História da Alquimia: empirismo, ciência e arte

A alquimia sempre povoou o imaginário dos sujeitos ao longo da história, a começar pela busca da pedra filosofal ou a fonte da juventude, a própria História da Alquimia apresenta um rico universo com uma imensa variedade de obras e artigos. O tema, em questão, apresenta vários tópicos interessantes, como a relação entre alquimia e teoria da matéria, medicina, química, geologia e filosofia, outros recorreram às ferramentas da arte, da história, história religiosa e mesmo arqueologia para compreender a história da alquimia, ligando-a à história do corpo e da história da ciência, bem como à história da arte, literatura e cultura material. Em suma, os estudiosos da alquimia estavam engajados numa ampla e interdisciplinar gama de tópicos que se apresentavam, não apenas na história da ciência, mas também da arte, literatura e história social e cultural européia de forma ampla ou seja, a alquimia continua a ser um tópico particularmente importante para a história da ciência, arte e da filosofia, especialmente no início da Sociedade Moderna, período esse que produziu adeptos da alquimia algumas das figuras mais ilustres da ciência, incluindo Robert Boyle e Isaac Newton, ambos engajaram-se nos estudos da alquimia e várias formas intrincadas de elaboração matemática, buscando respostas as suas aflições intelectuais, na arte temos representações pictóricas em Hieronymus Bosch, Rembrandt, Goya, John Henry Fuseli e Willian Blake e na literatura temos feiticeiras e seres mágicos em William Shakespeare com Macbeth e Goethe com Fausto.  Para compreendermos a relação entre alquimia e ciência, temos que discutir o papel que o empirismo, no início da gênese do capitalismo, desempenhou como ponto de partida dos pensadores modernos, sendo assim, cada vez mais vem à tona que a alquimia aponta para a possibilidade de ampliar estudos que visam incorporar um amplo espectro de experimentadores e novas formas de conhecimento sobre a natureza em obras definidas como “nova ciência” no início período do Renascimento. 

Fonte: ROOB, Alexander, 2020

Concomitante livresca e experiencial, a alquimia era conhecida como um conjunto de conhecimentos empíricos e receitas, acumulados pelos precursores da química, porém como a medicina, a alquimia sempre foi tanto teórica quanto prática. Por outro lado, a alquimia tinha uma longa tradição textual, emergindo das penas de estudiosos que buscavam compreender as origens e os comportamentos dos metais e outras substâncias, o exemplo de transformar em ouro outras substâncias era um dos objetivos principais da alquimia. A alquimia surge na Antiguidade, provavelmente na Escola de Alexandria, onde os estudos alquímicos ligados ao núcleo de estudos aristotélicos, associados aos resultados obtidas empiricamente. Quando, por volta do século VII D.C., os árabes conquistam o Egito, a Síria e a Pérsia e trazem  para o Ocidente, particularmente à Espanha, os seus conhecimentos alquímicos, que passam então a ser difundidos, por meio de textos medievais, textos estes que apresentavam em seu núcleo, o corpus alquímico, um conjunto sofisticado de teorias, elaboradas em contextos do pensamento clássico, islâmico e cristão. Por outro lado, a alquimia têm raízes igualmente profundas no mundo do artesão/Demiurgo – isto é, dos destiladores, mineiros, ourives e boticários, trabalhadores cujo conhecimento de águas, álcoois, metais e minerais, bem como os equipamentos e processos necessários para trabalhar com estas substâncias, constituem o fundamento prático da alquimia. De muitas maneiras, o intelectual, o estudioso e o artesão são de diferentes classes sociais, bem antes do início da Sociedade Moderna na Europa e do surgimento da burguesia; porém, já no trabalho do alquimista, entretanto, esses mundos sempre estiveram unidos. Os praticantes alquímicos, freqüentemente consultavam livros e praticavam as teorias no laboratório; da mesma forma, receitas, descrições de processos e imagens de equipamentos de destilação encontraram modelos de experiências na consulta aos textos alquímicos. Sendo assim, o objetivo do artigo é discorrer sobre a história das práticas dos alquímicos e discutir uma abordagem que envolve as seguintes questões: Que tipo de sujeito praticava alquimia e qual o seu tipo de projeto? Como as pessoas aprenderam a fazer alquimia? Em que tipo de espaço os alquimistas trabalharam e que tipo de equipamento, e materiais eles utilizavam? Em suma, o que significava “fazer alquimia”? Responder a essas perguntas exigem do pesquisador procurar novas fontes, incluindo cadernos de anotações de laboratório, documentos que descrevem o trabalho alquímico e artefatos arqueológicos.

Fonte: ROOB, Alexander, 2020

 Junto com os textos clássicos, como tratados alquímicos, essas fontes mais recentes permitiram que os estudiosos produzissem uma compreensão da alquimia como um produto social e cultural de uma determinada época. Então, podemos perguntar, o que significava praticar a alquimia no início da Sociedade Moderna na Europa? Na obra “Alquimia e Misticismo”, de Alexander Roob (2020), o autor pretende responder ao apresentar o chamado “Museu Hermético”, a obra propõe discorrer sobre o universo ilustrado da alquimia, desde do cosmorama medieval até a arte romântica na Europa.

