PARA DIREITOS, A SUSTENTABILIDADE: Mulheres, direitos humanos e alteridade

Ocupando espaços públicos, comerciais, de grande circulação a Exposição Fotográfica foi o meio para promover olhar, pensar e integrar. Tendo como sujeitos centrais as catadoras, viventes e trabalhadoras de Salvador, a mostra visual foi dedicada à Isodélia dos Santos Neves (1958-2017), moradora da comunidade do Boiadeiro. Ensaio que versa sobre mulheres, direitos humanos e sustentabilidade, trazendo resultados parciais de investigação dos autores.

VASCULHAR O PASSADO E PENSAR NO FUTURO: Estamos em um “ponto de mutação”?

Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti – Programa de Pós-graduação em Família na Sociedade Contemporânea (UCSAL). vanessa.cavalcanti@ucsal.br

Integram meu cotidiano – especialmente acadêmico universitário há mais de duas décadas – os estudos, as produções e as análises que cruzam as relações e as violências de gênero. Nunca, ao sair pela manhã, ao ministrar aulas, iniciar projetos de investigação, ao ler noticiários e ver informes de organizações governamentais e não-governamentais ouviu-se tanto sobre feminicídio, violência de gênero, violências contra mulheres (idosas e jovens), violência doméstica e familiar, conjugal, sexual, etc. Talvez tenhamos chegado ao “ponto de mutação”. Somos capazes de enfrentar e criar situações de escutar, proteger, acolher, assistir integralmente. Temos marcos legais, instituições, gente especializada, anos de educação formal e não formal. Parece mais que estamos perdid@s em letras mortas, em experiências exitosas e de boas práticas educativas, esquecendo de conceitos, de verificar e descrever o básico, o cotidiano, abrir ouvidos e olhos.
Essas experiências foram e são compartilhadas com outr@s investigadores(as) das Ciências Sociais e Humanidades, com recortes de estudos sobre violências e gênero que procuram, não e tão somente, descrever o processo contemporâneo de relações, tensões e discursos, mas, sobremaneira, versam sobre inquietudes e “lugares de ação” (SANI, 2018; DIAS, 2015; HASANBEGOVIC, 2016; TELES & LEITE, 2013).

Figura 1: Capa do livro Crianças Vítimas de Violência: Representações e Impacto do Fenómeno, de Ana Isabel Sani (2011)

A palavra cria, informa, traz ação. Lá se vão cinco décadas de movimentos sociais feministas e de grandes avanços, com destaque ao marco legal, institucional (no caso brasileiro até a implementação de políticas especificas sobre direitos humanos das mulheres). Com o ano internacional e a década da mulher, a sociedade internacional – a partir de 1975 – foram criados mecanismos, discursos e planos para educar, transformar, erradicar. Nesse panorama, cada Estado signatário da Organização das Nações Unidas e dos que ratificaram planos, conferências e objetivos criou estratégias e marco legais-institucionais para tratar da temática. O Brasil foi um dos membros que não fugiu às convocatórias, mas foram décadas de intensificação e observância de agendas e de construção de políticas como marcadores e referências de escuta de movimentos sociais e reivindicações.

Realmente há que se destacar que a invisibilidade total – ou opacidade quando não temos instrumentos e captação do narrado e do vivido em sua potencialidade – e o silenciamento de uma cultura patriarcal abriu brechas, frestas, pequenos espaços e, como na história na pedra atirada no lago, abriu-se em círculos e movimentos mais assertivos e consistentes. A década foi relevante do ponto de vista de marcos legais (Lei Maria da Penha e Feminicídio, organização de coordenações, promotorias, projetos especializados, eventos de caráter acadêmico-científico e expressões de lutas, expressões artísticas e culturais com múltiplas linguagens – inclusive traduzida em cordel – ver figura abaixo – ou em canções manifesto, na batida do Slam das Minas, Manifesta 2018 – ver em https://www.youtube.com/watch?v=xLJWFiGYNwo).

Da educação formal à não formal, de espaços governamentais, de ocupação do “território” jurídico-institucional e das instâncias locais e internacionais, a temática da violência contra mulheres e meninas tomou assento e ganhou novas abordagens através de outros recortes como juventudes, questões étnico-raciais, territoriais, comunitárias e coletivas.

