser algumas pistas para um assunto que não se esgota tão facilmente, e os nomes de fotógrafas e fotógrafos aqui citados, são apenas alguns exemplos de precursores que de certa forma, investigaram com suas imagens, o campo social. A fotografia e a sociologia estão longe de terem plenas afinidades eletivas, título deste artigo, pois estão repletas de controvérsias, polêmicas mas também de convergências. A fotografia faz parte tanto da expressão do imaginário social, quanto das artes visuais, assim como serve de recurso metodológico enriquecedor da observação e registro das realidades sociais.
Nota: A expressão “afinidades eletivas” tem uma longa história que vai da alquimia, passando pela literatura romântica chegando às ciências sociais. É mais conhecida pelo título do famoso romance de Goethe de 1809. Nesta obra, as paixões determinam as atitudes das pessoas – de acordo com a visão de mundo do autor – e servem como alusão metafórica de elementos das ciências naturais e da química. O sociólogo Max Weber também utilizou esse termo na obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo” de 1905.
Referências:
Ferro, Ligia- Ao encontro da sociologia visual in Sociologia – Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005.
Goethe, Johan Wolfgang von – Les Affinités électives – Paris: Éditions Gallimard, 1980.
Martins, José de Souza – Sociologia da fotografia e da imagem- São Paulo: Editora Contexto, 2008.
Resenha do quadrinho Democracia de de Alecos Papadatos, Abraham Kawa e Annie Di Donna
Lielson Zeni em foto de Aristeu Araujo
Lielson Zeni é editor na DarkSide Books e doutorando na UFRJ. Escreve crítica, ensaio e textos acadêmicos sobre quadrinhos e literatura; lida com roteiros de cinema e quadrinhos e prosa de ficção. Membro do Balbúrdia http://balburdia.net
Disse ali que questionar e repensar a democracia não é um problema, que pensar em formas alternativas de regimes políticos também é de boa. Particularmente, acho nosso regime democrático bastante esfiapado, mas até hoje nenhum outro sistema garantiu tanta possibilidade de igualdade e de ajuste quanto a democracia. Trocar um regime que permite mudança e ajustes pelo autoritarismo não faz sentido. E é algo tão simples, que até fica difícil de argumentar mais que isto: mais escolhas é mais abrangente e atende mais pessoas (porque as pessoas são diferentes), por isso, precisamos de uma política inclusiva. Quando a gente elege um presidente que diz que as minorias precisam se dobrar à maioria e que vai metralhar os ideologicamente contrários, a lição de democracia já foi esquecida faz tempo.
O livro de Papadatos, Kawa e Di Donna conta a história do personagem Leandro (criado pelos autores), que convive com personagens históricos e mitológicos, e tem por cenário a mudança do regime político de Atenas: saíam os tiranos e entrava a votação dos cidadãos. Claro, que o conceito de cidadão lá ainda era muito restrito, mas aí entra a noção de a democracia ser questionada, discutida e repensada. Por exemplo, hoje, há muito menos mulheres e negros do que homens brancos na câmara e no senado se comparada à proporção de mulheres e negros da população brasileira, ou seja, estão sub-representados. É preciso achar meios para que essa representação se torne real no regime democrático e não acabar com a democracia (ver exemplo aqui, a partir do minuro 06:45). Do mesmo modo que a corrupção, nepotismo ou desvio de dinheiro não pede o fim da democracia, mas sim ajustes e fiscalização.
A forma de derrubar os tiranos (que na Grécia era o nome do líder com poderes ilimitados, mas de olho em atender os desejos populares) era pela força popular ou por um golpe dado por outra pessoa que se tornaria o novo tirano. Em uma hipotética ditadura, a única forma de derrubar um tirano por aqui seria também à força. Se o autoritarismo passeia pelos cadáveres das ideias contestadoras e das pessoas contrárias, ele se realimenta e se mantém com o sangue daqueles que se serviram dele.
Um quadrinho que faz seu leitor confrontar todas essas questões, todas tão urgentes, cumpre o objetivo. Democracia traz, acima de tudo, a história de Leandro, que encontra figuras importantes da Grécia e costura diversas informações do nascimento da ideia de democracia, enquanto acompanhamos sua história contada por ele mesmo, na noite anterior a uma importante batalha entre atenienses e persas. Mas para entender essa história, passamos pelas mudanças atenienses e suas novas ideias de política.
A arte é do mesmo time de Logicomix: Uma jornada épica em busca da verdade(WMF Martins Fontes, 2010, tradução de Alexandre Boide), e Papadatos e Di Donna usam figuras simplificadas em composições cuidadosas, e cores chapadas com leve sombreamento. A dupla de arte faz algumas páginas muito chamativas e dedicadas, que conduzem a trama de forma muito eficiente, além de serem interessantes por si mesmas.
Em tempos que se grita pela ditadura, só o título “democracia” na estante já é uma voz valiosa. Mas é melhor ainda quando o livro é aberto e o diálogo começa.
Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Bacharel em Direito pela Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO). Foi bolsista Apoio ao Ensino da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), atua como Coordenador de Área e Professor (componente curricular História) lotado na Secretaria de Educação e Cultura do Município de São Francisco de Itabapoana-RJ.
Da virtude do sacramento à fé pública: os efeitos da secularização dos atos vitais no Rio de Janeiro e nos Campos dos Goytacazes (1870 – 1920)
Carlos Salvador Jr.
RESUMO
O presente trabalho aborda o início, as reformulações e vigência do registro civil de pessoas naturais no Rio de Janeiro e nos Campos dos Goytacazes, com a respectiva mudança de competência e as diferentes formas de resistências eclesiásticas em face das alterações legais em cada ato vital (nascimento, casamento e óbito). No que concerne às searas religiosa e temporal, serão analisados os desdobramentos da secularização dos registros civis em uma sociedade predominantemente católica, cuja importância dos sacramentos permaneceu arraigada mesmo com a vigência da obrigatoriedade do registro civil de nascimento, casamento e óbito.
Sob os auspícios da filosofia tomista e do Concílio de Trento (1545-1563), a Igreja Católica normatizou e registrou todos os atos vitais por meio dos assentamentos eclesiásticos. Poder exercido de forma inconteste durante séculos.
A própria estrutura hierárquica das dioceses na Europa católica e na América portuguesa, supria a demanda dos assentos dos atos vitais, onde os sacerdotes exerciam o poder e o controle da sociedade, sabendo quem nascia, casava e falecia. Dessa forma, o clero poderia ser o “instrumento para a bênção e da salvação” de todos os fiéis devidamente identificados nos livros próprios da Igreja, pois acompanhavam os principais atos da vida civil. Os sacerdotes registravam e averbavam as alterações do teor do registro, anotando fatos posteriores à margem ou anexo aos assentos, expedindo certidões relatando o teor dos mesmos, ficando os livros sob a guarda das igrejas paroquiais, franqueando às autoridades religiosas o acesso às informações contidas nos mesmos.
Na América portuguesa a obrigatoriedade e as normas para a feitura dos registros paroquiais foram estabelecidas pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Contudo, ao longo dos séculos XVIII e XIX, não raro as visitas diocesanas feitas às paróquias admoestavam vigários e coadjutores sobre a falta de zelo nos assentamentos. Os registros de óbitos, por exemplo, sempre foram os mais irregulares quanto à frequência e o conteúdo dos assentos (Marcílio, 2004; Bassanezi, 2009).
Apesar das dificuldades enfrentadas pela organização da Igreja no Brasil, a pluralidade das capelas e das paróquias espalhadas estrategicamente nos importantes entrepostos comerciais das vilas e cidades, com grande fluxo de pessoas e habitantes, com o condão administrativo, identificava e arregimentava novos agentes e novas relações que geravam mais divisas para a Igreja em forma de dízimos, custas dos sacramentos e doações.
Assim eram regidas as sociedades católicas. Para mudar o âmbito da expectativa para o da constatação, necessário era dar ciência à Igreja para, só assim, efetivar a condição (o que atualmente entendemos como personalidade física) que a pessoa se encontrava. E a forma escrita, serial e metódica dinamizou todo processo. Se na Grécia Antiga e no Império Romano, as informações sobre nascimento e casamento eram oralmente comunicadas pelos líderes das famílias (Telarolli Jr., 1993, p. 145), após o mencionado Concílio de Trento (Séc. XVI), os atos vitais passaram a ser normatizados e consignados, dada a importância que foi atribuída pela Igreja ao registro dos mesmos. Logo, as coroas signatárias, regidas sobre a égide do catolicismo, passaram a adotar tal procedimento, inclusive Portugal e seu império.
A partir da administração pombalina (1750-1777), na América portuguesa assistiu-se a preocupação com a caracterização demográfica para quantificar a população por regiões e organizar a defesa do território nas regiões de fronteira contra possíveis ameaças castelhanas. Além da preocupação militar, havia ainda um conjunto de propostas para dinamizar as potencialidades econômicas da América portuguesa e para tornar a tributação mais eficiente. Para isso, adotou-se a realização de listas nominativas de habitantes pelas autoridades civis e, não raro, parte das informações contidas nesses mapeamentos populacionais era fornecida pelos párocos com base nos registros da Igreja (Marcílio, 2004).
Às vezes, para informar sobre o estado matrimonial ou o número de nascimentos e de mortes de uma determinada localidade, a “quantificação” dos assentamentos de batismos, casamentos e óbitos era fundamental. Os historiadores reconhecem que os registros paroquiais são os documentos mais “democráticos” sobre as sociedades de antigo regime católico, no sentido de cobrirem uma variada gama da população e, por consequência, um número bem maior de pessoas do que outras fontes documentais. Mesmo não registrando a totalidade dos eventos vitais ocorridos em uma freguesia, os assentamentos paroquiais abrangem todos estratos da sociedade: pobres e ricos, livres e escravos (Fragoso, 2004).