Para Roob (2020), a alquimia era pelo menos, em parte, uma prática textual e mística. Como um repositório de teoria alquímica, as informações sobre processos e, potencialmente, segredos preciosos, o corpus alquímico, ofereceram um recurso importante, embora complexo, para muitos estudantes e praticantes de alquimia. Muitos alquimistas da Baixa Idade Média e do início do Renascimento compartilhavam a intuição de seus contemporâneos, o de olhar para o passado em busca de conhecimento confiável, de certa forma canônico, localizando os fundamentos da alquimia em escritos atribuídos (embora às vezes de forma pseudônima) a adeptos de séculos passados. Segundo King (1996, p. 13):

“A meados do século XV foram redescobertos os textos herméticos, quando um monge levou a Cosme de Médicis, Marsílio Ficino, tinha ainda sem terminar a tradução completa de Platão, deu prioridade ao Corpus Hermeticum; e entre 1463, data da versão de Ficino, e o final do século seguinte, foram impressas nada menos que 16 edições.”

O estudo da alquimia, portanto, frequentemente começava com a coleta e o escrutínio de textos antigos em várias bibliotecas e monastérios espalhados na Europa e no Oriente Médio. No início do período moderno, um crescente número de novos textos, tanto em latim, árabe, quanto em vernáculo, começaram a superar os cânones antigos. Tratados contemporâneos, comentários, poesia alquímica e fragmentos de receitas prometiam novas ideias e concepções sobre a alquimia, interessando os primeiros leitores modernos e adicionando há já longa lista de textos antigos. O processo de coletar, avaliar, comparar e comentar todos esses textos envolveram muitos alquimistas e adeptos da alquimia, assim como qualquer pessoa interessada em descobrir os segredos da natureza, ou seja, os textos alquímicos não eram tão simples de se trabalhar ou compreender, eram textos denominados herméticos. Esses textos herméticos eram preenchidos com linguagem altamente alegórica, usavam codinomes para determinadas substâncias ou empregavam outras técnicas de ocultação para evitar que segredos alquímicos caíssem em mãos “erradas”. Além da “confusão terminológica” resultante, qualquer pessoa que colecione textos alquímicos teria que lidar com uma variedade desconcertante de gêneros e formas: misturas de receitas vernáculas, trechos descontextualizados de tratados, série de imagens e iconografias representando processos alquímicos, poesia alquímica, fragmentos de manuscritos, muitas vezes anônimos, e fragmentos de textos de segunda mão supostamente recolhidos por adeptos misteriosos ou outros praticantes. O que fazer com todos esses pedaços e peças, especialmente se cada um tinha o potencial de revelar um segredo valioso, como o verdadeiro método de preparar a pedra filosofal ou manter o fogo na temperatura adequada? 

Roob (2020) aponta que, como leitores, compiladores e tomadores de notas às voltas com uma tradição textual complicada, os alquimistas têm um lugar importante na história da erudição, da leitura e da construção de formas particularmente antigas de conhecimento científico.

Os alquimistas raramente liam e escreviam sobre alquimia sem antes passar pela experiência, entretanto; eles coletavam, comparavam e organizavam fragmentos de texto a fim de localizar elixires e métodos de processos alquímicos, testar teorias e colocar em prática experiências com os vários tipos de metais. Uma série de estudos recentes, segundo Roob (2020), os alquimistas concebiam a natureza nas suas múltiplas facetas, como uma espécie de escrita cifrada, um imenso criptograma com o propósito de ser desvendado por determinadas técnicas, portanto, os alquímicos exploraram de forma constante a relação entre os textos e a prática alquímica. O objetivo do envolvimento com a natureza – na verdade, a própria prova de que o praticante havia alcançado certo conhecimento – era a produção de elementos, particularmente  elementos que poderiam imitar os próprios poderes criativos da natureza, ligando-se a máxima da relação entre o saber e o fazer.

Em suma, o objetivo principal, na maioria dos casos, não era contribuir para a produção de uma teoria alquímica, seja em manuscrito ou impresso, mas, sim, usar a alquimia para produzir novos elementos, sejam eles elixires, metais preciosos ou pedras preciosas, além de desvendar o microcosmo e o macrocosmo. Portanto, esta ênfase em produzir elementos ligando a alquimia textual à cultura artesanal e comercial das primeiras cidades europeias modernas, levaram os alquimista, frequentemente a se juntavam aos seus colegas artesãos na esperança de que sua experiência no trabalho, com materiais ou metais, proporcionassem vida ou anima. Lembrando, que a prática da alquimia diferia de outros ofícios, por não ser organizada em guildas, o comércio de segredos alquímicos, incluiu a alquimia à crescente cultura comercial do início da Sociedade Moderna. Como fornecedores de técnicas, práticas, invenções e curas, os alquimistas também eram apreciados por mecenas principescos, que os empregavam para desenvolver práticas de cura, invenções e aumentar as suas fortunas. Portanto, muitos dos alquimistas, trabalhavam não apenas nas cidades, mas também na corte de um determinado príncipe ou rei, assumindo cargos assalariados para produzir elixires em laboratórios alquímicos ou assumindo projetos arriscados em um esforço para sustentar as práticas alquímicas.

Os praticantes da alquimia também atribuíam outros significados ao seu trabalho experimental, Segundo Roob (2020), os químicos dos experimentos laboratoriais como Andreas Libavius,  procuravam aperfeiçoar os princípios empíricos da alquimia, aproximando-a desse modo dessa forma da química analítica, ora esta multivalência da alquimia, de fato, é precisamente o ponto, e emerge mais claramente dos estudos sobre a história da alquimia.

