Woodstock 50 anos

Os anos 1960 foram marcados por acontecimentos dramáticos e dolorosos, assassinatos, golpes de estado, ditaduras, terrorismo, a escalada da guerra no sudeste asiático, e outros, muitos outros. E também em 1969 a nave Apollo 11 “alunissou” em nosso satélite natural; uma conquista comparável às navegações portuguesas de quinhentos anos antes.

Nesta década houve uma explosão cultural, a chamada contracultura era a sedimentação de muitas vertentes do pós-guerra, os beatniks com seu niilismo e desgosto com a “sociedade materialista” antecederam os hippies, poetas e escritores levaram o experimentalismo nos temas e na linguagem ao extremo. Mas foi na música que o movimento atingiu ares de revolução, dignos filhos do jazz, do blues e do folk, o rock e suas variações tomaram o mundo; em nosso país tivemos a “Jovem Guarda” e o Tropicalismo.

Os jovens ocupavam espaços. Na França teriam derrubado o governo De Gaulle se não tivessem sido abandonados pelos comunistas, seus aliados que se assustaram com tanta rebeldia. Nos Estados Unidos, pela primeira vez praticamente uma geração inteira se recusava a ir à guerra, os filhos dos veteranos da Normandia, de Iwo Jima e da Coreia, não viam sentido no Vietnã; e muitos se refugiavam em paraísos lisérgicos e em empreitadas “espirituais” como tentar levitar o Pentágono através da meditação coletiva.

No Brasil uma ditadura se agravava à medida que a década chegava ao fim, estudantes protestavam como podiam e muitos aderiram à luta armada, sendo dizimados pela repressão. Os adolescentes se reuniam, o instinto gregário que sempre caracterizou a juventude se manifestava onde quer que houvesse um violão, uma música, uma ideia. Então, num misto de idealismo cultural e senso de oportunidade empresarial, quatro jovens americanos decidiram promover um festival de música e arte.

Foi há cinquenta anos, entre os dias 15 e 18 de agosto de 1969, e ocorreria em Woodstock no estado de Nova York, donde o nome que foi imortalizado “Festival de Woodstock”. No entanto, por excesso de público, foi transferido para uma fazenda próxima na cidade de Bethel, também em NY.

O zeitgeist, o espírito do tempo era favorável: nunca antes, desde a “conquista” do Oeste e a corrida do ouro, a América tinha convivido com tantos “nômades”, aqueles que em gerações anteriores estariam comodamente instalados em casa ou em dormitórios universitários agora “pegavam a estrada”, uma peregrinação em busca de paz e amor, e de um sentido para a vida que parecia ter se perdido.

Os organizadores venderam quase 190 mil ingressos, mas algo como meio milhão de pessoas compareceu, pressionando a entrada e derrubando barreiras, tornando o evento em grande parte gratuito. A música executada foi quase toda ela de excelente qualidade, com artistas como Janis Joplin, Jimi Hendrix, The Who, Creedence Clearwater Revival, Grateful Dead, Joan Baez, Joe Cocker e outros, dando o tom para o que se faria nas décadas seguintes.

Ali se aprendeu a comer granola, mistura de cereais e sementes que os fazendeiros das imediações forneciam gratuitamente aos jovens esfomeados e que não dispunham de meios e de estrutura para obter alimentos. Exemplo de solidariedade, ditada em parte pela prudência, mas que ficou.

O que também marcou o festival foi a plateia, parte drogada, cabeluda, colorida; toda ela contra a guerra do Vietnã, a música catalisou a expressão política e muito pouca violência foi registrada. Paz e Amor foi mais do que discurso.
O evento foi transcendido pela própria importância simbólica, definindo tempo e sociedades em mutação, mesmo onde pouco se ouvia falar em rock e “músicas de protesto” eram brutalmente censuradas, a notícia se espalhou. Os grandes festivais que vieram a seguir, em toda parte e de todas as vertentes, são tributários de algum modo a Woodstock.

Foi há cinquenta anos, e os ecos são ouvidos até hoje.