Em se tratando de Brasil, essa foi uma importante medida de configuração das duas principais instituições (Coroa e a Igreja) em prol do fortalecimento do império português ultramarino. O assentamento dos atos vitais e a necessidade do levantamento populacional que implicaria, por exemplo, no recrutamento do contingente militar ou na tributação, estreitaram ainda mais esse “amálgama” político-religioso decorrente da instituição do padroado régio.
E a união de fato entre Estado e Igreja se tornou de direito mediante a outorga da Constituição Imperial de 1824, que, dentre outras situações herdadas de Portugal, adotou o Catolicismo como religião oficial, assegurando à Igreja Católica a exclusividade da competência dos assentamentos vitais, o que fazia dos registros paroquiais uma das principais fontes de dados para fins “estatísticos”.[2]
Com efeito, a importância dos registros paroquiais ganhou nova dimensão após a transferência da família real portuguesa para a colônia brasileira. Nesse sentido, em 1814, por exemplo, preocupado com as condições de salubridade da nova sede da corte portuguesa, Dom João VI determinou à Junta de Saúde Pública do Império que elaborasse mapas mensais de mortalidade para a cidade do Rio de Janeiro. A medida enfrentou muitas dificuldades operacionais e só foi retomada anos mais tarde, pela iniciativa dos higienistas, pois somente a partir de 1859, a mortalidade na capital do Império passou a ser melhor conhecida por meio dos números compilados dos registros eclesiásticos (Telarolli Jr., 1993, p. 145).
No que se refere aos casamentos, a Igreja Tridentina precisava combater não apenas a visão luterana, que não admitia o matrimônio como um sacramento, mas também submetê-lo ao controle eclesiástico. Os costumes locais deveriam dar lugar às diretrizes da Igreja. Desta forma, a Igreja Católica tendia a se aproximar e controlar de forma intimorata a vida familiar dos seus fiéis (Brügger, 1995, p. 75).
Todas as pessoas que residissem no Brasil e quisessem contrair legítimas núpcias deviam sujeitar-se aos cânones católicos. Entretanto, após a abertura dos portos em 1808, nem todas as pessoas que viviam no país eram primordialmente católicas.
Segundo Bandeira Filho:
“Desde a mais alta antiguidade, a Igreja proibiu o casamento dos católicos com os pagãos, e já São Paulo dizia: Nolite jugum ducere cum infidelibus; daí o impedimento conhecido com o nome de cultus disparitas, que nesse caso é dirimente e não costuma ser dispensado. Quando, porém, se trata de casamentos de católicos com hereges ou cismáticos ou em geral protestantes, a Igreja os considera válidos, mas ilícitos e perigosos, devendo ser precedidos de licença da autoridade eclesiástica” (Bandeira Filho, 1876, p. 178 apud Brügger, 1995, p. 94).
Os casamentos entre cônjuges não católicos não eram reconhecidos nem pela Igreja nem pela legislação civil. Eram, portanto, tidos como nulos. Aos que não professavam a religião do Estado restava à opção de contraírem matrimônio fora do território brasileiro. A legalidade dessas uniões seria então reconhecida por força do direito internacional (Brügger, 1995, p. 95).
Todavia, segundo Sílvia Brügger, “a Igreja sempre dispensou, no Brasil, o impedimento de diferença de religião”, o que me parece ser uma afirmação generalizante, visto que o recorte analisado pela autora se restringiu ao bispado do Rio de Janeiro e suas respectivas freguesias.
No primeiro momento de punição criminal de culto à religião que não fosse a do Estado (art. 276 do Código Criminal do Império de 1830), o catolicismo institucional contribuiu para arrefecer a imigração europeia protestante (Alencastro; Renaux, 1997, p. 292). Entretanto, após a proibição do tráfico negreiro, o governo imperial propôs o projeto regulamentar de 18 de junho de 1851, destinado a criar um registro civil nacional, abrangendo brasileiros, estrangeiros, católicos e não católicos (Alencastro, 1997, p. 83). É certo que a proposta não chegou a ser aprovada face à oposição e resistência dos párocos, mas tal recalcitrância foi ineficaz em frear a política imigratória já em curso e sob os auspícios do Governo Imperial que subvencionou salários para os pastores das colônias protestantes, cuja mesma “liberalidade” foi negada as paróquias católicas, a exemplo da região sul (Alencastro; Renaux, 1997, p. 327).
O grande número de imigrantes europeus (oito colônias na província do Rio de Janeiro em 1855) não refletiu em homogeneidade dos costumes, língua e dialetos, pois os mesmos provinham das áreas rurais e urbanas de suas respectivas regiões de origem. No que se refere ao trâmite dos atos vitais, esses possuíam uma particularidade uniforme nas colônias protestantes. A escrituração não era serial e padronizada, entretanto produzia os esperados “efeitos de validade” dentro da comunidade. Quanto às características dos atos vitais nessas colônias do terceiro maior fluxo de imigrantes livres[3]:
De fato, nas colônias protestantes as cerimônias religiosas não tinham a força de um ato civil como nas católicas, em que esse ato era público em virtude da união Estado-Igreja no Império. Assim, o reconhecimento dos ritos restringia-se à privacidade da comunidade. (…) A vida espiritual imbricava-se na vida privada. Entre os documentos das famílias teuto-brasileiras encontraram-se velhas Bíblias nas quais se anotavam as datas dos eventos mais importantes – batismos, casamentos, óbitos – dos seus membros (Alencastro; Renaux, 1997, p. 326-328).
Diante desse cenário de fluxo crescente de imigrantes não católicos, verificou-se as primeiras propostas legislativas em face da competência exclusiva da Igreja Católica relacionada ao registro dos atos vitais. O Decreto Legislativo nº 1.144 de 11 de setembro de 1861, conferiu validade geral aos casamentos de não católicos, devidamente regulamentados pelo registro e as provas dos casamentos, óbitos e nascimentos desses cidadãos e seus respectivos filhos, definindo a tolerância e aceitação da validade de registros externos à Igreja Católica.
No entanto, a perda do monopólio católico sobre os registros de casamentos não seria duradoura. Estava em jogo toda a influência obtida e conquistada pela Igreja, que constitucionalmente era a legítima detentora do registro dos atos vitais no Império do Brazil. Já em 1865 o referido decreto foi revogado, retornando ao status quo em que somente nascimentos, casamentos e óbitos assentados pela Igreja eram oficialmente reconhecidos. Nesse contexto de relações de poder, centralização e formas de exercer influência sobre a sociedade, emana a necessidade da elaboração de aporte legiferante que irá reger e consolidar as relações entre Estado e Igreja.
Essa união verifica-se pelo assentamento dos atos vitais que se estende de 1822 a 1889, período em que os atos praticados pelos sacerdotes possuíam efeitos jurídicos na esfera civil, como batismos, casamentos e óbitos no Brasil império. Se a adoção do Catolicismo com religião oficial anteriormente serviu para consolidar a relação entre Estado e Igreja, com a efervescência dos debates ilustrados na Corte, ao longo da segunda metade do século XIX, passou a ser, paradoxalmente, um dos fatores que causariam a cisão. Segundo Ângela Alonso:
“Assim, por exemplo, Pereira Barreto, Alberto Sales, Aarão Reis, Pedro Lessa seriam autores de “obras filosóficas”, compondo uma “escola”, o “positivismo ilustrado”. A “Escola de Recife”, o positivismo, o “liberalismo doutrinário” e o “darwinismo social” seriam outras escolas “filosóficas”. No mesmo diapasão, Alberto Sales seria filósofo político e precursor da sociologia brasileira e o castilhismo seria uma “doutrina política”. Em suma, o movimento intelectual dos anos 1870 seria a fase de nascença de uma “ilustração brasileira”. (…) Traços comuns a muitos membros do movimento intelectual de fins do Império (a formulação de projetos de reforma do país, a citação de filósofos e literatos, a participação no debate público e em sociedades de estudo) são apresentados como produtos de mentes privilegiadas.” (Alonso, 2002, p. 23-24)
Outros pontos de crítica viriam da natureza limitada dos assentamentos eclesiásticos dos atos vitais, como a inclusão apenas dos católicos, a falta de padronização na coleta de informações nas diferentes paróquias, e o fato de registrarem não os eventos vitais e suas datas, mas as cerimônias a eles relacionadas (Telarolli Jr., 1993, p. 146). Ou seja, em lugar do nascimento registrava-se o batismo; em lugar do óbito, o dia do sepultamento (Silveira; Laurenti: 1973, p. 37).
A exclusão dos não católicos de toda gama de registro dos atos vitais, consequentemente dos empregos públicos e do exercício de cargos de representação popular (deputados e senadores), foi amplamente criticada pelos ideais liberais, bem como do pensamento republicano que, a partir da década de 1870, estava tomando forma e adeptos que comporiam o Partido Republicano naquele mesmo ano. A influência e difusão do Positivismo no Movimento Republicano engrossava o repertório das críticas asseveradas com a participação ativa do grupo de positivistas ortodoxos liderado por Miguel Lemos e Teixeira Mendes, por meio das Circulares Anuais eivadas de justificação doutrinária laica:
“Só entre 1881 e 1884 publicaram 39 opúsculos sobre temas do dia. (…) Escreveram por exemplo, A Pátria Brasileira (1881) e A universidade (1882); A liberdade espiritual e a secularização dos cemitérios (1887); O projeto de casamento civil; Carta ao ministro do Império (1887); Abolicionismo e clericalismo (1888). Publicaram muitos outros títulos sobre a separação Igreja-Estado, a secularização de cemitérios, a naturalização dos estrangeiros, a reforma do ensino, a liberdade de imprensa, vários sobre a escravidão. No Catálogo das publicações do Apostolado Positivista do Brasil, que veicularam em junho de 1889, constavam 71 títulos, a maioria distribuídos gratuitamente” (Alonso, 2002, p. 206).