No início do período moderno, os sujeitos podiam se envolver com a alquimia como estudiosos, artesãos, pastores, mecenas e burgueses, situando-se em uma variedade de espaços sociais e culturais. Na ausência de guildas ou de um sistema de licenciamento para estabelecer normas e policiar os limites da prática “legítima”, a alquimia permaneceu acessível a pessoas de quase todos as classes sociais, além disso, essa falta de regulamentação garantiu que a alquimia fosse maleável o suficiente para permitir que alquimistas e seus mecenas improvisassem quando construíssem laboratórios, avaliassem as habilidades dos praticantes. Contudo, essa abordagem foi crucial para colocar a alquimia  na paisagem social, cultural e intelectual da história européia, ligando-a ao comércio, à cultura urbana, às demandas da Reforma e assim por diante. Roob  (2020) aponta a diferença entre os alquimistas teosóficos, ligados a Rosa Cruz, e os da prática laboratorial, de um lado, profundamente imersos no trabalho de classificar os ricos e variados vestígios textuais de compromissos antigos e contemporâneos com a alquimia, e aqueles que se engajaram na alquimia experimental, com o intuito de produzir elixires, águas, a pedra filosofal e outros produtos alquímicos. Para King (1996, p. 55): 

“A alquimia manteve sempre estreita relação com a magia ritual. Alguns Magos consideraram um mero ramo da magia, alegando que o alquimista que preparasse a pedra filosofal estaria simplesmente purificando a matéria inferior, do mesmo que o celebrante de um ritual de iniciação purifica o candidato.”

Frances Yates (2007) lembra que a intenção dos folhetos rosa-cruciamos era estimular o espírito pesquisador, por meio de alegorias, apoiar politicamente os protestantes do Palatino. Contudo, a maioria dos alquimistas ficavam em algum ponto intermediário, entre os dois mundos, entre textos e experiências, entre realizações tecnológicas e as experiências práticas com os componentes espirituais e mágicos.

Essa ênfase na integração de textos e experimentação alquímica, juntamente com o reconhecimento do amplo espectro de compromissos com a alquimia, restituiu a alquimia na historiografia graças ao trabalho da historiadora Francis Yates (1899-1981), já citada, ou seja, a alquimia habitou o reino interdisciplinar da história intelectual do Renascimento, ligada aos estudos de hermetismo, magia natural, arte, literatura e “filosofia oculta”, memória, a ênfase na experiência deixou claro não apenas que a alquimia compartilhava muito com a história da química e da medicina, mas também envolveu sujeitos de diferentes classes sociais, do artesão ao aristocrata e burguês , todos contribuíram na  expansão da cultura impressa, no surgimento da ciência moderna e de novas formas de comércio, produzindo uma nova forma de perceber a natureza e sua relação com o homem, transformando a relação entre empirismo e ciência, impactando nas artes e produzindo efeitos duradouros em várias áreas. Os estudiosos agora reconhecem amplamente que qualquer história da alquimia deve levar em consideração a relação dos fundamentos teóricos e experimentais. Portanto, se desejamos compreender o desenvolvimento do conhecimento sobre a natureza no início da Sociedade Moderna, devemos resgatar o papel da alquimia na gênese do capitalismo e sua relação com o surgimento da ciência moderna.

Referências

DANGELMAIER, Ruth. Bosch. Paris: Könemann, 2018.

KING, Francis. Magia. Portugal: Ediciones del Prado, 1996.

ROOB, Alexander. Alquimia & Misticismo: O museu hermético. Portugal: Taschen, 2020.

YATES, Frances A. A arte da memória. Campinas: Ed. Da Unicamp, 2007.

A ARTE É INSIGNIFICANTE

Obviamente, o título deste artigo é exagerado. Alguns diriam até que incorre em grave erro. Mas sua função aqui é, justamente, levantar uma questão muito importante com relação àquilo que a arte comunica e como se dá essa comunicação.

Além das preocupações quanto a comunicabilidade dos signos e de suas linguagens, a semiótica contemporânea vem se debruçando sobre as diferenças e semelhanças entre a significação lógica e a fruição estética. Há quem ainda sustente o dogma, segundo o qual não é possível comunicar algo entre duas ou mais pessoas, sem a troca e interpretação de signos agrupados em textos/discursos. A maior parte dos grandes pensadores ocidentais ocupou-se em alguma medida com o problema da significação, uma vez que a criação e transmissão de ideias provêm, em boa medida, de sinais codificados pela cultura, aos quais se dão significados arbitrários, de modo que eles possam ser vetores de pensamentos socialmente partilhados.

Para descrever a comunicação de ideias, desde Platão e Aristóteles, até nossos dias, utilizamos o conceito de “relação sígnica”, composto pelo objeto (de que se faz menção), pelo signo (que faz menção do objeto) e pelo intérprete/leitor (que menciona algo sobre o objeto por meio do signo). Este modelo geral de significação foi concebido tendo como base a linguagem verbal.

 

[Na] Grécia clássica a necessidade de um vocabulário técnico e conceitual para ser usado na análise lógica das proposições resultou num sistema das partes do discurso [verbal] que acabou tendo um desenvolvimento que ultrapassou em muito as exigências imediatas dos filósofos… (WEEDWOOD, 2002, p. 17)

 

Com os signos arbitrários, relacionados entre si por meio de regras de subordinação, sintagma e posição (códigos gramaticais), os pensadores gregos já “regularizavam” o mundo real, agrupando os fenômenos e objetos em categorias e gêneros conceituais. Esse foi, e continua sendo, o uso mais corrente do signo, que serve como um modelo abstrato do mundo real a serviço da lógica do intérprete.

Quando a Grécia foi dominada por Roma, sua filosofia e sua gramática já estavam tão desenvolvidas, que serviram de base para dotar o latim com uma gramaticalidade (logicidade) extremamente eficiente. E desde Roma, até a idade média, o latim foi a língua de toda a intelectualidade e erudição – a língua internacional que unia todos os cristãos letrados, assim como a língua mais bem descrita à disposição do linguista e do filósofo.