Há urgências em resgatar memórias e Histórias (vide aumento de editoras especializadas e excursões artísticas-culturais em grande escala por todo território nacional e estrangeiro), de conhecer mais sobre a mundivisão e sobre as diferenças e semelhanças dentro dos próprios feminismos, para além da (re)invenção de movimentos sociais e de estratégias para acessibilidade e para circulação de conhecimento, objetivando visibilizar pautas, causas e lutas.

Ranços e avanços enormes e um fato relevante: as mulheres conhecem o texto jurídico, sabem onde podem se apoiar e buscar proteção, integram redes, organizaram instrumentos, observatórios e não se distanciam das audiências e de cargos decisivos. Incentivam formas de saber e de ocupar assentos, apostam em tempos que pendulam entre passado, presente e futuro, (re)inventando Histórias, lugares e não-lugares. De letras jurídicas aos diálogos, de novas abordagens às expressões estéticas.

 

Marcham mulheres, levantam bandeiras por um mundo mais igual, justo e sustentável, no sentido pleno da palavra. Fazem suas próprias histórias, fortalecem epistemologias críticas e não calam.

Em voz acompanhada de uma cuíca e da poesia de viola (do Paulinho), Marisa Monte encantou: “Hoje eu quero apenas/Uma pausa de mil compassos/Para ver as meninas/Porque hoje vou fazer/Um samba sobre o infinito”.

Figura 2: Para ver as meninas (Marisa Monte e Paulinho da Viola, 2007).

Para Ver As Meninas (2004) · Marisa Monte, Paulinho Da Viola e Raphael Rabello.          Ouvir em https://www.youtube.com/watch?v=haAppvK_DlI

Fazer “pausa de mil compassos” ecoa na linda composição. Pensar indica possibilidade de intervenção, seja sobre assédios (falatórios e físicos) ou estupros e ameaças de morte (menção específica à incitação pública corriqueira no tempo presente); seja sobre violências no namoro às ambiências públicas – e proclamadas sem restrições em meios digitais e bem reais – não causando nenhum constrangimento por parte de autores/as.

Todas são explicitas manifestações abusivas, obstáculos para liberdade, dignidade e vida. Por isso, reforços: proteção às vítimas; incremento de redes e campanhas (mapas, observatórios, dissertações, teses etc.); formação e educação avançadas. Essas duas semanas são instrumentos baseados em itens relevantes ao bem-viver, em planos pactuados internacionalmente e compõem “ideia de justiça” (Sen, 2011), sem esquecer da sua realização. Quando a vida é “virtualmente” ameaçada, tomemos a urgência de proteger, salvaguardar e não “banalizar” conversas e brincadeiras. As palavras – escritas e ditas – tem força. Que as armas sejam outras. As metafóricas: livros, canetas, rodas de conversa, “sambas sobre infinita” possibilidade de paz e expressões sociais de convívio.

Somos criativ@s e já existem elementos que transformam silêncios em conscientização. Contamos com artes, ciências e tecnologias, pautas sociais e políticas, além de medidas educativas em prol de um mundo possível (no qual as instituições servem ao coletivo e não legitimam a violência como recurso para manutenção das estruturas do poder). Muito trabalho pela frente e tomar a educação como caminho alargado e potencialmente denominado de paideia continua a ser realizável: difundir conhecimentos e saberes; ampliar e não restringir, seja formal, não formal ou informal; aprender a conviver. Que sejam pontos de encontro, de mutação para igualdade, sustentabilidade, paz, dignididade.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei Maria da Penha. Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em 23 jun. 2019.

DIAS, M.I.C. Sociologia da família e do gênero. Porto: Pactor, 2015.

HASANBEGOVIC, Claudia. Violencia basada en el género y el rol del Poder Judicial. Revista de la Facultad de Derecho, n. 40, p. 119-158, ago. 2016. Disponível em doi:10.22187/rdf201616.

SANI, Ana & CARIDADE, Sônia. Violência, agressão e vitimação: Práticas para a intervenção. Coimbra: Almedina, 2018.

SEM, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo, Cia das Letras, 2011.

TELES, M.A.A. & LEITE, R.S.C. Da guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980). São Paulo: Intermeios, 2013. 312p.