Daí em diante, forças representativas do Estado atuavam em nome da ruptura laicista nos atos vitais, e as contradições entre Estado e Igreja intensificaram nas décadas finais da Monarquia, confrontando de um lado o liberalismo e o cientificismo das elites brasileiras e de outro o movimento ultramontano de características conservadoras que predominou no papado de Pio IX. Para o pensamento republicano, a Igreja era uma instituição que representava o passado contra o progresso, ou seja, uma aliada natural da Monarquia (Telarolli Jr., 1993, p. 147).
Consequentemente a legislação registral dos atos vitais foi aprovada de forma gradativa. Cronologicamente foram criados os Decretos nº 798 de 18 de junho de 1851 (suspenso pelo Decreto de 29 de janeiro de 1852); e a Lei nº 1.829 de 09 de setembro de 1870 que, em seu art. 2º, criou o Registro Civil das Pessoas Naturais, posteriormente regulamentado pelo Decreto nº 5.604 de 25 de abril de 1874.
Insta registrar que metaforicamente a mencionada Lei nº 1.829 surge como “marco de cananéia”, a lei que estabeleceu os limites do clero e marcou em todo território imperial o início da secularização[4] dos atos vitais, que passaram a ser considerados registros civis de pessoas naturais.
Se o problema legal estava resolvido, concomitantemente surgiam os óbices de como: aplicar a lei em todo território brasileiro, que já nessa época possuía “dimensões continentais”; de suplantar as convicções religiosas por séculos arraigadas no povo; e do Governo superar a consequente desconfiança da população, visto que, mesmo na vigência da lei, havia opositores veementes da tentativa de separar a Igreja do Estado no que tange aos registros dos atos vitais.
Posto que a união sancionada entre Estado e Igreja perdurou até 1889 (fim do Império), cabe dar o devido destaque às influências políticas que romperam, mesmo parcialmente, com esse vínculo. Mesmo no auge das conjunturas políticas com matizes liberais e ilustradas, que inclusive concorreram para a Proclamação da República, o Império nunca se declarou expressamente contrário à Igreja Católica. Entretanto, aprovou uma lei que restringia a exclusividade do registro dos atos vitais e os poderes exercidos por ela, dando mostras de quem realmente detinha o poder.
Nesse liame, sobressaem os políticos maçons, deputados provinciais pelo Rio de Janeiro e Mato Grosso, respectivamente, Antônio Joaquim de Macedo Soares (Conselheiro Macedo Soares) e José Maria da Silva Paranhos Júnior (Barão de Rio Branco) e o deputado da Assembleia Geral, Joaquim Saldanha Marinho. Personagens que, não somente conquistaram o apoio legislativo, mas convenceram o Imperador Pedro II (também Grão Mestre Maçom) da necessidade de regulamentar e estatizar os atos vitais, obtendo o controle dos assentos e dos livros dotados de fé pública[5], que passariam a ser registro civil de pessoas naturais. Preliminarmente, a justificativa foi de levar a “luz” positivista aos assentos dos atos vitais, realizando dados e apontamentos estatísticos mais verossímeis, mas o “pano de fundo” argumentativo foi transferir para o Estado a competência de ser o ente responsável pela outorga à pessoa natural, de todos os poderes vitais que o ato oferece. Ou seja, no âmbito do registro civil, a benção do sacramento foi relativizada pela fé pública, e o fiel foi substituído pela pessoa natural.
Como se trata de um processo de transição com “idas e vindas”, mediante a contestação da Igreja Católica e a desaprovação das mudanças pelo povo, “gerando uma certa balbúrdia” (Meira, 1994, p. 48), metodologicamente classificarei e dividirei a resistência eclesiástica em dois períodos, analisando e contextualizando as fontes relacionadas a cada um deles, bem como as diferentes estratégias da Igreja. São eles: o Enfrentamento Aberto (1870-1875), quando a Igreja resistiu às mudanças atuando, sobretudo no domínio da opinião pública, concorrendo para criticar o governo (já bastante desgastado devido à ascensão política dos republicanos), cuja crise deu margem para: a elaboração do Manifesto Republicano em 1870; ataques nominais aos políticos envolvidos; incitação popular; prisão de sacerdotes; uso dos veículos de comunicação refutando cada artigo da “herética” lei secular dos atos vitais, bem como do “paganismo” do decreto regulamentador, acontecimentos esses classificados e enquadrados pela historiografia brasileira na Questão Religiosa.[6] Em seguida, trato do período por mim nomeado de Conciliação entre o altar e a República (1888-1920), compreendendo o último ano do Império e o início de uma nova era dotada do pensamento liberal republicano, onde a obrigatoriedade do registro civil de pessoas naturais começou a viger erga omnes, tornando ilegais todos os atos destinados a incutir a continuidade da resistência dos fiéis, passando a Igreja a ser considerada uma instituição que representava o passado contra o progresso, ou seja, uma aliada natural da Monarquia (Telarolli Jr., 1993, p. 147). Nesse momento, a Igreja Católica precisava resistir para não sucumbir, mudar a estratégia de combate à secularização já consolidada. O estratagema adotado foi o abandono do enfrentamento contra as mudanças na legislação e das críticas abertas ao governo, com vistas à formalização de uma aliança político-doutrinária com o novo regime. Ao aceitar a nova forma de poder constituído, paralelamente buscou promover o incremento da “concórdia entre o poder civil e o eclesiástico no Brasil”, demonstrando à sociedade, bem como ao neófito governo, a importância de sua manutenção como aliada para combater opositores e dar sustentáculos à base política temporal. Para atingir esse objetivo por meio dessa nova estratégia, os setores dirigentes da estrutura eclesiástica pátria foram responsáveis por esse “amálgama político” outrora ausente, como veremos a seguir.
O “Gap” (interstício) relativo ao período de 1876 a 1887 se refere à ineficácia da lei em face da grande adesão popular aos ditames clericais, “perfeitamente compreensível, dado o sentimento religioso do povo e as dificuldades de uma mudança brusca” (Meira, 1994, p. 48.). Ou seja, se por um lado a aludida lei de 1870 não foi revogada, pois continuou existindo no campo social, político e jurídico, por outro, os cidadãos do império optavam pelos auspícios da fé cristã, preterindo a fé pública (estatal).
Importante mencionar igualmente que o vocábulo “fé”, portador de uma denotação eminentemente religiosa, foi incorporado ao vernáculo jurídico/administrativo, com sentido conotativo nas definições de fé pública e boa-fé (como requisito de validade do ato administrativo), comprovando que a secularização dos atos vitais se valeu de vários conceitos eclesiásticos no afã de abrandar os efeitos da mudança em curso no imaginário coletivo.
2 – AS FORMAS DE RESISTÊNCIA À SECULARIZAÇÃO DOS ATOS VITAIS
2.1 – A MITRA VERSUS A COROA: enfrentamento aberto (1870-1875)
Sobre o recorte espacial do Rio de Janeiro, e no que se aplica à influência que a corte e posteriormente capital da república exercia sobre a maior cidade do interior da província e do estado (Campos dos Goytacazes), trago à baila dois influentes veículos de comunicação: a) “Monitor Campista”, o terceiro jornal mais antigo do País, de propriedade privada, fundado em quatro de janeiro de 1834; b) “O Apóstolo”, fundado em 1866, produzido pela hierarquia católica do país, definido como: “o periódico consagrado aos interesses da religião e da sociedade”. Publicado duas vezes na semana, e de grande circulação entre os assinantes fluminenses, O Apóstolo pode ser considerado como uma espécie de manual do bom católico e um instrumento de defesa do Catolicismo, principalmente entre os sacerdotes que defendiam a fé, os costumes e a luta contra adversários considerados “opositores da palavra”, cujo conteúdo era reproduzido nas missas e nos demais compromissos que os sacerdotes mantinham com o público em geral. Como importante porta-voz do clero católico ultramontano, articulou-se fazendo uso de todas as ferramentas que tinham ao seu alcance. Os extensos artigos e editoriais, que muitas vezes não findavam em uma única edição, não tinham autoria declarada, mas, segundo Alceste Pinheiro, os padres eram os prováveis redatores, bem como figuras de grande projeção no meio eclesiástico de então, a exemplo do padre João Esberard e do jornalista Antônio Manuel dos Reis que empreenderam (via periódico) suas batalhas contra os devidamente identificados “inimigos da Igreja” (Pinheiro, 2009, p. 3).