Ainda e sempre a fome

Entre os muitos cientistas e intelectuais brasileiros que nos orgulham, dois em especial merecem ser lembrados: Milton Santos: geógrafo, graduado em Direito, doutorado feito em universidade francesa, foi um dos grandes nomes da renovação da geografia e globalização, tendo ganho o prêmio Vautrin Lud, considerado o “o Nobel da geografia”. Poucos pensadores foram tão clarividentes quanto ele, seus escritos e estudos sobre a pobreza já apontavam para a realidade visível atualmente, de manifestações populares articuladas por redes sociais digitais. Com considerações sobre o ser humano deixar de ser o centro do mundo, lugar cada vez mais ocupado pelo dinheiro, ele previa ações políticas em que milhares de pessoas ocupariam ruas das maiores cidades na procura de justiça e cidadania.
Outro excepcional brasileiro foi Josué de Castro, médico voltado à nutrologia, professor, que trabalhou como cientista social, envolveu-se na política e escreveu obras do quilate de Geografia da fome, Geopolítica da fome, Sete palmos de terra e um caixão e Homens e caranguejos. Por sinal, foi também Embaixador brasileiro junto à Organização das Nações Unidas (ONU); e trouxe para debate os temas da fome e do subdesenvolvimento. Ele assegurava que apenas o desenvolvimento seria forma de superar as desigualdades sociais, conduzindo a uma “ascensão humana” por meio de mudanças sociais sucessivas e profundas. Entre seus prêmios, os da Academia de Ciências Políticas dos Estados Unidos, Prêmio Franklin D. Roosevelt. O Conselho Mundial da Paz concedeu a ele o Prêmio Internacional da Paz e o governo francês o condecorou como Oficial da Legião de Honra. Foi muitas vezes indicado ao Nobel da Paz.
Ambos falavam da fome, que além da física – real e presente até hoje em território brasileiro – sempre foi também a de equidade e inclusão. Hoje, se olharmos as manifestações ocorridas no Brasil e no mundo, ao lado daquelas caracterizadas por palavras de ordem, pedindo mais investimentos em educação, segurança, saúde e outros temas relevantes para a vida comunitária, vemos outras não tão significativas para a vida social, mas sim interessantes para a vida pessoal, como se a individualidade se sobrepusesse ao coletivo.

Fome, por exemplo, é pauta há milhares de anos no mundo, e boa parte do sofrimento da população de mais baixa renda está associada com questões alimentares e nutricionais, e isso se dá tanto pela ausência do alimento, quanto pela má qualidade da alimentação. Josué de Castro já falava da “fome oculta”, e isso se dá na desnutrição ou subnutrição em função de inadequação quantitativa (energia) ou qualitativa (nutrientes) da alimentação ingerida diariamente nas camadas populacionais com menos acesso ao sistema educativo. Assim, a obesidade é uma das características que se soma à precariedade na alimentação brasileira, junto com a desnutrição infantil crônica (baixa altura para a idade) e, em menor grau, a desnutrição aguda (peso inadequado para a altura). São mazelas para as quais não dispomos de dados regulares e atualizados, e alguns professores do ensino fundamental assistem, horrorizados, aos desvios de dinheiro das merendas, ou as oferecidas com baixa qualidade nas escolas de periferia, onde muitas vezes esta é a única refeição diária.
É preciso ser negligente e apartado do mundo real para desconhecer o problema da insegurança alimentar no país.

FORMAÇÃO PROFISSIONAL

 

Existe hoje, mais do que nunca, uma tendência irreversível e crescente: a globalização dos mercados, que decorre da internacionalização da economia. Nosso país procura ampliar e consolidar presença neste cenário, mas enfrenta dificuldades específicas na instrução de seus jovens para enfrentar o desafio.

Formação é todo um mundo que abrange desde a preparação inicial, até a contínua e especializada, nas quais diferentes modelos, teorias, legislações e regulamentações interagem, e temos pouca experiência de interface entre escolas e mundo do trabalho, suas técnicas reais e inovadoras. O núcleo familiar básico é também fator de suma importância, não afetando somente as formas de inter-relacionamento na vida pessoal e profissional, mas porque muito da cultura e da curiosidade sobre o mundo virá daí, assim como a relevância do conhecimento na vida de cada um, vindo ele das escolas, ou de leituras, troca de experiências e auto aperfeiçoamento.

Outro fator a ser considerado é que preparo profissional é um campo de luta doutrinária e ideológica, com diferentes grupos intervenientes, cada um com posições a defender, algumas vezes com imensa agressividade; e também por este domínio constituir um daqueles em que muitos se sentem à vontade para emitir opiniões, nem sempre com conhecimento de causa.

A carreira diplomática tem sido um ótimo exemplo. Grandes personalidades brasileiras passaram pelo Itamaraty, foram bons diplomatas e, ao mesmo tempo, tiveram participação expressiva em outros campos, como os poetas Vinícius de Moraes e João Cabral de Melo Neto, o filólogo Antônio Houaiss

o romancista Guimarães Rosa, o escritor e intelectual José Guilherme Merquior, Rubens Ricupero, e tantos outros.

Com certeza não seriam tão representativos da melhor diplomacia sem perícia que permitisse, ao lado de um perfeito domínio de idiomas, a compreensão da política externa e um excelente domínio da cultura pátria. Subestimar as responsabilidades do diplomata brasileiro, assim como as complexidades técnicas e a multiplicidade das instâncias do treinamento propiciado pelo Itamaraty é desdenhar a questão educacional como instância de melhora do desempenho.