Na baixa idade média, contudo, as línguas vernaculares nacionais começaram a ser escritas e a florescer sua literatura. Em razão disso, surge a necessidade de fornecer ao vernáculo uma gramática de boa procedência, que enriquecesse as significações da língua nacional.

Desse modo, a lógica gramatical das línguas vernáculas foi basicamente erigida a partir do latim. Daí segue o fato de que a cosmovisão (teologia) dos gramáticos medievais, vinculados à igreja e inspirados na antiguidade greco-romana, proveu as línguas vernaculares europeias de toda a lógica clássica platônica e aristotélica (metafísica), que até hoje podem ser encontradas nas regras gramaticais ensinadas nas escolas. Mas,

 

… a tradição ocidental é marcada por uma importante e irreversível mudança de direção que ocorreu durante o século XV. A linguística, como todos os outros campos da atividade intelectual, teve seu caráter fundamentalmente alterado no renascimento. (…) Uma divisão entre linguística pré-renascentista e pós-renascentista é, quase sempre, mais adequada. (WEEDWOOD, 2002, p. 23)

 

O século XV testemunhou numa profunda ruptura na logicidade gramatical das línguas europeias, por conta da proliferação de livros impressos com a invenção da tipografia por J. Gutenberg. Contando então com muito mais leitores, as línguas vernáculas já dispunham de muitas histórias, relatos, filosofias, estudos religiosos, romances e poesias formando um inimaginável mercado editorial, a partir do século XVI. Para dar conta de tamanha expansão das letras, as gramáticas nacionais tornaram-se ainda mais lógicas, mais formais, mais objetivas, mais minuciosas, de modo a sustentar os variadíssimos tipos de textos que saltavam sôfregos das prensas europeias e americanas. A partir do renascimento, passando pelo iluminismo, até a contemporaneidade, o livro se tornou, então, a grande mídia do ocidente – um veículo privilegiado da lógica linguística, que vai pastorear toda a ciência, filosofia e outros ramos da atividade intelectual, até o século XX. Entretanto, o poder da palavra não deixou de ser eventualmente criticado, ao longo dos séculos.

 

Guilherme de Occam (c. 1285-1349), por exemplo, foi um dos pensadores que negou a existência de qualquer conexão intrínseca entre palavras e realidade. (…) A língua, concluiu Occam, não serve como um espelho da cognição ou da realidade exterior; seria muitíssimo melhor estudar diretamente o pensamento – ou a realidade –, dispensando a mediação traiçoeira da linguagem.” (WEEDWOOD, 2002, p. 59)

 

Hoje, nos habituamos a aceitar que a palavra não representa, nem significa (não é signo de…) um objeto, mas uma ideia, um conceito abstrato (genérico e categorial) acerca do objeto. A lógica da representação (significação) reside na regularidade (padrão, norma) com que a convenção plasma as ideias dos objetos sob sua análise/leitura. A lógica, portanto, é uma simulação (no interior das linguagens) da ordem que se crê haver no mundo real. Assim, ao buscar por uma mimesis ideal da natureza, a ordem linguística supõe um valor universal.

Entretanto, apesar da simulação ser eficiente, ela não abrange a totalidade dos fenômenos representados. E pelo fato da simulação (significação) ser incompleta, emerge a forte impressão de que o mundo real não pode ser coberto pela lógica. Grandes extensões da realidade escapam à normatização, padronização, unificação e universalização empreendidas pela lógica da representação.

A parte do mundo real que não pode ser representada pelos conceitos universalizantes é formada por um conjunto de diferenças (que se opõem às identidades conceituais), singularidades e de seus acidentes, que ocorrem fora da norma (lógica, conceito). Uma diferença contém acidentes que a individualizam diante de uma categoria, impedindo-a de se transformar em conceito (representação de uma norma). Essas diferenças, singularidades e seus acidentes são sinais do mundo real, detectados por meio das percepções e sentidos (sensação = aisthesis) humanos. Enquanto o conceito é sempre uma abstração identitária, uma singularidade tem relações mais íntimas com a materialidade e concretude do mundo real.

Como define Charles S. PEIRCE (2003, p. 46), o signo é aquilo que representa algo para alguém. Ou seja, o signo precisa ser algo materialmente detectável (pelos sentidos humanos), utilizado como representação de algo (objeto), para alguém (o intérprete do signo). O processo de significação é uma pergunta que se faz ao sinal percebido pelos sentidos (o que significa isto?). Para as linguagens lógicas, o sinal percebido já foi antecipadamente convencionado para representar um conceito genérico do objeto. Ex.: o signo verbal “mesa” não representa uma mesa singular, mas o conceito categorial do objeto-mesa.

O objeto das linguagens lógicas pode ser representado por signos, porque se referem ao objeto/fenômeno em decorrência de uma convenção ou lei. Entretanto, as coisas que são percebidas como singulares, não podem ser significadas ou representadas por um conceito abstrato, deduzido de uma norma categorial. Há sinais percebidos pelos sentidos que não chegam a significar (representar) o conceito de alguma coisa. Mesmo assim, não deixa de haver nesse processo uma operação cognitiva. Embora não seja uma operação lógico-cognitiva, trata-se de uma operação estético-cognitiva.

