Obviamente, o título deste artigo é exagerado. Alguns diriam até que incorre em grave erro. Mas sua função aqui é, justamente, levantar uma questão muito importante com relação àquilo que a arte comunica e como se dá essa comunicação.
Além das preocupações quanto a comunicabilidade dos signos e de suas linguagens, a semiótica contemporânea vem se debruçando sobre as diferenças e semelhanças entre a significação lógica e a fruição estética. Há quem ainda sustente o dogma, segundo o qual não é possível comunicar algo entre duas ou mais pessoas, sem a troca e interpretação de signos agrupados em textos/discursos. A maior parte dos grandes pensadores ocidentais ocupou-se em alguma medida com o problema da significação, uma vez que a criação e transmissão de ideias provêm, em boa medida, de sinais codificados pela cultura, aos quais se dão significados arbitrários, de modo que eles possam ser vetores de pensamentos socialmente partilhados.
Para descrever a comunicação de ideias, desde Platão e Aristóteles, até nossos dias, utilizamos o conceito de “relação sígnica”, composto pelo objeto (de que se faz menção), pelo signo (que faz menção do objeto) e pelo intérprete/leitor (que menciona algo sobre o objeto por meio do signo). Este modelo geral de significação foi concebido tendo como base a linguagem verbal.
[Na] Grécia clássica a necessidade de um vocabulário técnico e conceitual para ser usado na análise lógica das proposições resultou num sistema das partes do discurso [verbal] que acabou tendo um desenvolvimento que ultrapassou em muito as exigências imediatas dos filósofos… (WEEDWOOD, 2002, p. 17)
Com os signos arbitrários, relacionados entre si por meio de regras de subordinação, sintagma e posição (códigos gramaticais), os pensadores gregos já “regularizavam” o mundo real, agrupando os fenômenos e objetos em categorias e gêneros conceituais. Esse foi, e continua sendo, o uso mais corrente do signo, que serve como um modelo abstrato do mundo real a serviço da lógica do intérprete.
Quando a Grécia foi dominada por Roma, sua filosofia e sua gramática já estavam tão desenvolvidas, que serviram de base para dotar o latim com uma gramaticalidade (logicidade) extremamente eficiente. E desde Roma, até a idade média, o latim foi a língua de toda a intelectualidade e erudição – a língua internacional que unia todos os cristãos letrados, assim como a língua mais bem descrita à disposição do linguista e do filósofo.
Na baixa idade média, contudo, as línguas vernaculares nacionais começaram a ser escritas e a florescer sua literatura. Em razão disso, surge a necessidade de fornecer ao vernáculo uma gramática de boa procedência, que enriquecesse as significações da língua nacional.
Desse modo, a lógica gramatical das línguas vernáculas foi basicamente erigida a partir do latim. Daí segue o fato de que a cosmovisão (teologia) dos gramáticos medievais, vinculados à igreja e inspirados na antiguidade greco-romana, proveu as línguas vernaculares europeias de toda a lógica clássica platônica e aristotélica (metafísica), que até hoje podem ser encontradas nas regras gramaticais ensinadas nas escolas. Mas,
… a tradição ocidental é marcada por uma importante e irreversível mudança de direção que ocorreu durante o século XV. A linguística, como todos os outros campos da atividade intelectual, teve seu caráter fundamentalmente alterado no renascimento. (…) Uma divisão entre linguística pré-renascentista e pós-renascentista é, quase sempre, mais adequada. (WEEDWOOD, 2002, p. 23)
O século XV testemunhou numa profunda ruptura na logicidade gramatical das línguas europeias, por conta da proliferação de livros impressos com a invenção da tipografia por J. Gutenberg. Contando então com muito mais leitores, as línguas vernáculas já dispunham de muitas histórias, relatos, filosofias, estudos religiosos, romances e poesias formando um inimaginável mercado editorial, a partir do século XVI. Para dar conta de tamanha expansão das letras, as gramáticas nacionais tornaram-se ainda mais lógicas, mais formais, mais objetivas, mais minuciosas, de modo a sustentar os variadíssimos tipos de textos que saltavam sôfregos das prensas europeias e americanas. A partir do renascimento, passando pelo iluminismo, até a contemporaneidade, o livro se tornou, então, a grande mídia do ocidente – um veículo privilegiado da lógica linguística, que vai pastorear toda a ciência, filosofia e outros ramos da atividade intelectual, até o século XX. Entretanto, o poder da palavra não deixou de ser eventualmente criticado, ao longo dos séculos.