Em comunicado publicado pelo jornal Monitor Campista, em agosto de 1870, a Sociedade Brasileira de Beneficência alerta os leitores sobre as mudanças seculares em curso, informando que necessário era a instrução para identificar as intenções e escolher o caminho da retidão, pois:
“Como era de esperar de uma população intelligente como a de Campos, tem ella comprehendido todo o alcance das grandes visitas desta importantissima associação(…) Tanto mais digno, laborioso, pacifico e independente é o cidadão, quanto mais esclarecido e apto para dirigir as suas faculdades e capacidade natural, assim como tanto mais aviltado, ocioso, turbulento e immoral se-torna quanto mais ignorante e destituido de habilitações é. No primeiro, tem a liberdade um defensor estremecido, e a ordem seguro penhor. O segundo é um elemento permanente de desordem e perturbação social. É por isso que todos os grandes pensadores do seculo, todos os publicistas ilustres, todos os homens politicos notaveis, todos os chefes de nação dignos do throno ou da cadeira presidencial em que se assentam, todas as grandes assembleias legislativas, mais do que por nenhuma outro melhoramento, envidam todas as suas forças por ministrarem ao povo a instrucção primaria e a maior soma possivel de conhecimentos práticos(..) Pois bem: não é outro o empenho principal da Sociedade Brasileira de Beneficiência, em Campos; é esta a sua grande missão, missão evidentemente civilisadora, e que, ampla e satisfactoriamente desempenhada, é por si só bastante para levar longe a fama do alto merito de qualquer terra e de qualquer povo em que o seja. Combater a miseria moral, combater a miseria material, – tal é o duplo fim a que visa a Sociedade Brasileira de Beneficiência” (MONITOR CAMPISTA, 27/08/1870).
Esse “elemento permanente de desordem e perturbação social” de forma genérica possui várias implicações, sobretudo as consequências polifacéticas que uma “chaga” (desvio moral) pode produzir. Como visto no fragmento, a instituição definiu um lado, abordou a urgência de instrução da população, sendo impossível dissociar o intento das luzes positivistas que os maçons apregoavam na política pátria, sendo inclusive, os grandes filantropos e mecenas dessas instituições de beneficência. Com relação à influência que a maçonaria estava exercendo na política brasileira, “O Apóstolo” assim dispôs ipsis litteris, em março de 1874:
“Entre nós; o que admira é ver o escândalo das contradições: Diz o sr Saldanha Marinho (o Ganganelli) diz o sr Rio Branco (o grão mestre do Lavradio), e dizem todos os impios e hereticos, e toda essa turba de vindiços que tanto se gloriam hoje de serem os primeiros revolucionários da pobre colonia (…) Os santos princípios da maçonaria despensam (sic.) os princípios da doutrina do Senhor! Os sacramentos desde o baptismo até o matrimonio são obras da Curia romana, e devem desapparecer (sic.). Esses são os princípios dos Ganganellis![7] (O APÓSTOLO, 13/03/1874).
Note-se a informalidade do discurso, o chamamento do leitor a compor a frente reivindicatória por meio da expressão “entre nós” e a inexistência de crítica velada aos políticos e “sociedade discreta” que eles seguem. De forma nominal e com o emprego de técnica redatorial cooptativa, foram apontados os responsáveis pela pusilânime mudança que atentou contra a união do Estado e da Igreja Católica.
E continua:
“Ainda é tempo, meu amigo, de reatar o fio das minhas considerações sobre a luta travada pela maçonaria no poder do segundo reinado contra a verdadeira Egreja de Jesus Christo; e que por causas que não vem ao caso agora discutir, deixei que ficasse preso ao Diário do Rio de 10 de Julho do anno passado (…) Caminhar, caminhar sempre entre todos os sacrificios, em defesa da causa santa e dos direitos que a cercam ou com ella se identificam, será a maior glória dos nossos dias(…) Ora, desde que se nega o PAI em sua Essencia e Verdade, que muito é que negue o FILHO em sua dupla natureza divina e humana? E negando-se a natureza divina do Filho, o que ha que espante ver hoje encarnado nos poderes da terra o elemento revolucionário – o mais terrível, o mais pernicioso – contra a doutrina do Salvador, contra sua moral, suas leis, sua Egreja enfim firmada em um dos seus escolhidos?” (O APÓSTOLO, 13/03/1874).
Metaforicamente, estendendo o conceito para a “sangria” da fé cristã que estava em curso, também publicou:
Verdade é que não se trata hoje de uma vítima igual a essa; mas de milhares de catholicos que vão ser sacrificados à tyrannia de uma lei tao offensiva às consciencias como a moral; trata-se dos direitos da Egreja Catholica e dos Bispos, em sua defesa (…) não devemos sucumbir às loucuras da razão do Estado, que dá direito à soberania da razão coletiva. Repetir as verdades, meu amigo, é vencer os seus mais rancorosos inimigos. Pio IX sempre foi, é, e será o Anjo Tutelar do povo Catholico. Os que o desrespeitam, por si mesmo cahem por terra, e como vermes ahi se espojam unicamente para mostrarem que vivem da pudridão. (O APÓSTOLO, 13/03/1874).
Os legisladores, prevendo que a Igreja Católica conclamaria os fiéis a lutar contra a lei, definem no regulamento (Decreto nº 5.604 de 25 de abril de 1874)[8], a coerção do Estado em caso de descumprimento. Eles entenderam que uma lei meramente explicativa seria ineficaz, sendo necessário estabelecer o poder cogente do Estado (pena de prisão) nos casos de transgressão que imaginavam que pudessem acontecer.
E aconteceram. A “Questão Religiosa” recrudesceu com a condenação de Dom Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira (doravante designado Dom Vital), o “heroico Bispo de Olinda”, repercutida vastamente nos exemplares fluminense do periódico “O Apóstolo” com o apenamento do “Martyr de Pernambuco”, e posteriormente com a prisão do Bispo do Pará, Dom Antônio de Macedo Costa (doravante designado Dom Macedo Costa), ambos condenados a cumprir reprimenda de quatro anos de prisão com trabalho forçado, pelo crime sedição e por descumprir o prazo de 30 (trinta) dias para encaminhar, após a celebração do casamento, os banhos matrimoniais (proclamas) para o registro na serventia do Escrivão de Paz do distrito de residência dos cônjuges, infringindo os artigos 48 e 55 do Decreto nº 5.604 de 25/04/1874 (Regulamento da Lei do Registro Civil de Pessoas Naturais).
Como é possível observar, esse mesmo regulamento não determinou a inexigibilidade dos atos sacros e muito menos cerceou a validade dos sacramentos. Com seu arcabouço normativo, o regulamento tentou estabelecer a prioridade do registro civil em detrimento ao assentamento religioso que continuaria existindo, mediante “uma atribuição paralela dos órgãos eclesiásticos e dos juízos de Paz, dependendo da localidade, da religião do registrando e outros fatores” (Meira, 1994, p. 51).
Naturalmente a fonte primária analisada é parcial, tendenciosa e defensiva, por ser um veículo oficial da Igreja Católica. Contextualizando e estabelecendo o contraditório, Dom Vital e Dom Macedo Costa eram críticos contumazes da maçonaria, inimigos ferrenhos do Grão Mestre e Ministro da Fazenda, o Visconde do Rio Branco (pai do Barão do Rio Branco, igualmente adversário) cujas ordens de prisão foram aquiescidas pelo Imperador Dom Pedro II, também devido às incitações de insurgências e levantes populares contrários à maçonaria, e ao “governo maçom do Imperador”. Dom Vital era um opositor declarado do poder maçônico constituído, atingindo também o Imperador que era maçom, sendo a pena de prisão um recurso para combater a subversão, assim como Dom Macedo Costa, com sua erudição ultramontana e discernimento voltado para a importância geopolítica da Diocese do Rio de Janeiro para a Santa Sé, tentava estabelecer consenso no movimento de reação eclesiástica (Gomes, 2007, p. 79).
Esse fato desencadeou várias prisões em Salvador, Recife e no Rio de Janeiro, o que motivou o Duque de Caxias (Presidente do Conselho de Estado) e o próprio Papa Pio IX no sentido de interceder junto ao Imperador para conceder as anistias e pôr fim à “Questão Religiosa” (que, após muita relutância, o fez mediante Decreto nº 5.993 de 17 de setembro de 1875).
Consequentemente, a prisão de sacerdotes que outrora estavam “conduzindo a população no caminho da retidão” e da afirmação dos valores cristãos, causou grande comoção popular, com a adesão maciça dos fiéis ao princípio da continuidade dos sacramentos dos atos vitais que davam a bênção e a legalidade divina almejada. Segundo o jurista Clóvis Beviláqua: “Ao que tudo indica o povo brasileiro não se adaptou logo a esse sistema por não ter sido compreendidas as suas vantagens pela população.”[9]
Seguindo o nexo, Rodolpho Telarolli Junior, em seu artigo sobre a secularização do registro dos eventos vitais no Estado de São Paulo, assim discorreu:
“Uma dificuldade importante para a implantação do sistema de registros civis no Estado de São Paulo era a falta de tradição dessa prática no país. Prova disso é que o registro de nascimento tinha maior aceitação nos municípios onde predominavam os estrangeiros originários de países onde essa instituição era mais antiga. Quanto ao casamento civil, uma queixa generalizada das autoridades locais e estaduais era a relutância do povo, a qual seria menor caso as autoridades eclesiásticas não negassem legitimidade ao casamento civil, combatendo-o abertamente muito tempo depois da Proclamação da República”. (Telarolli Jr., 1993, p. 151).
