Por Célio Pinheiro*
Em setembro deste ano na cidade Palmas, no Paraná, um caso absurdo ocorreu. Uma moça anda de bicicleta. Um carro com quatro jovens se aproxima, um deles passa a mão no corpo da moça. Ela cai, sofre vários ferimentos. Tudo filmado pelas câmeras. Nos dias seguintes o caso se torna público causando grande comoção nacional. As manchetes em quase todos os jornais usam as mesmas palavras para se referir ao caso. Destaco uma a titulo de exemplo: Manchete: “Jovem ficou ferida após cair de bicicleta ao ser vítima importunação sexual em Palmas; câmera registrou carro se aproximando e passageiro tocando a ciclista enquanto pedalava.” (Fonte: Por g1 PR e RPC Foz do Iguaçu — Foz do Iguaçu 28/09/2021 11h09)
Há várias questões condensadas nesta cena e na forma que a cena é relatada. Há subtextos que precisam ser discutidos, nos âmbitos sociológicos, antropológicos, jurídicos, psicanalíticos e semânticos. O carro era ocupado por jovens na faixa dos 19 a 21 anos. E um deles era menor de 18 anos. E esse é um dos fatos que mais chama atenção. É grave para além da violência praticada que essa violência seja praticada por um menor. Isso indica uma falência geral. Falência da família que não fez seu papel de criar um sujeito que respeitasse qualquer outro semelhante seu, que não respeitasse a mulher nesse contexto. Falência da escola que não transmitiu valores éticos a seu aluno.
Falência da Cultura em reprimir atos de crueldade e desumanidade. Falência da religião em seu papel moralizador. Falência do Estado, falência das instituições, falência de todos nós. Ou estariam eles seguindo um exemplo que lhes conferia liberdade para cometer tal ato? Se assim o for, é urgente determinar que exemplo é esse. Que modelos esses rapazes estão seguindo? Que modelo de construção do masculino esses jovens estão exercitando? Quem lhes deu o direito de uso do corpo alheio para extrair um prazer baseado na violência? A cultura do estupro escancara seus dentes nessa cena.
A herança do colonizador violento de outrora que dominou e estuprou as mulheres por essas terras criou uma cultura criminosa que mostra estar viva. Sem saber esses jovens estão desempenhando um modus conhecido nas paragens em que o colonizador praticou tais violências. A perversão, conceito complexo, denuncia o quanto a prática perversa coloca o outro na condição de objeto de prazer e gozo. Gozo na submissão e rebaixamento do outro à condição de objeto de sevícias. O outro é dessubjetivado. Diante de tudo isso, o uso da palavra “importunação”, conforme destaca a manchete e conforme foi tratado juridicamente este caso, causa algumas estranhezas.
Dizer que é importunação é uma forma negatória para minimizar uma prática que deixa marcas profundas na vítima. Valho-me aqui da semântica, da grafia e da sonoridade da palavra importunação. Diz o dicionário que o significado de Importunação é: ação ou efeito de importunar. Ação de insistir de maneira inconveniente. Coisa ou circunstância inconveniente… É essa a aceitação social, coloquial e mesmo vulgar da palavra importunação, ou seja, uma coisa inconveniente. Ser inconveniente não é tão mal assim. Passar a mão no corpo de uma mulher com fins de prazer próprio, sem o consentimento, quase causando sua morte, equivale a ser inconveniente?
Pois esse é o efeito semântico e não nos esqueçamos que o texto da Lei diz muito (ou tudo!) de uma sociedade e em especial das pessoas que a confeccionam, a aprovam, a proferem. Por que essa cena deve ser qualificada como estupro? É simples. Se nos ativermos ao estupro apenas como ato de penetração genital sem consentimento, estamos desprezando a vida psíquica das vítimas. O dano causado pela invasão na esfera das emoções não pode ser desprezado. A vítima sofreu invasão em sua dimensão humana, afetiva, de direitos, à liberdade de ir e vir. Estes casos são sim uma forma de penetração tão – e por vezes mais – causadoras de danos do que a penetração do que se convencionou chamar de estupro.
Os danos em ternos de efeitos psíquicos são extensos, todos eles relacionados ao efeito do trauma gerado por essas ocorrências. Não nos esqueçamos que a palavra trauma quer dizer: perfuração! Trauma é perfuração. É a invasão na vida psíquica de uma carga tamanha de violência e de significados. Chamar a isso de importunação é uma forma de ratificar aquilo que se está querendo combater. É “passar o pano” como se diz em linguagem dos dias de hoje. Chamar de importunação é como dizer: “Ah, esses moleques aprontando das suas de novo. Merecem puxãozinho de orelha da titia.”
Ou seja, é minimizar tudo o que vem junto com essa prática. E, mais. Chamar de importunação é operar a mais nefasta de todas as reações diante de uma violência que é o “desmentido”. Desmentir é negar que o fato tenha acontecido. Desmentir é diminuir a gravidade do ocorrido. Desmentir é usar palavras atenuantes que diminuem a gravidade social do ocorrido. Desmentir é culpabilizar a vítima. A vítima assim se expressou: “O problema que aconteceu comigo acho que é só um de tantos outros que estão acontecendo. Então o fato de prenderem o rapaz não vai diminuir o problema que está na nossa sociedade. Eu acho que tudo isso aconteceu só porque eu fui filmada.
Tem muitas mulheres que não conseguem fazer denúncia por medo e porque não têm uma prova. Tudo isso que aconteceu eu consegui por causa da uma câmera de segurança.” Sim, só ganhou repercussão porque foi filmado e as imagens são repugnantes. Mas os agressores ainda tentam dizer que não queriam fazer aquilo… Quem escutou um dos rapazes presos informou que ele contou que estavam alcoolizados e que chegou a pedir para que os amigos não fizessem aquilo. O carro, um veículo Gol branco chegou a ser apreendido, mas foi devolvido ao pai do condutor, que alegou que ele teria pego o carro sem permissão.
É urgente pensar a palavra transmissão. Afinal, o que estamos transmitindo? O que a Cultura está transmitindo para essas gerações que estão chegando à idade adulta? Se esse for o exemplo do que virá, o que será do mundo? É preciso indignar-se, agora, não depois, não amanhã, deixar claro que para esses atos não queremos mais Palmas.
*Célio Pinheiro – Psicanalista e Antropólogo