Enquanto a logicidade forma o conjunto das qualidades do objeto/fenômeno que podem ser representadas ou significadas por conceitos abstratos universalizantes, a esteticidade é o conjunto de qualidades singulares (concretas, materiais, a-normais e in-significantes) que não se submetem às generalizações, uniformidades e padronizações abstratas e conceituais. Se a lógica busca antever os movimentos padronizados do mundo real, empregando generalizações abstratas para simular a normalidade (leis naturais) na mente, a estética é a cognição do singular, por meio da percepção dos sentidos, que gera o conhecimento sensível (cognitio sensitiva) das coisas. Desse modo, para além das fronteiras da lógica, tem início o campo da estética. Lógica e estética não são contraditórias, mas complementares.

A esteticidade das coisas provém de sua materialidade, cuja manifestação depende do tipo de sensação produzida no intérprete-fruidor, diante da presença da coisa (ou de sua reprodução). Melhor dizendo, enquanto o signo lógico (representativo) pode significar seu objeto sem que este esteja presente, a cognição sensível só é possível diante da presença real (ou virtual) da coisa.

Logo, não pode haver “signo estético” que não seja a coisa mesma (um singular); não há qualquer signo que represente (o conceito de) uma obra de arte. Nesse sentido, a obra de arte é única: pode-se reproduzi-la, mas não se pode representá-la (ou conceituá-la). Por exemplo: a crítica especializada de uma apresentação musical, a descrição dos atributos de uma pintura, o comentário sobre uma representação teatral, por mais profundos e pertinentes que sejam, não são signos dessas obras de arte, nem as representam.

Não é por meio de signos representativos (lógicos) que a obra de arte comunica seus sentidos, mas pelos efeitos estéticos e patêmicos causados por sua presença real (ou virtual) diante da percepção do fruidor.

O sentido lógico do signo representativo não ocorre nas coisas materiais, porque a significação lógica opera no signo (separado) das coisas, para gerar uma representação abstrata dessas últimas. Já que a lógica essencialista não lida de maneira imediata com as coisas, o signo lógico manipula conceitos (sobre os objetos) que podem ser articulados em sistemas semióticos. Os textos lógicos são histórias acerca dos objetos, emitidas por usuários da linguagem, conforme o tempo e o lugar.

Diferentemente, a cognição sensível (estética) não provém de duas entidades separadas (signo + objeto), mas constrói-se na presença real (ou virtual) da própria coisa, pela afetividade gerada na recepção. Ao contrário do signo lógico, que comunica uma norma de maneira objetiva e convencional, a obra de arte é um singular que não pode ser convencionado, por se tratar de um conjunto de acidentes concretos que ocorre fora da norma abstrata.

A lógica busca sempre pelo conteúdo, que pode ser representado por signos e textos codificados, para construir uma ideologia sobre o mundo real. A esteticidade, por seu turno, resulta da cognição sensível (aisthesis) operada apenas na presença da forma real (ou virtual) da coisa (artística ou não). Desse modo, a estética tende a privilegiar a forma.

Forma e conteúdo, na cultura, não são contraditórios, mas complementares.

Havia um mito na modernidade, segundo o qual o projeto racionalista (fruto da cultura letrada) tinha por finalidade de conduzir a humanidade a uma sociedade perfeita, isto é, ao império da razão. O signo lógico é, de fato, “teleológico”, uma vez que ele tem sempre uma finalidade, qual seja a de representar (a priori) o conceito de um objeto – trata-se de um pré-conceito antecipado por convenção. A lógica, assim entendida, é o a priori da física, ou seja, a lógica é uma espécie de “metafísica”. E como uma metafísica, a lógica tende a apreender o mundo físico aprioristicamente, de modo a ordená-lo por gêneros, a antecipá-lo por conceituação, isto é, a recriá-lo idealmente.

Ao invés disso, a esteticidade das coisas não pode ser prevista, porque ela não ocorre antecipadamente – trata-se de uma forma concreta existente no espaço-tempo –, mas apenas no momento mesmo em que é experimentada pelo fruidor. Assim, a esteticidade das coisas (ex.: obra de arte) não pode ser teleológica, não tem finalidade no horizonte, por ser uma experiência presencial – e não uma reflexão. A estética, mais vinculada ao singular, é uma forma de ‘física’ que tende a apreender o mundo fenomênica e empiricamente.

O registro das palavras e dos números (manuscrito ou impresso) foi por milênios a mídia mais econômica e eficiente para criar e transmitir conhecimentos conteudísticos. A formação cultural do ocidente é tributária da escrita verbal (e matemática), portanto, nada mais compreensível do que a longa hegemonia do pensamento lógico-abstrato sobre a manifestação estética das formas.

Para os zelosos guardiões da cultura letrada, o surgimento das mídias audiovisuais, a partir do século XIX, se transformou no vaticínio de um amargo retrocesso, por que não comunicam só conceitos, mas também a manifestação sensacional (lat.: sensatio) das formas singulares. Por não ter conteúdo convencionado linguisticamente (ou matematicamente), a esteticidade das coisas não pode ser “explicada”, isto é, não pode ser logicizada; mas apenas experimentada – fruída pelo perceptor, a partir de sua presença física ou virtualizada pelas mídias audiovisuais. A esteticidade provoca uma quebra da ordem probabilística da lógica, por que está vinculada à originalidade do singular. Essa originalidade da mensagem estética depende da criatividade que, por sua vez, só ocorre na medida em que se rompem com as regras, normas, uniformidades.

Diferentemente da cognição lógica, cujo objetivo é transcender os fenômenos para dar-lhes uma ordenação hierárquica para além de suas ocorrências concretas, a cognição estética visa apreender os dados concretos dos fenômenos, fruindo-os por meio da experiência subjetiva direta. Existe esteticidade em toda experiência humana de percepção de formas como, por exemplo, nos gestos desencadeados por um esporte, pela comunicação corporal, pelo passeio tátil das mãos sobre um corpo, pela audição de uma música ou pelo impacto de uma imagem. A comunicação estética não está sempre vinculada à arte, assim como o som não está sempre vinculado à música.