Equacionar um sistema de formação profissional que aproxime a qualificação dos trabalhadores do processo educativo, considerando os baixos índices de escolaridade, o preparo inadequado, a ineficiência e o desperdício macroeconômico de investimentos, é urgente. Certamente o desprezo pelo correto sistema educativo não nos levará muito longe, historicamente a sociedade brasileira não tem valorizado a escolaridade como fator determinante de superação do subdesenvolvimento, e onde chegamos desta forma não pode ser considerado exatamente um sucesso.
Embora nem sempre o desenvolvimento profissional – que ocorre em uma multiplicidade de maneiras – e a formação ocorram simultaneamente, pois na formação temos um movimento essencialmente externo (cursos, seminários, palestras) enquanto o desenvolvimento ocorre no movimento contrário, ou seja, de dentro para fora, envolvendo inclusive as reflexões, os projetos, a convivência, ambos são importantes. Formação é compartimentada, desenvolvimento pessoal é a soma de todos estes compartimentos nos aspectos cognitivos e de relacionamentos.

É possível, sim, ter sucesso em várias carreiras sem o chamado “preparo”, mas isso decorre de fatores imprevisíveis, ainda vivemos em um país onde muitos donos de grandes empresas designam seus filhos a cargos para os quais não são competentes ou interessados; algo semelhante ocorre no setor estatal, com as nefandas indicações políticas. O malogro dessas empresas ou estatais comprova o erro desta pratica.

O desenvolvimento profissional é, portanto, a mistura entre a educação formal e a informal. Nem todos, infelizmente, têm acesso aos recursos para atingir a plenitude da evolução necessária; mas o lamentável é assistir àqueles que até teriam esses recursos agirem como tolos fazendo um absurdo elogio da ignorância.

 

 

 

 

 

 

 

Próximos distantes

O dramaturgo romano Públio Terêncio (“nada do que é humano me é estranho”) e o poeta inglês John Donne (“nenhum homem é uma ilha”), já haviam definido de certa maneira o que hoje chamamos de globalização ou mundialização cultural, o processo pelo qual nos sabemos integrados de modo definitivo uns aos outros. Para o bem e, mais ainda, para o mal, isto não implica necessariamente em sentimentos solidários, somos unos, estamos juntos em um mesmo planeta e partilhamos seu destino, nem por isso agimos como irmãos, sequer às vezes como pessoas de bom senso.

Temos, e teremos sempre, necessidade de valores próprios a nós e a nossos próximos, e isso é positivo e nos define como indivíduos e grupos sociais: idiomas e idioletos, regionalismos, culinárias específicas, modos de trajar e habitar, música e outras artes, preferências estéticas; além das inevitáveis e não culturais características físicas.
Lembramos com tristeza a morte de um missionário numa pequena ilha, por população que não desejava contato externo; apesar da crescente homogeneização cultural pequenos nichos permanecem quase intocados, nos alertando para as diferenças imensas que ainda temos entre nós, apesar da humanidade compartilhada.
Independentemente de quem teria ou não razão neste triste episódio, fica bastante evidente que nenhum de nós tem uma resposta definitiva e única em relação à percepção que temos da realidade, a qual muitas vezes nos leva a um misto de estranheza, curiosidade, surpresa ou incompreensão. Entretanto, todo estranhamento tem ao mesmo tempo uma função esclarecedora, já que descobertas inovadoras partem dele, fazendo procurar motivos, iniciando uma investigação científica e levando ao conhecimento.Analisar algo com assombro, com aquilo que denominamos olhar estrangeiro, ou seja, daquele que acaba de chegar, que é capaz de ver o que os demais já não podem perceber, que apreende pela primeira vez, sendo capaz de viver histórias originais num lugar de rotina, descobrir beleza naquilo que ninguém mais a concebe, ou o horror do que já se considera normal, torna produtivo o modo de percepção ao retirar obstáculos para o reconhecimento do real: por meio de uma outra cultura é que reconhecemos a nossa de forma mais completa e profunda.
Vamos aos poucos perdendo o sentido do outro – quem eram nossos antepassados? – de onde viemos? – quais caminhos percorremos? – e assim não podemos distinguir percursos futuros. Mas é no aspecto existencial, quem divide o bairro, a cidade, a Terra conosco, que a dificuldade maior se apresenta, como se nossa identidade excluísse todo o não-eu. Catalogamos os demais quantitativamente, porém não qualitativamente, incapazes de detectar os valores éticos, morais, espirituais ou mesmo estéticos de outras comunidades.
Aquilatar com horror, como se pela primeira vez, a quantidade de lixo que produzimos diariamente, o estado a que estamos reduzindo os oceanos e toda a vida marinha, nossos confortáveis e mortíferos plásticos, a extinção de muitos animais, a crueldade que exibimos frente a tudo e todos que não são exatamente os nossos muito próximos, ou que represente nosso interesse imediato, certamente nos transformaria.
Alguns países estão aderindo às bicicletas, aos biodegradáveis, a menos embalagens, aos maiores cuidados com o lixo, à diminuição dos impulsos consumistas, mas a estes olhamos com o enlevo dedicado às causas perdidas, exóticas, sonhadoras. São estrangeiros, não somos nós.
Nós, os não estrangeiros, chocados e envergonhados, como na tragédia que ocorreu em Minas Gerais e com a que vitimou meninos jogadores de futebol, contemplamos necessidade de cumprir as leis já existentes e não procurar motivos e pretextos para torna-las inócuas, não “judicializar” questões que extrapolam a própria justiça, são morais e essenciais para a sobrevivência de nós todos.
Que olhar estrangeiro seria necessário para que não nos habituássemos a estas catástrofes que produzimos por ganância, imprudência e negligência?