DAS ALEGORIAS POSSÍVEIS: A EDUCAÇÃO CRÍTICA PARA E PELOS DIREITOS HUMANOS

Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti
Antonio Carlos da Silva
Núcleo de Estudos sobre Direitos Humanos – Universidade Católica do Salvador (UCSAL)

 

Violações cotidianas em um cenário de forte crescimento econômico, não sustentável, contextualizam a distância em engendrar o real Desenvolvimento e desvelar uma agenda imensa para promoção do acesso à justiça e à cidadania frente ao recrudescer da desigualdade e de emergências sociais importantes. Eis um quadro da contemporaneidade brasileira, anunciando necessidades de observar, analisar, interferir e construir instituições e práxis solidária e ética na política.

Apesar do incremento, a partir dos anos 1980, de agenda e ações especificas para e pelos direitos humanos, ainda há muito trabalho a fazer: desde efetivação do marco legal-institucional já existente até o enfrentamento a partir de uma cultura e uma ética pró-direitos humanos – sem olvidar do crescente aumento do déficit fiscal do Estado destinado a garantir o consumo social e, por conseguinte, da consolidação do processo de autofagia do capital que caracterizam a crise da Modernidade. Há que marcar as nuances de um “sonho ético-político da superação da realidade injusta” (FREIRE, 2017, p. 43).

Figura 1 – Citação de Paulo Freire.

Fonte: Disponível em https://medium.com/tend%C3%AAncias-digitais/reinterpretando-a-cultura-no-digital-dd7a695c9df5

O debate atual sobre os Direitos Humanos precisa partir de um questionamento básico que se situa no quadro teórico específico das Ciências Humanas e Sociais: como se configura nosso mundo histórico hoje e que lugar têm aí os direitos humanos? (OLIVEIRA, 2011).

“Educação para os direitos humanos na perspectiva da justiça é certamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da ‘briga’, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder”. (FREIRE, 2017, p. 99).

Promotores dos direitos humanos alegam, difundem e reafirmam que cada criança tem direito à educação. Esta assertiva baseia-se principalmente em duas premissas: 1) endossar o direito à educação, consolidando que ao receberem educação básica, para todos, suas habilidades sociais e ética serão mais que integradas ao modo de viver e estar em sociedade; 2) apesar do reconhecimento existente da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH, 1948) terão reconhecimento positivo e enfrentarão de outra maneira as realidades onde vivem e circulam. Entretanto, há necessidade de observar – para além do normativo e institucional – as ambientações delineadas entre as esferas pública e privada.

“Não raro os ativistas dos direitos humanos se mostram bastante impacientes […], talvez porque muitos dos que invocam os direitos humanos estejam mais interessados em mudar o mundo do que interpretá-lo – lembrando uma distinção clássica que se tornou famosa com Marx”. (SEN, 2011, p. 391).

Deste modo, nossa reflexão perpassa por questionar os aspectos unilaterais de uma interpretação dos Direitos Humanos sob a égide (apenas) do formalismo jurídico em um mundo regido pelas normas do Mercado e da acumulação do capital. São dimensões, princípios, ações e planos internacionais, produção acadêmica e inúmeros eventos. Isto posto, compreendemos que há uma relação direta da fundamentação conceitual dos Direitos Humanos com a realização de Justiça Social e promoção do real Desenvolvimento, porque, não obstante a ideia de qualquer pessoa, em qualquer rincão deste mundo, possuir direitos básicos que devem ser respeitados, ou seja, a eficácia política em contraposição a supremacia do capital, precisamos estabelecer os Direitos Humanos como imperativos globais por intermédio da culpa organizada e da responsabilidade universal (devir histórico) (ARENDT, 2008).

Tomando como referência todo o processo ocorrido desde os anos 70, pode-se ressaltar que “[…] não existe solução perfeita, mas uma combinação de escolhas e respostas necessariamente limitadas” (Dubet, 2004, p. 543). A ideia de que os “aprendizes” “podem abrir-se ao mundo sem passar pela escola”, afastando uma abordagem de sociabilidade e projetos comuns atinentes ao campo escolar, bem como uma alteração da matriz institucional (baseada na homogeneidade do trabalho educativo). Há que se pensar mais na criatividade, nas potencialidades e no sujeito-predicado, conduzindo para uma formação-educação em prol dos, para e pelos Direitos Humanos. Tal processo também dessacraliza a educação tradicionalmente colocada ao serviço da formação de sujeitos de Razão.