Para a abordagem semiótica da arte é preciso considerar a definição e diferenciação entre a percepção, a percepção estética e a percepção estética da obra de arte (ECO, 2002, p. 232). Eco define o evento estético como uma manipulação da forma que provoca um reajustamento do conteúdo, levando, por fim, a uma mutação de código e mesmo a uma mutação de visão de mundo. Daí a possibilidade de a estética constituir outros modos de conhecimento socialmente relevantes, inclusive para além da esfera das artes.

A ideia logocêntrica de que as artes servem tão-somente para produzir deleite, guarda resquícios de um preconceito da lógica universalista contra as manifestações singulares. O prazer gerado pela experiência estética (catarse) provém da ruptura em relação à convencionalidade – trata-se de um efeito colateral provocado pela libertação da lógica.

Por outro lado, a experiência estética também é um poderoso meio de investigação e inferência do real, podendo oferecer à lógica muitos elementos de análise crítica, aos quais o pensamento abstrato não tem acesso por meio de deduções e antecipações categoriais. A experiência estética em geral (e a arte em específico) desenvolve outro modo de conhecimento, que não se baseia no logos, mas na aisthesis. Os conhecimentos advindos da fruição estética não são sistematizáveis por meio de inferências lógicas, nem traduzíveis em conceitos categoriais abstratos, porque são frutos da cognição provocada pela presença real (ou virtual) de artefatos análogos (objetiva e/ou subjetivamente) aos fenômenos encontráveis na natureza e na cultura.

É óbvio, então, que a aquisição de conhecimento legítimo acerca do mundo real, tendo por base a investigação estética, depende de uma cognição ana-lógica, vinculada à observação da forma dos fenômenos. Assim, toda forma reconhecida pela cultura pode ser analisada sob o ponto de vista de sua esteticidade, tanto quanto de sua logicidade. Melhor dizendo, os textos culturais (compostos de signos lógicos e sinais estéticos) estão mesclados de logicidade e esteticidade, de modo que só a gradação (+ lógico ou + estético) é que “separa” a ciência, a filosofia, da arte.

Conclusão – é preciso ter em mente que até o século XIX, o registro e comunicação das linguagens lógicas (verbal e matemática) eram mais econômicos e, por conta disso, toda a cultura ocidental beneficiou-se de livros que formavam conceitos, ideias abstratas, representações e outros conteúdos. No entanto, a partir da invenção da fotografia (1829), até a Internet (1991), vieram à luz outras mídias capazes de registrar e comunicar imagens e sons em movimento, ou seja, formas e aparências físicas das coisas.

Com o advento das mídias audiovisuais, a forma estética pôde, finalmente, ter seu registro reproduzido. A reprodução virtual de singulares e acidentes (imagens icônicas, sonoras e cinestésicas) processada pelas mídias audiovisuais pode, agora, ser também compreendida como a representação da esteticidade das coisas. O pôster da Monalisa é uma forma midiática do quadro pintado por Leonardo Da Vinci, mas não é uma descrição ou um conceito abstrato acerca do quadro – o cartaz é o próprio quadro virtualmente reproduzido e colocado diante da percepção do fruidor. Embora não seja a mesma coisa que o original, tem caráter estético, e se trata de um análogo.

Se, no passado, o que prevalecia era a comunicação lógica das palavras e números, deixando ao campo da forma (estética) uma pequena participação no âmbito da arte (tutelada pela lógica linguística), com o advento das mídias audiovisuais o campo da forma ganha capacidade de comunicar sua esteticidade.

Enquanto o registro da escrita era restrito à elite, não exercia influência em toda a sociedade, que se pautava pela oralidade secundária (influenciada pela elite letrada). A partir de Gutenberg, o registro da escrita se democratizou, permitindo que a sociedade como um todo entrasse na era do letramento, gestor histórico do renascimento, do iluminismo e da modernidade.

No século XIX, surgem os registros das linguagens audiovisuais, mas enquanto esse registro era raro e oneroso, somente uma “elite” produtora dominava sua emissão. Entretanto, o consumo das formas audiovisuais se popularizou e em fins do século XX, com o advento da tecnologia digital, o registro das linguagens audiovisuais pôde ser democratizado, permitindo – à semelhança com a alfabetização geral nos séculos anteriores – que a sociedade contemporânea possa (re)produzir seus audiovisuais, inaugurando uma nova era cultural.

 

Referências

 

ECO, U. Tratado geral de semiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.

PEIRCE, C. S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.

WEEDWOOD, B. História concisa da linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2002.

Estética: uma palavra, muitas definições

ESTÉTICA: UMA PALAVRA, MUITAS INDEFINIÇÕES

É com imensa satisfação que escrevo aqui minha primeira coluna na Contemporartes, após um convite irrecusável de nossa amiga Drª Vanisse Simone, com o caloroso endosso dos demais componentes do site, cuja acolhida muito me honrou. Como combinado, vou desenvolver na coluna COGNITIO SENSITIVA, variados temas relacionados com a estética, mas do ponto de vista das teorias do conhecimento, além de assuntos correlatos. Espero poder entusiasmar nossos leitores com perspectivas inusuais, tais como entender a estética a partir de um conhecimento autônomo e independente da filosofia.

Saudações!

