RAZÃO E SENSIBILIDADE….

O processo educativo caracterizou-se, durante a maior parte da civilização, pela ênfase na aprendizagem do pensamento racional, desenvolvimento da capacidade do autogoverno segundo as leis da razão, resistência às emoções e desejos.

Ao longo dos anos, por um excesso de preocupação com a questão, parecemos nos ter afastado de qualquer expressão emocional, deixando então de acreditar que pudéssemos aprender pela sensibilidade; e a escola foi se caracterizando apenas pela apologia da racionalidade, algumas vezes se mantido apartada inclusive das artes plásticas, da música e demais formas consideradas mais sensíveis de expressão.

No entanto hoje parecemos estar sofrendo o efeito contrário, e estamos, como comunidade, vivendo o que parece ser um excesso de suscetibilidade, nos afastando do império da razão, agindo como seres imaturos que não toleram a menor crítica, não podem ouvir que cometeram algum erro, por menor que este seja – passamos a considerar que somos perfeitos, e não admitimos descensos em nossa autoestima.

Nas redes sociais apenas mantemos pessoas que pensam exatamente como nós e têm as mesmas opiniões políticas e iguais gostos, e relacionamentos amorosos são desfeitos com celeridade ao menor sinal de “imperfeição” – leia-se diferença de ponto de vista – do outro.

Nas atividades profissionais, onde problemas reais podem existir, e muitas vezes são sérios, nem sempre estamos efetivamente analisando fatos com isenção, constituindo verdadeiras equipes, trabalhando em prol da comunidade. Às vezes preocupados em destruir a realização alheia, dificilmente somos inovadores e autônomos.

Ilustração de Pawel Kuczynski.

 

Nas escolas torna-se cada vez mais complexo um professor repreender alunos por comportamentos indevidos ou mau aproveitamento, a culpa será obviamente debitada a ele, que não ensinou adequadamente. Estudar, dedicar-se às leituras complementares, esforçar-se para aprender são ações penosas ou de difícil realização.

Preservar o amor próprio do estudante, reconhecer sua ausência de orientação, mesmo quando este não tem o menor interesse em superar suas próprias dificuldades parece mais relevante do que estabelecer como meta a sua aprendizagem, já que ninguém aprende sem acrescentar às aulas um tanto de esforço pessoal. O modelo desejado para o futuro do estudante parece centrar-se, às vezes, num máximo de vantagens pessoais, com um mínimo de ações comunitárias.

Para melhorar, é indispensável um objetivo a atingir, comprometendo-se com ele, com o reconhecimento de sermos imperfeitos e carentes de conhecimento. Conhecer o périplo humano, nosso percurso em relação à eliminação da ignorância, nossas dificuldades e defeitos ao lado de nossas qualidades e potencialidades é fundamental para a melhoria da ciência, da tecnologia e também de nossa convivência com os demais.

Estamos, no entanto, em um momento no qual docentes têm sido censurados por abordarem em sala obras de autores reconhecidos, porem escritas em outras épocas, e que hoje, descontextualizadas, são consideradas ofensivas a minorias ou difíceis demais para o conhecimento precário de muitos.

Bonito ou feio, este é o percurso que realizamos, e estas obras poderão ser utilizadas exatamente para frisar a evolução que tivemos em muitas áreas, desde aquela em que utilizávamos teias de aranha para cicatrizar ferimentos ou considerávamos que a escravidão era “natural”. Afinal, se sempre fomos corretos, inclusivos, bondosos e solidários, porque estaríamos como estamos?

Relatar com o máximo possível de fidelidade nosso passado, analisando ganhos e perdas ao longo do processo, facilitar a percepção do muito conquistado e os avanços ainda realizáveis, refletindo a verdade de nossa natureza humana, é essencial para melhorar nossos procedimentos, este é o papel da escola.

A VIOLÊNCIA DIFUSA NA ESCOLA…

O sociólogo Émile Durkheim, um dos fundadores da sociologia moderna e um dos pilares dos estudos sociológicos atuais, considerava o crime como de certa forma inerente à comunidade humana, um fenômeno social normal, não constituindo, portanto, uma característica patológica. Ainda assim, percebia-o como “ruptura com a consciência coletiva”, em função do que sofre punição pela lei penal.

É preciso lembrar que durante muito tempo a justiça foi ministrada por grupos, tribos, famílias, sendo pouco mais do que simples vingança; porém, com a concentração da função de vigiar e punir nas mãos do poder estatal, houve tendência forte de redução da violência descontrolada.

No entanto, um dos sintomas da falência do Estado é a ocorrência de linchamentos, quando os cidadãos voltam a “tomar a justiça nas próprias mãos” e punem pessoalmente quem cometeu, ou é suspeito de cometer, crimes como roubo, estupro, assassinato, violência, assédio, que deveriam ser investigados, julgados e punidos pelos sistemas policial e judiciário; infelizmente, parte da sociedade parece ter perdido a confiança de que isso acontecerá de fato.

No calor de momentos dolorosos ou situações revoltantes, pessoas normalmente tranquilas deixam-se conduzir por um sentimento de “manada”, basta que alguém grite que o acusado deve apanhar para que a multidão comece o espancamento, e até a morte. É evidente que mesmo os culpados não devem ser tratados desta maneira, e muito menos os inocentes como é comum acontecer, bastando a semelhança com quem supostamente cometeu o delito, o azar de estar próximo ao local do crime e, mais absurdamente ainda, não ter a aparência ou o comportamento que o grupo atribui aos inocentes.

Na Idade Média, parteiras, viúvas ou mulheres menos conformistas foram queimadas como “bruxas”, passados seis séculos do fim daquele período histórico é mais do que hora de pararmos com esse procedimento bárbaro.

Além destes episódios mais localizados, temos assistido também àquilo que podemos chamar de violência difusa nas sociedades do século XXI. Violência que tem sido legitimada precisamente por uma consciência coletiva, e justificada de várias maneiras, quase que constituindo uma norma social, por mais controvertida que pareça aos estudiosos da área.

Fonte: http://fundacaotelefonica.org.br/wp-content/uploads/2016/06/estudante-alvo-violencia-700-carlos-latuff.jpg

Por representar uma inversão do que poderíamos chamar de processo civilizatório, tem sido difícil ao Estado contemporâneo o enfrentamento desta questão, que modifica as interações sociais para formas violentas de sociabilidade, já que representa a perda do monopólio da violência legalizada, que desde o final do século dezenove parecia seu atributo exclusivo.

A fragmentação social, o desprestígio da possibilidade de soluções institucionais, a perda da solidariedade, a certeza de que certos problemas não têm solução, nos trazem o acirramento da pobreza, exclusão, meio ambiente degradado, discriminações de gênero e raça, que, entre outras brutalidades generalizadas, destroem o vínculo social, não permitindo a visão do outro como sujeito de direitos.

Tais agressões constituem uma perda do conceito de cidadania, escapando da área jurídica ao consolidar padrões de conduta divergentes e incompatíveis, em contraponto às normas civilizadas, caracterizadas por autocontrole e controle social institucionalizado.

Em vários ambientes, mas particularmente nas escolas, que refletem todas as características de nossa sociedade, boas ou ruins, instala-se a prática da violência como busca de justiça, a ação punitiva individual e o fortalecimento da cultura de “ganhadores ou perdedores”, que acentua o individualismo competitivo, o hedonismo e a ideia corrente do “tudo ao mesmo tempo, aqui e agora”.

O processo ensino-aprendizagem não é instantâneo, exige maturidade, reflexão e solidariedade, sendo, portanto, a antítese da selvageria e crueldade.