Tanto na concepção secular quanto na concepção eclesiástica, no “calor” do debate e das contradições, a conclusão que ambas as correntes chegaram foi que a lei não estava atingindo o seu fim. A dificuldade do Estado de implantar toda a estrutura de serventias que realizariam os registros civis; a nomeação de agentes públicos em número suficiente que suportasse a demanda registral e a transição “mansa e pacífica” da competência foram os empecilhos emanados pela própria executoriedade da lei e causaram o interstício supracitado. Com uma decisão definitiva que avocaria para o Estado o direito de exercer o registro civil de pessoas naturais, deveria a lei vir contida do concomitante planejamento e previsões com base nos modelos das secularizações em curso ou já consolidadas na Europa. E se ocorreu, inobservou-se as especificidades da estrutura registral brasileira. Consequentemente, ganhou força à motivação de revanchismo e vingança envergada pela Igreja Católica, que continuava com as suas críticas “ácidas” contra “a matiz pantagruélica” atribuída ao Estado:
“Ademais, quando ambos os Poderes versam sobre o mesmo objeto, em parte civil, em parte eclesiastico, não podendo este dividir-se, prevalece o Poder eclesiastico, na sua qualidade de poder humano-divino, em competencia de outro meramente humano”. (O APÓSTOLO, 13/03/1874).
“Depois de quatro annos de uma gestação difficultosa, teve o art. 2º da lei nº 1829 de 09 de setembro de 1870 um regulamento mais proprio de um povo pagão, do que de uma nação creada á sombra do Christianismo. (…) Depois de aprovado o regulamento o discurso atenua: “Não negamos, nem desconhecemos a necessidade, tanto da lei como do regulamento, mas quizeramos ver consultados os interesses geraes e particulares, os commodos e crenças dos cidadãos. A utilidade pública deve ser sempre o objecto da lei.”(…) Limitando-nos por hoje a estes reflexos, reservamos-nos o direito de analysar em uma serie de artigos todas as disposições do regulamento, que reputamos mais um attentado do que uma garantia aos principios constitucionais”. (O APÓSTOLO, 14/05/1874).
No tocante aos óbitos, essa era a parte dos atos vitais que maior era a influência da igreja nos saberes e fazeres dos fiéis, marcando a disjunção na sociedade entre a morte e a vida. As representações católicas que se preocupavam com a “boa morte”, como objetivo de salvação, inclusive pela redenção pelas disposições de última vontade (testamento) sofreram grandes transformações ao longo do século XIX.
Contextualizando os ensinamentos de Cláudia Rodrigues: “enquanto a Igreja deteve a hegemonia na sociedade, era a proximidade da morte a ocasião em que ela melhor conseguia exercer seu controle sobre os comportamentos e os pensamentos dos fiéis” (Rodrigues, 2005, p. 127). Era tão importante “aos olhos” da Igreja e da fé cristã que a primeira providência que consubstanciou o intento secular do Estado foi por meio do Decreto Imperial de 1º de outubro de 1828, cujo artigo 66 determinava o fim dos sepultamentos no interior das igrejas, bem como nos respectivos entornos (adros). O Decreto atribuía às municipalidades a tarefa de estabelecer cemitérios extramuros, em conformidade com as autoridades eclesiásticas do lugar, para atender a inquietação suscitada pelo processo de medicalização da sociedade e responder com medidas profiláticas de contenção aos surtos epidêmicos atribuídos à putrefação dos tecidos orgânicos, destarte, sem promover a ruptura entre os poderes constituídos. Antes não se estabelecia relação entre sujeira e doença, porém, o triunfo da medicalização da morte, sujeita às prescrições relativas ao discurso higienista, proporcionou a aprovação do Decreto nº 583 de cinco de setembro de 1850 que autorizou o Governo a criar Cemitérios Públicos nos subúrbios do Rio de Janeiro (Rodrigues, 2005, p. 217 e 259).
Ou seja, a “desclericalização da morte”, que a lei civil pretendia, gerava grande tensão na sociedade, mesmo com os argumentos médico-higienistas, os posteriores decretos seculares de 1870 e 1874, foram questionados e criticados pelos representantes da igreja ultramontana, inclusive as propostas da Assembleia Provincial do Rio de Janeiro para criação de cemitérios públicos, reduzindo a competência dos párocos a meros comunicantes dos sepultamentos ao ente público. Para o clero, essa iniciativa iria soçobrar pela própria rejeição da população e pela incapacidade material do Estado em realizar os assentos de óbitos (Rodrigues, 2005, p. 231).
Com a gradual perda de jurisdição sobre os cemitérios de Santa Maria Madalena, Vassouras, Araruama, Campos dos Goytacazes, Saquarema e Paty de Alferes, também preocupava a questão do registro (atestado) de óbito. Campos dos Goytacazes foi à cidade que criou o maior cemitério da Província do Rio de Janeiro, em 1855, muito devido ao surto de cólera-morbo que provocou milhares de mortes e dos “miasmas pútridos” oriundos dos cadáveres, de acordo com as teorias médicas em voga. Mas, já no longínquo ano de 1835, a Câmara de Vereadores já tinha aprovado e escolhido o local para a construção do Cemitério Geral, mediante a “necessidade de remover para fora da povoação os cemitérios, focos de enfermidades que em mal-entendido respeito aos despojos mortais fez estabelecer nos templos, e que uma perniciosa e indecente prática tem conservado a despeito das luzes do século” (Souza, 1985, p. 167-8; Franco, 2015, p. 2).
O Cemitério do Caju de Campos dos Goytacazes, benzido em 25 de outubro de 1855, começou sob jurisdição “sui generis”, pois ao passo que as irmandades religiosas reivindicavam as respectivas demarcações, a municipalidade já discutia a possibilidade dos sepultamentos dos não católicos, por exemplo. Segundo Maria da Conceição Vilela Franco, o “cemitério público não nasceu secularizado”, todavia, em se tratando especificamente do Cemitério do Caju de Campos dos Goytacazes, a responsabilidade da construção e administração era da municipalidade, ficando a Igreja Católica como autoridade na matriz religiosa, verificando a sua natureza híbrida (Franco, 2015, p. 03).
O Estado Imperial esforçava-se para manter sua política ambígua na tentativa de preservar “autoritarismo e liberalismo, jurisdicismo confessional e tolerância religiosa, esfera pública e privada, estatuto do súdito e cidadão” (Rodrigues, 2005, p. 157). A polêmica envolvendo protestantes, maçons e a Igreja Católica, se deu nesse contexto (Brito, 2007, p. 4).
Classificando jocosamente os próceres homens públicos maçons como proselitistas da política “algaravia que se valiam do panegírico pagão para aprovar as suas iniquidades”, O Apóstolo verberava:
Eis o que pede Ganganelli; agora resta obedecé-lo. É pouco. O casamento civil, o registro civil e o cemiterio civil; tudo civil no nome, civil na apparencia, civil na fórma, mas barbaro no fundo, barbaro na pratica, barbaro nas consequências! (…) É a decretação do Estado sem Deos, é a porta fechada do catholicismo, é a proclamação viva do atheismo. (…) Teremos ocasião de discutir longamente o casamento civil, o registro civil e a sua secularização dos cemiterios; por agora não daremos importancia as declarações de Ganganelli que aturde os ouvidos do leitor com uma gritaria infernal (grifo meu), mas não discute uma idea, não defende um princípio. (…) A secularização dos cemitérios já é um facto consummado na provincia do Rio de Janeiro, graças a sua respectiva Assembléa, que tem votado a esmo o que lhe propõe individuos sem crenças e sem conhecimentos especiaes de certas materias. (…) Ouvimos a falla da maçonaria, esperamos agora pela falla do throno. Rio, 2 de maio de 1874. (O APÓSTOLO, 03/05/1874).
O fragmento acima deixa claro a verve do discurso apregoado contra os políticos que propuseram a secularização dos atos vitais e os efeitos que marcariam indelevelmente a fé cristã brasileira. No cristianismo existe um dogma de rogar a Deus pela salvação, atribuindo à palavra um valor de sentença: “Como maçãs de ouro em salvas de prata, assim é a palavra dita à seu tempo (Bíblia Sagrada, Provérbios 25:11)”. Não é comum a literatura eclesiástica desse período expressar ira, considerada um pecado capital a ser evitado e combatido. Uma coisa eram os tabloides depreciativos oriundos da chamada “imprensa marrom” que publicaram vasto material sobre a celeuma com o mais variado estilo linguístico. Outra, completamente diferente, é o vocábulo pecaminoso constar em um veículo oficial, mantido pela Igreja Católica e que vinha recheado de orações e reflexões de passagens da bíblia, além do editorial. Aliás, não era de se esperar que um sacerdote instilasse a cólera, utilizando adjetivo pejorativo, desejando o mal ao invés da penitência e da redenção do pecador.
Quando o furor do interlocutor o faz penejar a palavra “infernal”, que o maniqueísmo cristão condena e constrói o caminho oposto para o fiel trilhar, evitando a condenação às trevas e a eterna presença de Satanás, é a prova do patamar e da “temperatura” que os embates pró e contra secularização se encontravam. Essa efervescência foi transmitida aos fiéis. Os “responsáveis pelo inferno”, os “emissários do mal” estavam devidamente identificados, assim como Lúcifer e a horda de diabos. Encontrou-se uma maneira de informar sobre o poder das forças maléficas e resistir seria necessário, pois o “bem sempre triunfará”, inclusive com a ajuda de “anjos e arcanjos” personificados pelos deputados defensores da sepultura eclesiástica como: Antônio Carlos; Bezerra de Menezes; Rodolfo Dantas; Felício dos Santos; Afonso Pena (que se tornaria Presidente da República); João José de Monte e Alfredo d´Escragnolle Taunay (Visconde de Taunay).
O bastião da salvação de combate às mazelas da secularização estava perfilado. Ao associar, mesmo que metaforicamente, a maçonaria ao “inferno”, o periódico, no final do fragmento, afirma saber o que vem de lá (intenções). Deixa a cargo do Imperador Pedro II a decisão definitiva, após grandiloquências argumentativas, onde o interesse da população deveria superpor aos princípios e intentos da “sociedade do esquadro e do compasso”.