Simetria, harmonia, proporção e ritmo perfazem os principais critérios estabelecidos entre os antigos gregos para a definição do que lhes representava a beleza, assim como também a verdade, à maneira de Platão. Uma das clássicas definições de verdade se apresenta como o resultado da mais feliz adequação do pensamento às instâncias do real.
Desde os antigos gregos, a ideia de verdade guarda uma estreita relação com a ordem das letras e dos números. A ideia de que o belo reside em determinados padrões geométricos provém da crença racional de que a verdade é bela, e a beleza só existe na verdade, de modo que ambas (verdade e beleza) produzem o bem. Daqui nasce a trindade platônica formada pelo bem, o belo e a razão (verdade). Constituída por essa tríade metafísica que permeia o senso comum ocidental, nossa percepção da beleza vinculou-se à necessidade de medir e ordenar um mundo melhor.
No entanto, essa relação triangular pouco tem a ver com a estética.
Quando não se tem uma noção precisa do que uma palavra significa, geralmente a transformamos num saco sem fundo onde cabem muitos significados e sentidos. ‘Estética’ é um desses ônibus semântico, com inúmeras definições não conflitivas, devido ao enorme espaço semiótico em que habita. No entanto, se quisermos saciar a curiosidade acerca dos significados possíveis da palavra ‘estética’, devemos iniciar por sua origem etimológica. ‘Estética’ é um termo criado por Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762), a partir da palavra grega “aísthesis”, que traz o significado de conhecimento do mundo por meio das percepções. Para Baumgarten, a estética é um estudo da sensibilidade como um tipo de cognição – a cognição das coisas particulares, ao invés de conceitos abstratos.
Esse pensador alemão entendeu a estética como uma disciplina técnica capaz de produzir conhecimentos “análogos aos da razão”. De acordo com esta noção de estética, as ‘aparências’ artísticas abandonam seu status de meras ilusões em contraposição às representações lógicas do intelecto, para almejar um caráter de manifestações de verdades e valores essenciais.
O “outro” da razão – o analogon rationis, de que fala Baumgarten –, não pode ser proferido pela lógica linguística ou matemática, por que produz e comunica um pensamento que, semanticamente, está destituído de sentido. O ‘sentido’ formado pela lógica se refere à direção para qual os signos da linguagem apontam seus significados. Elementos estéticos não têm sentido, porque não remetem significados para fora de sua própria estrutura.
Como um conjunto de conhecimentos perceptivos e sensíveis – fruto da experiência do corpo no mundo –, a estética nasce humanista, na medida em que empresta à corporeidade considerável importância na constituição do conhecimento, afastando-se das crenças racionalistas acerca de um suposto vínculo do pensamento com o plano transcendente das ideias universais.
Até o século XVIII, o predomínio de um platonismo teologizado nas filosofias da arte compelia o ocidente a um julgamento do gosto por critérios idealistas da beleza, atada à verdade e à razão. Àquela filosofia da arte cumpria erigir proposições universais que visavam colocar a poética a serviço da evocação do sublime, com o auxílio luxuoso da mimesis, a metateoria da arte ocidental. Os padrões gerais de critério do gosto e da beleza serviam para distinguir e classificar a arte modelar (erudita), em oposição às artes populares ou não-ocidentais, elegendo o eurocentrismo como padrão universal.
Tais ideias acerca da arte, que ainda vigem no século XIX, são resquícios de um platonismo difuso que orientou os diversos idealismos a formar seus valores nos altos nimbos abstratos da razão. Porém, desde Baumgarten, a estética não pode mais ser apenas uma disciplina do critério do gosto e do belo. A estética tradicional que insistia na “sublimação purificadora da arte” não fazia mais do que avaliar o grau de fidelidade da obra em relação aos cânones (modelos abstratos) impostos de antemão, enquanto aplicava o anestésico semântico da crítica, insensibilizando a experiência estética, para reduzi-la à verdade.
Por esse tempo, a arte foi vítima da soberba intelectual, que se acreditou capaz de encontrar nela leis e ordens universais independentes da ação humana. Os cânones que um dia ordenaram a práxis artística no ocidente nunca tiveram algo de natural ou de objetivo – ao contrário, sempre foram interpretações arbitrárias, sujeitas ao modo de ver de cada grupo, tempo e sociedade. Como escreveu em seu livro “Contra a interpretação”, Susan Sontag afirma: “a interpretação é a vingança do intelecto contra a arte”.
Mas, a arte, como qualquer outra experiência estética, é uma projeção da sensibilidade humana, ela não gera vínculos com planos transcendentes, porém é sempre um marco da manifestação de estranhamento que o humano experimenta diante do mundo realmente existente.
O rastro deixado na história do pensamento pelo modo como Baumgarten entendeu a estética começa a reaparecer neste século com o refluxo da maré idealista. Em razão disso, a estética vai deixando de ser filosofia da arte, para voltar a ser um tipo de conhecimento não teorético, do qual faz parte a arte, assim como também um conjunto bem maior de produções humanas inexplicáveis pelas teorias racionalizantes.
Porém, muitos ainda continuam crendo na arte apenas como um processo de comunicação de ideias e ideais, a partir de imitações plásticas de coisas reais ou imaginárias. Por via de consequência, a arte contemporânea é condenada por essa franja da sociedade, pelo pecado da dessemelhança com a verdade, pois ainda entende a finalidade da arte como ilustração de conceitos. Para o senso comum, a obra de arte se torna tanto mais ‘bela’ ou ‘sublime’, quanto mais capaz de oferecer ao fruidor uma elegante mimese narrativa, que o permita comungar de uma ideia familiar bem estabelecida.
