A mulher do governador de São Paulo, em conversa com uma socialite, seja lá o que isso for, se manifestou contrária às doações de alimentos aos moradores de rua pois isso “seria um estímulo a que eles permanecessem nessa condição”.
Com a repercussão negativa à impropriedade, a “primeira dama” apelou ao recurso comum a quem diz bobagens e é surpreendido pela opinião pública: declarou ter sido mal interpretada e que sua fala foi tirada de contexto. Talvez, mas é de pensar em qual contexto a ideia de não alimentar os mais vulneráveis da sociedade seria menos abominável.
Existe uma série de mitos acerca de miséria, é como se as pessoas escolhessem “perder”, viver em condições precárias e humilhantes apenas por um ato de vontade. Dormir no chão das cidades, por vezes em temperaturas abaixo de dez graus, estar o tempo inteiro sob ameaça dos poderes públicos e dos que se arrogam o direito de agredi-los, comer por vezes apenas o que outros descartam.
Imagina-se que a maioria dessas pessoas optaria por uma vida mais fácil, é o que fazem os que se abrigam temporariamente nas instituições de proteção; mas para muitos as exigências de cumprimento de horários, abstenção de álcool ou outras drogas, até mesmo a obrigação de tomar banho ou conviver com outras pessoas, não são negociáveis em troca de umas poucas noites teoricamente mais confortáveis e seguras.
Muitos moradores de rua são levados a isso por pobreza extrema, desavenças familiares, perda de emprego ou de casa, esses podem ser “salvos” para a sociedade mediante políticas públicas de inclusão, renda mínima, habitação social. Mas há um contingente que está além das possibilidades convencionais, são os que se deparam com a escolha entre o insuportável e o menos insuportável, padecem de indisciplina patológica, inadequação social, vício em drogas, doenças mentais várias; talvez sejam os que mais precisam de ajuda, muito mais do que marmitas que os “estimulariam a continuar na rua”, permanecem na rua por que não conseguem viver em outro lugar, e isso não é nem um pouco lisonjeiro para nosso tipo de comunidade.
O Jardim de Proserpina – Algernon Charles Swinburn
E não podemos romantizar a miséria, a grande maioria é infeliz, desadaptada, em risco de doenças várias e de vida; não são os “clochards” parisienses charmosos e, na verdade, inexistentes conforme a fantasia.
De forma geral estiveram à margem do sistema educacional, ou nunca tiveram qualquer espécie de acesso, e assim tem pouca ou nenhuma probabilidade de um emprego formal, pouca compreensão do mundo e de si mesmos, ou estão já fora de qualquer possibilidade de convivência segundo as normas sociais. De forma geral estiveram desde cedo imersos em situações de violências e abusos, que os marcaram de tal forma que não são discursos motivacionais que irão abrandar os estragos emocionais e cognitivos. Afeto é importante sempre, mas algumas síndromes exigem mais que isso para serem tratadas.
Este panorama exigiria um programa sério, completo, envolvendo as áreas de saúde e educação e desenvolvido por pessoas competentes e bem-intencionadas para a solução; mas o país vive uma crise de valores morais ou de desinteresse puro e simples em outras formas que não a repressão como solucionar seus problemas. Estas pessoas recebem muitas agressões, principalmente por parte do que chamamos segurança pública, e o ciclo de brutalidade se agrava cada vez mais.
Quando aqueles que tem acesso às escolas revelam-se insensíveis ou mesmo ignorantes das mazelas sociais, mostram que cidadania não tem sido o foco do percurso formativo, o que permite pessoas pouco empáticas em posições de comando ou proeminência, capazes de “opiniões” como a emitida.
Como resolver o dilema entre conteúdos formais – matemática, história, geografia… – e aqueles indispensáveis para o conhecimento da realidade social, da problemática comunitária? Num tempo em que as ciências humanas estão sendo profundamente desprezadas, não será simples.