Assim: “Foram estes, pois, os dois grandes lados da disputa pelo controle dos cemitérios e dos mortos nele inumados: os que preconizavam que eles deveriam ser da alçada do poder público e, portanto, civil, e os que acreditavam que deveriam continuar sendo da esfera do poder eclesiástico e sagrado.” (Rodrigues, 2005, p. 286).
2.2 – REALINHAMENTO PRAGMÁTICO: Conciliação entre o altar e a República (1889-1920)
Como não existem fórmulas em que o devir histórico deva-se encaixar, também no processo analisado, a obrigatoriedade dos registros civis não se verificou automaticamente com a Proclamação da República. Por comodidade, seria prático apresentar e desenvolver os conceitos do registro civil dos atos vitais como obrigatórios no advento da República. A afirmação não está equivocada, entretanto é necessário considerar as fases do processo em curso, sem estabelecer rótulos que incapacitem e cerceiem a real dimensão que os documentos oferecem, visto que não se trata de um processo linear e tampouco previsível.
Quanto à análise dos dispositivos legais, a “letra fria” da lei melindra o leitor que somente se atém à sequência dos acontecimentos, sem contextualizá-los. Que essa atecnia não extrapole o campo jurídico, onde importa somente a lei em vigência, subentendendo que ela sempre será melhor e mais eficaz que as leis sobrepostas, descartando a legislação revogada, bem como o aporte histórico nela contido.
Corroborando essa perspectiva de pesquisa, a obrigatoriedade do Registro Civil de Pessoas Naturais de fato foi determinada pelo Decreto Imperial nº 9.886 de 07 de março de 1888, em execução da mencionada Lei nº 1.829 de 09 de setembro de 1870, substituindo o Regulamento disposto pelo Decreto nº 5.604 de 25 de abril de 1874.
Ou seja, o Governo cedeu aos intentos seculares ainda durante a Monarquia, consubstanciando e dinamizando os projetos, decretos e leis que se aplicavam aos registros dos atos vitais em um único decreto, mais rigoroso e abrangente em face das malfadadas legislações extravagantes.[10] Inclusive, dessa vez, o Governo financiaria o acervo registral, que deveria seguir a formatação padrão para cada tipo de assento, conforme o mencionado no referido Decreto Imperial nº 9.886 de 07 de março de 1888:
“Art. 3º Os assentos do registro civil serão exarados em livros para esse fim especialmente destinados, sendo um para o registro dos nascimentos, outro para o dos casamentos e outro para o dos obitos.
Art. 4º Para a installação do registro civil fornecerá o Governo os primeiros livros, que servirão de modelo aos que deverão substituil-os depois de findos, contendo termos de abertura e encerramento, e todas as folhas numeradas e rubricadas, no Municipio Neutro pelo Chefe da 3ª Directoria do Ministerio do Imperio, e nas Provincias pelo Secretario do Governo”.[11]
Em seu art. 53, literalmente estabeleceu a obrigação de levar a registro: “Todo nascimento que ocorrer no Império, a bordo de navios de guerra ou mercantes em viagem, ou nos acampamentos do Exército em campanha, deverá ser dado a registro dentre de três dias”, fato diferenciador dos outros dispositivos legais, inclusive determinando em seu art. 2º o agente competente da certificação dos três fatos (nascimento, casamento e óbito): “O Escrivão do Juiz de Paz do 1º ou único districto”.
O art. 69, estabeleceu a obrigatoriedade de encaminhar a habilitação de casamento a registro, independente da religião:
“Dentro de tres dias da celebração de um casamento no territorio do Imperio, os esposos por si, ou por seus procuradores especiaes, são obrigados, quer sejam nacionaes, quer estrangeiros, a fazer lavrar o assento respectivo no cartorio do Escrivão de Paz do 1º ou unico districto da parochia de sua residencia, à vista de certidão, ou declaração do celebrante, seja qual fôr a sua communhão religiosa, revogada nesta parte a disposição do art. 19 do Decreto n. 3069 de 17 de abril de 1863”.[12]
Importante mencionar que ainda não estava configurado o casamento civil, ou seja, na Serventia do Escrivão do Juiz de Paz. A obrigatoriedade aplicava-se ao registro dos proclamas (o antigo “banho marital”) em sede do Escrivão.[13]
E, por conseguinte, o art. 74 obrigava a feitura do registro de óbito como condição sine qua non para os sepultamentos quando determinou que:
“Nenhum enterramento se fará sem certidão do Escrivão de Paz do districto, em que se tiver dado o fallecimento. Essa certidão será expedida sem despacho (art. 38), depois de lavrado o respectivo assento do obito em vista de attestado de medico ou cirurgião, si o houver no logar do fallecimento, e, si o não houver, de duas pessoas qualificadas, que tenham presenciado ou verificado o óbito”. [14]
Assim, o Decreto Imperial nº 9.886 de 07 de março de 1888 estabeleceu a obrigatoriedade que entraria em vigor a partir de 01 de janeiro de 1889, já nos estertores da Monarquia. Ressalta-se o “fervedouro social e político” que o país se encontrava com a abolição da escravatura e a iminente derrocada do regime monárquico, que, mesmo cambaleante, ainda relutava, atendendo às demandas do poder temporal exercido por políticos “algozes do Dragão” (em alusão ao símbolo constante no brasão da dinastia dos Bragança) que defendiam a implantação da República.
Fato relevante tratar que a obrigatoriedade do registro dos atos vitais veio munida da onerosidade, sendo mais um fator de controvérsias e de instabilidade nada frugal na sociedade. Isso porque o referido Decreto determinava:
“Art. 42. Os Officiaes do registro e Secretarios das Camaras Municipaes cobrarão os seguintes emolumentos:
§ 1º Pelos registros, 500 réis.
§ 2º Pela annotação ou averbação de qualquer assento, na fórma dos arts. 29 e 30, 200 réis.
§ 3º Pelas certidões, 400 réis por lauda de 33 linhas, contendo cada linha 30 lettras, pelo menos.
§ 4º Pelas buscas, 200 réis por anno, contados os annos do segundo em diante, depois da data do assento. Em nenhum caso, porém, se cobrará, a titulo de busca, mais de 5$000; nem se cobrará mais de 500 réis, si a parte indicar o mez e o anno do assento”.[15]
À exceção ao pagamento das custas aos reconhecidamente pobres (art. 44), ficava a cargo de declaração de hipossuficiência emitida pelos Juízes de Paz, Subdelegados de Polícia ou pelos Vigários Paroquiais e Padres (integrantes da diocese) que, até então, haviam sido postos à margem desse processo transitório, mas que vinham se reorganizando internamente como “legítimos representantes da fé”, em consonância com a devoção religiosa da maioria esmagadora da população.
O “golpe de misericórdia” estava por vir. O momento escolhido foi, segundo Edgar Gomes, “o início da República, pois exerceu um maior controle da vida da população por parte do Estado” (Gomes, 2007, p. 74). Um dos primeiros atos atinentes ao registro civil do Marechal Deodoro da Fonseca, então Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, foi baixar o Decreto nº 113-D de 02 de janeiro de 1890[16] (posteriormente derrogado pelo Decreto nº 331 de 12 de abril 1890), para restaurar e reorganizar a Diretoria Geral de Estatística, criada pelo art. 2º da Lei nº 1829/1870 (Registro Civil), com o fito de “proceder com o segundo recenseamento da população dos Estados Unidos do Brazil”, avigorando a tese já sustentada de controle das prerrogativas dos atos vitais para usufruto do direito difuso[17] e interesse público.
Segundo o Diário de Notícias de 10 de janeiro 1890, que publicou a íntegra do aludido Decreto[18], consta como justificativa para o mesmo:
“(…) o recenciamento sendo indispensável para esses e outros fins da administração pública, reorganizar o serviço da estatística, que não póde continuar insufficientemente constituído como foi pelo decreto 8.341 de 17 de dezembro de 1881, mórmente depois da installação do importante registro civil dos nascimentos, casamentos e óbitos (…)” (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 10/01/1890).
Assim como as críticas da Igreja Católica aos intentos seculares haviam sido externadas no período monárquico, a mesma conduta passou a ser realizada pelo Estado republicano por intermédio das razões para os atos oficiais. As razões alegadas para a elaboração do primeiro censo da República e com o incremento dos registros civis os dados neles contidos tornariam mais eficazes, com volume de informações e dados mais específicos para o levantamento.
O combate continuou dias depois com o Decreto nº 119-A de 07 de janeiro 1890, que em seu art. 4, “extinguiu o padroado com todas as suas instituições recursos e prerrogativas”. Decreto esse pequeno materialmente (continha somente sete artigos), porém grandiloquente na extensão e consequência dos seus efeitos.
Passividade não pode ser confundida com subserviência. Garantir a inviolabilidade da ordem social foi o meio encontrado pela já reformulada Igreja Católica de, cristianamente, compor a unidade da sociedade, colocada sob a égide dos dispositivos constitucionais. A estratégia institucional adotada pela Igreja foi a de relativizar os caminhos tomados pelo Estado, sem confundir, como diria Godelier, “a racionalidade dos sistemas sociais e a intencionalidade dos indivíduos” (Godelier, 1974, p. 31-60). Na primeira Carta Pastoral Coletiva no período da República, em 1890, o episcopado expunha no fragmento a seguir:
“Exigir que o Estado legisle para os cidadãos, prescindindo do religioso respeito à autoridade da Igreja, a que estão sujeitos os mesmos cidadãos; e, vice-versa, querer que a Igreja exerça a sua jurisdição sobre os fiéis sem olhar sequer para o Estado de que são igualmente súditos os mesmos fiéis, é um sistema este, aos olhos do senso comum e da mais vulgar equidade, injusto em si e impossível na prática (…) A Igreja é indiferente a todas as formas de governo. Ela pensa que todas podem fazer a felicidade temporal dos povos, contando que estes e os que governam não desprezem a Religião” (CARTA PASTORAL COLETIVA, 19/03/1890 in Rodrigues, 1981, p. 50-54).