Para essa parte do público, a arte só pode ser simbólica, de modo a oferecer uma comunicação semelhante à linguagem, capaz de emular a verdade por meio de uma aparência, que serve de dispositivo didático para o entendimento da inteligência.
Contudo, o grande público também desconfia e alimenta certo temor em relação a todo o campo da arte. Adestrado por Platão, o senso comum repele justamente os elementos dissonantes e insensatos que acompanham o corpo das obras de arte, por conta do que imagina serem desvios “diabólicos”, que rompem com os critérios semânticos e intelectuais (distinção e clareza) da lógica discursiva, distorcendo aquilo que seria a missão e o destino da arte: auxiliar o pensamento inteligível a elucidar a verdade. Para o senso comum, a arte aceitável deve ser uma didática sensível, cujo propósito não poderia ser abandonado à liberdade: a norma da arte deve ser a educação, e a norma da educação é a filosofia.
De qualquer modo, essa estética tradicional, que vê a arte como veículo sensível da verdade, é incomensuravelmente diversa da estética contemporânea, que tende a aumentar progressivamente a distância interposta entre seu pensamento sensível e perceptivo, e a filosofia tradicional da arte, que um dia entendeu a estética como mera crítica objetiva do gosto.
Enquanto todas as coisas estéticas acabam escapando a qualquer definição filosófica, nenhum conceito pode conter uma noção geral da arte. E como a filosofia é um método de produção de conceitos, ela não tem muito o que dizer acerca da estética. Definir a arte como propriedade da teoria é perder de vista sua natureza física. Quando um filósofo tenta produzir uma definição da arte, seu conceito deve tanto excluir o que não é artístico, quanto incluir qualidades artísticas, mas o elemento estético projetado pela obra de arte não pode ser simplesmente eliminado, pois qualquer artefato é uma coisa existente – não é uma ideia que se possa conceituar.
É um dogma do pensamento filosófico a crença, segundo a qual, o conhecimento verdadeiro deve ser traduzido por um conceito abstrato e racional, pois a impermanência da sensorialidade e das aparências do mundo sensível impediriam a formação de uma verdade estável sobre as coisas.
A tradição filosófica lançou fora as impressões dos sentidos físicos, a percepção, a intuição, a emoção e a paixão, considerando-os instrumentos inaptos para elaborar o conhecimento, tratando-os como frutos da ignorância natural do corpo humano. Mas, não seria um contrassenso acreditar que a razão pode, ela mesma, dizer o que é? Essa tarefa não deveria ser realizada por um juízo externo à própria razão, que servisse de parâmetro independente entre os critérios de ignorância e racionalidade?
Se a razão for entendida como purificação e ascese do pensamento, então, a ignorância que ela combate é queda em direção ao mundo, mergulho no devir, cognição da sensibilidade e do corporal, distanciamento do inteligível e do espírito, momento presente, história e mutação. Contudo, é disto aqui que trata a estética.
Hoje, a estética não pode se entender como uma filosofia da arte, ou um empreendimento lógico-filosófico, mas como um campo do conhecimento que tem por base cognitiva a sensibilidade humana, capaz de conhecer o mundo “analogamente à razão”, por meio da experiência do corpo humano em atrito com o mundo real.
O que é o mundo real em que habitamos, senão um emaranhado de forças e relações interdependentes que se misturam e fundem-se rizomaticamente, sempre deixando de ser o que era e vindo a ser coisa diversa? Este não é o mundo da razão, nem dos conceitos universais que definem categorias, classes e identidades, mas o mundo empírico das sensações, das coisas e dos corpos. Aqui, na confusão inconstante do real, o pensamento tradicional da razão não tem como pensar, pois não pode estabelecer conceitos confusos.
Para conhecer o mundo em que vivemos é necessário outro pensamento que não pense apenas de forma lógica, mas que produza cognição a partir da percepção de sintomas das coisas que nos afetam. Ao contrário do que condena a razão, o pensamento estético não é ilusório, nem um perigo – mas análogo ao estado real do mundo.
A distinção lógica dos conceitos é artificial e cultural – não se encontra no mundo, mas na ordem semiótica das linguagens humanas. O mundo não se distingue em espécies, classes, nem em categorias. Conceitos claros e distintos são codificações que permitem aos humanos comunicar ideias acerca do mundo, mas tais ordens são artificiais.
Se a estética é o campo do conhecimento sensível, vinculado às nervuras do real, não tem como continuar a ser um departamento do campo filosófico, encarregado de normatizar a arte. A estética contemporânea tem mais o que fazer do que figurar como um projeto falido da filosofia, que não conseguiu reduzir a arte a conceitos inteligíveis.
Libertar a estética da filosofia também abole em nós a crença lógica no “bem pensar que alcança a verdade” e toda sua vetusta moralidade, que vê na espécie Homo sapiens um elo com a eternidade, capaz de abraçar a causa e a finalidade do mundo. Livre dessa fantasia idealista, a estética pode finalmente auferir conhecimento por meio da ludicidade dos corpos e da realidade material e energética que nos cerca.
A cognição estética é anterior a qualquer silogismo da mais elementar lógica aristotélica. Conhecimento obscuro e confuso, o pensamento sensível evoluiu com o corpo humano, desde milhões de anos, tendo talvez origem em Gaia, a deusa primordial da mitologia grega que representa a Mãe Terra, a sofia ancestral do corpo humano, elemento primitivo de uma potência geratriz inominável.
Não é de hoje que vários pesquisadores vêm nos alertando para outras fontes de conhecimento disponíveis ao humano fora dos rígidos sistemas lógico-gramaticais da veneranda tradição filosófica ocidental. Há muito mais recursos cognitivos em nossas percepções, sensibilidades e paixões do que imagina o velho idealismo platônico de nosso senso comum.