Entre o real e o irreal

Nossos dirigentes máximos parecem ter se especializado em produzir factoides e histórias da carochinha nos quais esperam que acreditemos com fervor: desde visões miraculosas até mamadeiras em formatos exóticos, passando pelos retornos ao passado em termos comportamentais e proposições de tarefas absurdas para quem conhece as atribuições efetivas de determinadas áreas. Temos sido expostos a todo tipo de afirmações fantásticas e, de certa forma, desligadas da veracidade mínima esperada de pessoas em posição de proeminência.
Educados num país de tradições religiosas, herdamos todas as características de um imaginário ancestral, e temos dificuldade em separar o racional do sobrenatural, que neste tipo de cosmovisão não correspondem exatamente a duas ordens irredutíveis e inconciliáveis ou mesmo contrárias. Assim, assumimos que forças desconhecidas, espíritos do Mal, entidades diabólicas, fantasmas, monstros, bem como santos, anjos e forças do Bem podem interferir no cotidiano, transformando nossas vidas.
A separação entre estas esferas se efetivou um pouco mais completamente a partir do século XIX, em que certo desenvolvimento das ciências e da tecnologia permitiu uma visão mais distanciada da magia, da superstição, do ocultismo e mitologias; e outros povos, principalmente os considerados mais pobres, quando não o fizeram passaram a ter neste fato um claro sinal de sua inferioridade cultural, quando comparada ao estágio teoricamente mais avançado, promotor de progresso e conhecimento da sociedade ocidental.
O fundamento desta convicção estava assentado sobre o uso da razão, e consagramos o racionalismo pelo modelo teórico evolucionista o qual pregava a dessacralização da vida cotidiana e também do universo social, econômico e político.
No entanto, a julgar pelo estado atual da política brasileira, uma certa ausência do princípio de causalidade tem outorgado aos espaços fictícios uma legitimidade que não problematiza a dicotomia entre o real e o imaginário, já que verossimilhança não tem ocupado o cerne dos discursos de nossos governantes.
Narrativas predominantes estão, muitas vezes, numa perspectiva empírica da realidade, sem ao menos referir-se ao absurdo, porém instalando um universo irreal que não causa qualquer estranhamento, questionamento, ou espanto, embora não estabeleça nenhuma conexão entre o convencionalmente dado como real e sua total contradição, o irreal.
O universo destas historietas, fechado em si mesmo, é excludente e hermético, e ao mesmo tempo corriqueiro, estabelecido sobre bases ilusórias, mas aparentemente assentado sobre o mundo familiar e de bons sentimentos pátrios e de costumes apropriados.
Histórias improváveis, de mensagens moralizantes, verdadeiros contos de fada para adultos de imaginação hiperativa, que desconstroem a concepção antinômica entre real e imaginário – cada vez mais, a imaginação não apenas faz parte da realidade, como se uma não pudesse ser conhecida e concebida sem a outra, como a magia fica impregnada no mundo material.

 


Quando se declara a exclusão como norma e necessidade de agrado à autoridade, quando projetos grandiloquentes são apresentados – e logo depois retirados, poucas vezes se voltou tanto atrás em decisões globais disparatadas, deixando alívio por um lado e assombro por outro -, quando começam a proliferar dúvidas quanto a um golpe ou a total insanidade, quando já não sabemos onde está o fato ou a ficção, talvez seja tempo de parar.
Enfrentar o verídico, sem falsas ilusões de um passado mítico ao qual retornar, entendendo-nos humanos e falíveis, porém não ilógicos e destituídos de bom senso e cognição, além de detentores de um pouco de sabedoria acumulada durante todo este périplo republicano, como um povo que errou (muito) e acertou (um pouco), entretanto sempre na trilha do autêntico.
É indispensável que voltemos às teorias racionalistas e positivista moderna assumindo um discurso de apoio à supremacia do real sobre o irreal, do lógico sobre o ilógico, do racional sobre o irracional.