Em Campos dos Goytacazes, a imprensa reproduzia todas as “vitórias” que a Igreja Católica obtinha no campo legislativo, denotando a tendência do veículo que circulava diariamente no Município, sem concorrentes à altura, por ser tradicionalmente um dos jornais mais antigos do País e por ter caráter de “Diário Oficial”. No Monitor Campista consta o expediente de diversos órgãos públicos, como movimento de entrada, saída e permanência dos pacientes do Hospital da Santa Casa de Misericórdia, inclusive divulgando publicação das Estatísticas Paroquiais[19] dos assentos de batismo, casamento e óbito (no período final da Monarquia), bem como nos registros civis de pessoas naturais (no período do início da República).
Sobre a rejeição do projeto de emenda constitucional proposto em 1892, relativo à proibição da redação de testamentos pelo clero católico em território brasileiro, assim congratulou:
“Parabens aos catholicos e parabens ao bom senso! Inda se deparam na Camara dos Deputados dez homens com o cerebro equilibrado, que salvem os creditos do juizo nacional. A emenda que extinguia a legação do Vaticano, cahio por naquela Camara, sendo rejeitada por 63 votos contra 53. Nada mais significativo de quão violenta e revolucionaria era semelhante emenda, que até não logrou ser aceita pela maioria, apesar da sua composição fortemente impregnada de – cismontanismo e de positivismo comtista(…) O que maravilharia, é que a República que inculcou-se ás bençãos populares, como o regimen da igualdade e a proscritora das odiosidades dos privilegios, pretenda implantar o mais odioso dos privilegios, o privilegio da perseguição religiosa, o privilegio da opressão das consciencias, o privilegio da injustiça e da iniquidade, separando a Igreja do Estado para melhor violentar a fé da grande maioria nacional, que não conhece as obras de Comte, nunca vio a sua Clotilde de Vaux, e só conhece e adora á Jesus Christo, só conhece e pratica a religião da mais pura das mulheres, da mais santa das Virgens(…) Os que pretendem assim cortar relações com o chefe do catholicismo, nem mesmo se podem inculcar de republicanos e democratas, porque, não é a Igreja quem mais deve doer-se de taes despresos e violências, mas sim a familia brazileira, mas sim a mesma soberania nacional que ainda não abjurou, em favor de meia duzia do contistas ridiculos, a religião secular, sob cujos divinos auspicios constituio-se a nacionalidade brasileira (MONITOR CAMPISTA 14/08/1892).
Com essas “derrotas” inesperadas, o Estado se viu em uma situação de retomar as tratativas com a Igreja Católica para melhor governar o país, pois com a mudança da forma de resistência, os cidadãos, outrora súditos, passaram intrinsecamente a identificar a importância da retomada da aliança, agora sob termos republicanos.
O estado republicano logo se deu conta de que não podia dispensar a Igreja na sua função de direção moral da sociedade no interesse das oligarquias estaduais e da burguesia cafeeira, sendo a Primeira República um período muito importante para compreender como o catolicismo continuou desempenhando um papel decisivo na sociedade, não obstante os avanços da secularização (Gomes, 1998, p. 323). Com isso, o projeto de neocristandade proferido pela Carta Pastoral de Dom Sebastião Leme em 1916 que trata do ensino religioso obrigatório e organização da Ação Católica[20] englobou e incentivou também junto ao Estado, a reformulação dos atos vitais, quanto ao cumprimento das exigências legais e adequação das serventias de registro civil que passaram a adotar nos registros de casamento o Livro Auxiliar (B-Aux)[21] dos atos provenientes do casamento religioso.
CONCLUSÃO
O início da cidadania, reconhecimento e o fim da pessoa física no campo jurídico, consubstanciados pelos registros de nascimento, casamento e óbito, como foi visto, gera direitos e obrigações a partir do respectivo assento, bem como a ciência dos atos realizados pela Serventia ao Poder Público, titular da atribuição registrária, o qual designa a particulares dotados de fé pública o múnus publicum.
Ao determinar a obrigatoriedade do registro civil, o Estado viu-se obrigado a transigir novamente com a Igreja Católica, utilizando todo lastro moral que a religião exercia no País para, só assim, atingir a efetividade da lei. “A conciliação entre o altar e a igreja” gerou os almejados efeitos para pleitear a “reconstrução” da societas christiana.
Não obstante, parafraseando Edgar Gomes, conclui-se que a limitação do raio de ação da Igreja, imposto pela primeira Constituição republicana (1891), não foi nenhum mal pior do que tinha sido a ingerência do império liberal, maçônico e católico por conveniência (Gomes, 2008, p. 108). Não houve prisões, censuras e demais cerceamentos da prática religiosa, inclusas as dos não católicos. O Registro Civil de Pessoas Naturais ganhou nessa época a forma hodierna, dos atos complementares, da observância aos sacramentos inerentes aos atos vitais e da validade do registro passar pelos requisitos e pela fé pública do Oficial da Serventia.
O catolicismo chegou à década de 1920 do século passado com uma nova imagem, mais inserida na população brasileira que continuava predominantemente habitando as áreas rurais: “segundo o censo de 1920, apenas 16,6% da população vivia em cidades de 20 mil habitantes ou mais, e 70% se ocupava em atividades agrícolas” (Carvalho, 2007, p. 54).
A disputa pelo “controle do rebanho” que se passava pelo domínio dos atos vitais, sobremaneira nas regiões mais densamente povoadas, envolvia os fundamentos básicos para o exercício da cidadania na Primeira República, cuja disposição constitucional estabelecia a abrangência para atender uma sociedade que crescentemente estendia-se pelos rincões do Brasil.
Mas, a “vitória” da obrigatoriedade do registro civil instituída pelo Governo Provisório vigeu com a carência de estrutura de pessoal e espaço físico para efetivá-la em todo território nacional. Em contrapartida a Santa Sé, durante a vigência do padroado, estruturou-se em cada sede eclesiástica disseminando, ao passar dos anos, nos âmbitos rural e urbano, a ideia de salvação da alma pelos sacramentos. Em importantes regiões desprovidas de serventias, a Igreja Católica assegurava a sua presença, relativizando a eficácia da obrigatoriedade do registro civil. Na lacuna deixada pelo Oficial Registrador, agia o sacerdote. Assim:
“Em muitas regiões do Brasil, a grande distância geográfica, entre as localidades onde viviam as pessoas e aquelas onde ficavam os cartórios, dificultava a ida das pessoas aos estabelecimentos ou a ida do oficial do cartório até elas para realizar os registros. Portanto, esses serviços não chegaram a ser de fato universais e totalmente republicanos; e os registros vitais realizados pela Igreja continuaram tendo efeito legal ainda por vários anos durante a República” (Bassanezi, 2009, p. 156).
Em 1920, Rio de Janeiro também vivia esse problema, mesmo sendo ainda a “cidade mais industrializada do país” (Carvalho, 2007, p. 58), pois o gradativo crescimento do centro industrial de São Paulo e a pujança agrícola do interior da província (a exemplo de Campos dos Goytacazes), não fizeram o número absoluto dos operários industriais urbanos, superar os trabalhadores rurais.
Logo, devido às circunstâncias, o impacto dessas mudanças seculares foi limitado. Nas primeiras décadas da república, a secularização dos atos vitais não contemplou a maioria da população brasileira, tanto pelo aspecto geográfico quanto pelo pecuniário. Segundo Maria Silvia Bassanezi:
“Os próprios órgãos governamentais, muitas vezes, atribuíram mais confiança ao registro religioso de batismo, casamento ou óbito. Este atingia mais pessoas e localidades devido a infraestrutura montada pela Igreja no decorrer da Colônia e Império. Párocos e missionários periodicamente visitavam o território das localidades sob a sua responsabilidade para administrar os sacramentos” (Bassanezi, 2009, p. 156).
Essa “vantagem estrutural” da Igreja Católica seria um importante fator contribuinte para o realinhamento com o Estado, implicando no conjunto de determinações legais que definiram a competência secular na lavratura dos atos vitais, sem excluir a vigência dos registros paroquiais, que continuaram importantes e acessíveis na mentalidade de cada fiel. Ou seja, os sacramentos atribuídos aos atos vitais não foram suplantados pela fé pública do Oficial do Registro Civil e sim parte do importante processo de construção da identidade nacional.
NOTAS:
[1] Os atos vitais aqui abordados referem-se aos registros de batismo (nascimento), casamento e óbito, bem como todos os atos que deles derivam.
2 A rigor, o primeiro censo geral elaborado no Brasil, observando-se os métodos da moderna estatística, só foi realizado em 1872.
3 Totalizaram no contingente de estrangeiros do censo de 1872: os africanos livres e escravos (183 mil); portugueses (121 mil); e alemães (46 mil). (Alencastro; Renaux, 1997, p. 300).
4 Segundo Peter Ludwig Berger, secularização é “um processo através do qual alguns setores da sociedade e da cultura são retirados do domínio das instituições e dos símbolos religiosos, significando a perda da autoridade da religião, tanto ao nível institucional como no nível da consciência humana” (Apud Franco, 2015, p. 6).