Figura 2 – François Dubet e sua obra

Sem endossar a ideia de uma metanarrativa dos Direitos Humanos, reiteramos que, sob a prevalência das “virtudes do Mercado” (em alusão ao conceito de novilíngua em Orwell), a universalização dos Direitos Humanos somente será possível para além das fronteiras nacionais, restituindo ao cidadão global seu papel e propósito de dirimir as injustiças e transpor esses direitos como força de lei associada à ética pública. A proposição de Carlos Estevão (2012) acerca da nebulosa interpretação do Mercado e da Ágora ao nível dos Direitos Humanos e da Justiça:

“Por outras palavras, no esforço dialógico para expandir, nos tempos de globalização, a democracia comunicativa e a cosmopoliticidade democrática que deve caracterizá-la, caberá à educação apoiar a construção do acordo na conversação entre distintos lugares (…), criando-se uma universalidade ética que “vem de baixo”, mas que é simultaneamente potenciadora do aparecimento de uma esfera pública global” (ESTEVÃO, 2012, p. 264).

Mais do que uma agenda de políticas públicas, uma demonstração de vontade e de possibilidades de justiça social, sugere-se menos intervenções promotoras de uma cultura da paz e mais “[…] incentivo à cultura da não-violência, como processo essencial e promotor de novas atitudes” (GOMES, 2010, p. 104).

“A educação cosmopolita vai precisamente nesta direção, uma vez que favorece a dialogicidade e o ‘universalismo contextualizado”, facilitando o reconhecimento do facto de cada cultura ser potencialmente todas as outras, obrigando, por isso mesmo, à “celebração da raiz humana comum’” (ESTEVÃO, 2012, p. 264).

O que queremos? O que podemos? Através da educação para e pelos Direitos Humanos conhecer, promover e difundir princípios “mínimos” de ordenamento social contemporâneo podem ser desafios utópicos e inalcançáveis. Isso se dará de maneira mais acirrada em tempos incertos; mas, sobretudo, quando os princípios orientadores da educação formal estiverem atrelados à uma lógica de conformidade-conformismo impositiva com o capital.

Figura 3 – Evocação de palavras Educação e Direitos Humanos

Sem direcionar-se por movimentações intensas e pró-ativas para diálogos e intercâmbios conscientes e ampliados, não haverá possibilidade de ir “além do capital”, encontrando caminhos e práticas abrangentes como “a própria vida”. A educação formal e informal não poderá, entrementes, ser emancipadora e realizadora das maiores “expressões de Humanidade”, nas palavras de Ulpiano Bezerra de Meneses (1992).

“Compete à educação crítica, pela pedagogia, pela aprendizagem e pela prática da participação, contribuir para fluidificar comunicacionalmente o poder, para expandir o espaço público, para construir a cosmopoliticidade democrática, a qual exige de cada um de nós que sejamos não apenas cidadãos do mundo, mas, acima de tudo, ‘cidadãos para o mundo’”. (ESTEVÃO, 2012, p. 265).

 

Referências

ARENDT, Hannah. Compreender: fomação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

DUBET, François. O que é uma escola justa. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 123, p. 539-555, set./dez. 2004.

ESTEVÃO, Carlos V. Políticas e valores em educação: repensar a educação e a escola pública como um direito. Porto: Humus, 2012.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação. São Paulo: UNESP, 2017.

GOMES, Celma Borges. A banalização da vida, suas conseqüências e seus condicionantes. Revista de Ciências Médicas e Biológicas, Salvador, v. 3, n. 1, p. 89-107, jul. 2010. Disponível em: <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/cmbio/article/view/4414/3272>. Acesso em: 24 maio. 2019.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra. A história, cativa da memória?: para um mapeamento da memória no campo das ciências sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 34, p. 9-23, 1992.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Direitos humanos no diálogo entre os campos de conhecimento. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 14, n. 2, p. 147-149, 2011.

SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.