Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti – Programa de Pós-graduação em Família na Sociedade Contemporânea (UCSAL). vanessa.cavalcanti@ucsal.br
Integram meu cotidiano – especialmente acadêmico universitário há mais de duas décadas – os estudos, as produções e as análises que cruzam as relações e as violências de gênero. Nunca, ao sair pela manhã, ao ministrar aulas, iniciar projetos de investigação, ao ler noticiários e ver informes de organizações governamentais e não-governamentais ouviu-se tanto sobre feminicídio, violência de gênero, violências contra mulheres (idosas e jovens), violência doméstica e familiar, conjugal, sexual, etc. Talvez tenhamos chegado ao “ponto de mutação”. Somos capazes de enfrentar e criar situações de escutar, proteger, acolher, assistir integralmente. Temos marcos legais, instituições, gente especializada, anos de educação formal e não formal. Parece mais que estamos perdid@s em letras mortas, em experiências exitosas e de boas práticas educativas, esquecendo de conceitos, de verificar e descrever o básico, o cotidiano, abrir ouvidos e olhos.
Essas experiências foram e são compartilhadas com outr@s investigadores(as) das Ciências Sociais e Humanidades, com recortes de estudos sobre violências e gênero que procuram, não e tão somente, descrever o processo contemporâneo de relações, tensões e discursos, mas, sobremaneira, versam sobre inquietudes e “lugares de ação” (SANI, 2018; DIAS, 2015; HASANBEGOVIC, 2016; TELES & LEITE, 2013).
Figura 1: Capa do livro Crianças Vítimas de Violência: Representações e Impacto do Fenómeno, de Ana Isabel Sani (2011)
A palavra cria, informa, traz ação. Lá se vão cinco décadas de movimentos sociais feministas e de grandes avanços, com destaque ao marco legal, institucional (no caso brasileiro até a implementação de políticas especificas sobre direitos humanos das mulheres). Com o ano internacional e a década da mulher, a sociedade internacional – a partir de 1975 – foram criados mecanismos, discursos e planos para educar, transformar, erradicar. Nesse panorama, cada Estado signatário da Organização das Nações Unidas e dos que ratificaram planos, conferências e objetivos criou estratégias e marco legais-institucionais para tratar da temática. O Brasil foi um dos membros que não fugiu às convocatórias, mas foram décadas de intensificação e observância de agendas e de construção de políticas como marcadores e referências de escuta de movimentos sociais e reivindicações.
Realmente há que se destacar que a invisibilidade total – ou opacidade quando não temos instrumentos e captação do narrado e do vivido em sua potencialidade – e o silenciamento de uma cultura patriarcal abriu brechas, frestas, pequenos espaços e, como na história na pedra atirada no lago, abriu-se em círculos e movimentos mais assertivos e consistentes. A década foi relevante do ponto de vista de marcos legais (Lei Maria da Penha e Feminicídio, organização de coordenações, promotorias, projetos especializados, eventos de caráter acadêmico-científico e expressões de lutas, expressões artísticas e culturais com múltiplas linguagens – inclusive traduzida em cordel – ver figura abaixo – ou em canções manifesto, na batida do Slam das Minas, Manifesta 2018 – ver em https://www.youtube.com/watch?v=xLJWFiGYNwo).
Da educação formal à não formal, de espaços governamentais, de ocupação do “território” jurídico-institucional e das instâncias locais e internacionais, a temática da violência contra mulheres e meninas tomou assento e ganhou novas abordagens através de outros recortes como juventudes, questões étnico-raciais, territoriais, comunitárias e coletivas.
Há urgências em resgatar memórias e Histórias (vide aumento de editoras especializadas e excursões artísticas-culturais em grande escala por todo território nacional e estrangeiro), de conhecer mais sobre a mundivisão e sobre as diferenças e semelhanças dentro dos próprios feminismos, para além da (re)invenção de movimentos sociais e de estratégias para acessibilidade e para circulação de conhecimento, objetivando visibilizar pautas, causas e lutas.
Ranços e avanços enormes e um fato relevante: as mulheres conhecem o texto jurídico, sabem onde podem se apoiar e buscar proteção, integram redes, organizaram instrumentos, observatórios e não se distanciam das audiências e de cargos decisivos. Incentivam formas de saber e de ocupar assentos, apostam em tempos que pendulam entre passado, presente e futuro, (re)inventando Histórias, lugares e não-lugares. De letras jurídicas aos diálogos, de novas abordagens às expressões estéticas.
Marcham mulheres, levantam bandeiras por um mundo mais igual, justo e sustentável, no sentido pleno da palavra. Fazem suas próprias histórias, fortalecem epistemologias críticas e não calam.
Em voz acompanhada de uma cuíca e da poesia de viola (do Paulinho), Marisa Monte encantou: “Hoje eu quero apenas/Uma pausa de mil compassos/Para ver as meninas/Porque hoje vou fazer/Um samba sobre o infinito”.
Figura 2: Para ver as meninas (Marisa Monte e Paulinho da Viola, 2007).
Fazer “pausa de mil compassos” ecoa na linda composição. Pensar indica possibilidade de intervenção, seja sobre assédios (falatórios e físicos) ou estupros e ameaças de morte (menção específica à incitação pública corriqueira no tempo presente); seja sobre violências no namoro às ambiências públicas – e proclamadas sem restrições em meios digitais e bem reais – não causando nenhum constrangimento por parte de autores/as.
Todas são explicitas manifestações abusivas, obstáculos para liberdade, dignidade e vida. Por isso, reforços: proteção às vítimas; incremento de redes e campanhas (mapas, observatórios, dissertações, teses etc.); formação e educação avançadas. Essas duas semanas são instrumentos baseados em itens relevantes ao bem-viver, em planos pactuados internacionalmente e compõem “ideia de justiça” (Sen, 2011), sem esquecer da sua realização. Quando a vida é “virtualmente” ameaçada, tomemos a urgência de proteger, salvaguardar e não “banalizar” conversas e brincadeiras. As palavras – escritas e ditas – tem força. Que as armas sejam outras. As metafóricas: livros, canetas, rodas de conversa, “sambas sobre infinita” possibilidade de paz e expressões sociais de convívio.
Somos criativ@s e já existem elementos que transformam silêncios em conscientização. Contamos com artes, ciências e tecnologias, pautas sociais e políticas, além de medidas educativas em prol de um mundo possível (no qual as instituições servem ao coletivo e não legitimam a violência como recurso para manutenção das estruturas do poder). Muito trabalho pela frente e tomar a educação como caminho alargado e potencialmente denominado de paideia continua a ser realizável: difundir conhecimentos e saberes; ampliar e não restringir, seja formal, não formal ou informal; aprender a conviver. Que sejam pontos de encontro, de mutação para igualdade, sustentabilidade, paz, dignididade.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei Maria da Penha. Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em 23 jun. 2019.
DIAS, M.I.C. Sociologia da família e do gênero. Porto: Pactor, 2015.
HASANBEGOVIC, Claudia. Violencia basada en el género y el rol del Poder Judicial. Revista de la Facultad de Derecho, n. 40, p. 119-158, ago. 2016. Disponível em doi:10.22187/rdf201616.
SANI, Ana & CARIDADE, Sônia. Violência, agressão e vitimação: Práticas para a intervenção. Coimbra: Almedina, 2018.
SEM, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo, Cia das Letras, 2011.
TELES, M.A.A. & LEITE, R.S.C. Da guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980). São Paulo: Intermeios, 2013. 312p.