5 Fé Pública, segundo Silvio Rodrigues, refere-se aos registros públicos, a escritura pública e outros atos lavrados em cartório pelos servidores da justiça: “Como goza ele de fé pública, presume-se que o conteúdo do documento seja verdadeiro, até prova em contrário.” (In: Direito Civil, Parte Geral, Vol.1, Saraiva, p. 268).
6 NEVES, Lúcia Maria B. M. Pereira das; MACHADO, Humberto Fernandes. O império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1999, p. 417-430.
7 Ganganelli, era o pseudônimo usado pelo jornalista e deputado Joaquim Saldanha Marinho.
8 Cf. Coleção das Leis do Império do Brasil (1874), Decreto n° 5.604, pp. 434 – 449.
9 BEVILAQUA, Clóvis. Direito de Família. Recife: Ed. Freitas Bastos, 1956, p. 33.
10 A definição jurídica de “legislação extravagante” se aplica às leis que regulam um setor da vida social, sem estarem dispostas em um código, no caso, Código Civil.
11 Coleção das Leis do Império do Brasil (1888).
12 Idem.
13 As leis analisadas não tratam do espaço físico no qual funcionaria o Registro Civil de Pessoas Naturais. A terminologia se aplica a pessoa competente pelo registro: Escrivão, Juiz de Paz, Oficial de Registro. A designação de “Cartório” foi unificada pela Lei nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973 (Lei dos Registros Públicos, vigente hodiernamente), referente à prática notarial e tabelionato; o registro civil de pessoas naturais; o registro civil de pessoas jurídicas; o registro de títulos e documentos; e o registro de imóveis.
14 Coleção das Leis do Império do Brasil (1888).
15 Idem.
16 BRASIL. Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil: 1-31 de janeiro, 1º fasc., p. 2-3, 1890, In: GONÇALVES. Jayci de Mattos. Memória Institucional nº 05. IBGE: Um Retrato Histórico. Rio de Janeiro: Ministério do Planejamento e Orçamento, 1995.
17 Segundo Marcus Cláudio Acquaviva no Dicionário Acadêmico de Direito, São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1999, p. 286, “Direito Difuso é uma prerrogativa jurídica cujos titulares são indeterminados, difusos. Um direito difuso é exercido por um e por todos, indistintamente, sendo seus maiores atributos a indeterminação e a indivisibilidade. É difuso, p. ex., o direito a um meio ambiente sadio.”
18 Consta impresso no Diário de Notícias erro material do número do Decreto relativo a reativação da Diretoria Geral de Estatística, pois o Decreto nº 114/1890 refere-se a entrância da Comarca de Santa Cruz do Rio Pardo, Estado de São Paulo e foi publicado no dia 03 de janeiro 1890. Portal da Legislação do Planalto: (http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-1/decretos1/anteriores-a-1960-decretos).
19 Constam no Jornal Monitor Campista, nos períodos analisados e disponíveis em acervo (1870 a 1872), os editais semanais de: Estatista Parochial do S. Salvador com os baptisados dos livres e cativos, assim como dos óbitos dos livres e cativos.
21 A escrituração dos registros civis de pessoas naturais é organizada da seguinte forma: Livro “A”- (e o número de ordem) é referente aos nascimentos; Livro “B” – (e o número de ordem), refere-se aos casamentos civis (em sede do cartório), assim como o Livro “B-Auxiliar” ou “B-Aux” – (e o número de ordem) são referentes aos casamentos religiosos, devidamente registrados no Cartório de RCPN (Registro Civil de Pessoas Naturais); e, o Livro “C” – (e o número de ordem), referem-se aos registros de óbitos.
FONTES PRIMÁRIAS IMPRESSAS:
Jornais
– Monitor Campista (Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho)
– O Apóstolo (Hemeroteca Digital – Biblioteca Nacional)
– Diário de Notícias (Hemeroteca Digital – Biblioteca Nacional)
– O Brazil (Hemeroteca Digital – Biblioteca Nacional)
Legislação
Coleção das Leis do Império do Brasil (1828-1888)
– Decreto Imperial de 1º de outubro de 1828
– Decreto nº 583 de 05 de setembro de 1850
– Decreto nº 798 de 18 de junho de 1851
– Decreto Legislativo nº 1.144 de 11 de setembro de 1861
– Lei nº 1.829 de 09 de setembro de 1870
– Decreto nº 5.604 de 25 de abril de 1874
– Decreto nº 5.993 de 17 de setembro de 1875
– Decreto Imperial nº 9.886 de 07 de março de 1888
Coleção de Leis e Carta na República (1890)
– Decreto nº 113-D de 02 de janeiro de 1890
– Decreto nº 119-A de 07 de janeiro de 1890
– Decreto nº 181 de 24 de janeiro de 1890
– Carta Pastoral Coletiva do Episcopado Brasileiro de 19 de março de1890
– Decreto nº 331 de 12 de abril 1890
– Decreto nº 789 de 27 de setembro de 1890
– Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891)
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[13] As leis analisadas não tratam do espaço físico no qual funcionaria o Registro Civil de Pessoas Naturais. A terminologia se aplica a pessoa competente pelo registro: Escrivão, Juiz de Paz, Oficial de Registro. A designação de “Cartório” foi unificada pela Lei nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973 (Lei dos Registros Públicos, vigente hodiernamente), referente à prática notarial e tabelionato; o registro civil de pessoas naturais; o registro civil de pessoas jurídicas; o registro de títulos e documentos; e o registro de imóveis.
O ano que agora termina não foi um ano feliz. Em 2020 a Peste matou milhares de pessoas, os sensatos se afastaram de seus familiares e amigos para preservá-los e se preservar, os insensatos se aglomeraram e alimentaram o monstro. Os rios secaram. Queimamos, deixamos queimar, nossas florestas; nuvens de gafanhotos se aproximaram da fronteira, continuamos a não poder saber quem mandou matar Marielle. A ignorância e a brutalidade pareceram ter tudo, e exacerbaram o orgulho de si mesmas. Neste ano não pudemos abraçar quem amamos, sequer pudemos velar nossos mortos. E assistimos, perplexos e enojados, aqueles a quem foram delegados poderes para liderar o país delirarem em negacionismo e pensarem apenas em seus interesses sórdidos. Tanta infâmia, tanta desgraça, remetem às pragas bíblicas tradicionais: águas contaminadas, insetos malignos, morte de animais, gafanhotos, granizo, seca. Há até um primogênito sob risco de prisão. Mas não foi nenhuma divindade que enviou o castigo, fomos nós, com nosso descuido, com nossas más escolhas, com o azar de termos dirigindo o país um incompetente, racista, misógino, homofóbico e ignorante, eleito legitimamente, com as mesmas urnas eletrônicas que procura sabotar. Somos melhores que isso tudo. Nossos pais, nossos avós, sobreviveram à crise da década de 1930, à segunda guerra mundial, à ditadura militar, à hiperinflação, sobrevivemos ao período de acomodação democrática em que as escolhas políticas se radicalizaram, – nós e eles – esquecendo que todos nós somos “nós”. Não somos, jamais seremos, “maricas” segundo a interpretação machista-cafajeste atribuída ao termo. Resistimos, resistiremos, essa pandemia vai passar, embora muitos façam tudo para que não passe, o custo humano e material será imenso, já está sendo, muitos sucumbiremos, não todos, mas os que sobreviverem terão aprendido alguma coisa. No final dos anos 1970, quando a ditadura militar estertorava, algum ideólogo de plantão pretendeu maquiá-la chamando-a de “democracia relativa”. As dúvidas foram muitas, sintetizadas em “relativa a quê?”, mas não puderam ser devidamente esclarecidas por que a relatividade se sobrepunha à democracia. No zoológico de São Paulo uma girafa deu à luz um filhote, e a primeira foto do rebento enterneceu o país; o cronista Lourenço Diaféria publicou em sua coluna na Folha de São Paulo: “uma girafinha alegra a vida, mesmo em uma democracia relativa”. Esta e outras “provocações” o levaram a ser preso e processado pelos heróis de nosso atual governante, os dias eram assim.
Quando parece não haver motivo para esperança e alegria, quando todo otimismo soa ingênuo, então é o momento de reaviva-los. As festas natalinas vêm de uma grande tradição, a Saturnália dos antigos romanos, o nascimento de Jesus em uma manjedoura, as festividades de solstício de inverno, o pinheiro eternamente verde dos povos germânicos, o presépio que nos foi legado pelos portugueses. Tudo sempre marcando a passagem de um tempo e o início de outro tempo, a renovação da natureza e das crenças e das pessoas. Tentemos acreditar, por nossas crianças, por nossos irmãos, por nós mesmos, não acabou, não vai acabar, estaremos melhor. A vacina, apesar de todos os desmandos, ignorância e fake news está próxima, países com governos dignos deste nome já estão administrando muitas delas a seus cidadãos, produtos mais autênticos da ciência e da tecnologia, mostrando que, assim como vencemos a poliomielite, o sarampo e muitas outras doenças que já atormentaram a humanidade, eliminaremos também essa. “Como dois e dois são quatro, sei que a vida vale a pena, mesmo que o pão seja caro e a liberdade pequena…” valia para o poeta Ferreira Gullar quando os tempos eram difíceis, vale para nós nesse tempo tão estranho e também difícil. Feliz Natal, e que o próximo ano seja melhor. O Natal também alegra a vida, mesmo em quarentena. Não vamos desistir de nossas tradições afetivas e emocionais, embora desta vez em ambiente mais restrito, com familiares e amigos à distância.