Guilherme de Occam (c. 1285-1349), por exemplo, foi um dos pensadores que negou a existência de qualquer conexão intrínseca entre palavras e realidade. (…) A língua, concluiu Occam, não serve como um espelho da cognição ou da realidade exterior; seria muitíssimo melhor estudar diretamente o pensamento – ou a realidade –, dispensando a mediação traiçoeira da linguagem.” (WEEDWOOD, 2002, p. 59)
Hoje, nos habituamos a aceitar que a palavra não representa, nem significa (não é signo de…) um objeto, mas uma ideia, um conceito abstrato (genérico e categorial) acerca do objeto. A lógica da representação (significação) reside na regularidade (padrão, norma) com que a convenção plasma as ideias dos objetos sob sua análise/leitura. A lógica, portanto, é uma simulação (no interior das linguagens) da ordem que se crê haver no mundo real. Assim, ao buscar por uma mimesis ideal da natureza, a ordem linguística supõe um valor universal.
Entretanto, apesar da simulação ser eficiente, ela não abrange a totalidade dos fenômenos representados. E pelo fato da simulação (significação) ser incompleta, emerge a forte impressão de que o mundo real não pode ser coberto pela lógica. Grandes extensões da realidade escapam à normatização, padronização, unificação e universalização empreendidas pela lógica da representação.
A parte do mundo real que não pode ser representada pelos conceitos universalizantes é formada por um conjunto de diferenças (que se opõem às identidades conceituais), singularidades e de seus acidentes, que ocorrem fora da norma (lógica, conceito). Uma diferença contém acidentes que a individualizam diante de uma categoria, impedindo-a de se transformar em conceito (representação de uma norma). Essas diferenças, singularidades e seus acidentes são sinais do mundo real, detectados por meio das percepções e sentidos (sensação = aisthesis) humanos. Enquanto o conceito é sempre uma abstração identitária, uma singularidade tem relações mais íntimas com a materialidade e concretude do mundo real.
Como define Charles S. PEIRCE (2003, p. 46), o signo é aquilo que representa algo para alguém. Ou seja, o signo precisa ser algo materialmente detectável (pelos sentidos humanos), utilizado como representação de algo (objeto), para alguém (o intérprete do signo). O processo de significação é uma pergunta que se faz ao sinal percebido pelos sentidos (o que significa isto?). Para as linguagens lógicas, o sinal percebido já foi antecipadamente convencionado para representar um conceito genérico do objeto. Ex.: o signo verbal “mesa” não representa uma mesa singular, mas o conceito categorial do objeto-mesa.
O objeto das linguagens lógicas pode ser representado por signos, porque se referem ao objeto/fenômeno em decorrência de uma convenção ou lei. Entretanto, as coisas que são percebidas como singulares, não podem ser significadas ou representadas por um conceito abstrato, deduzido de uma norma categorial. Há sinais percebidos pelos sentidos que não chegam a significar (representar) o conceito de alguma coisa. Mesmo assim, não deixa de haver nesse processo uma operação cognitiva. Embora não seja uma operação lógico-cognitiva, trata-se de uma operação estético-cognitiva.
Enquanto a logicidade forma o conjunto das qualidades do objeto/fenômeno que podem ser representadas ou significadas por conceitos abstratos universalizantes, a esteticidade é o conjunto de qualidades singulares (concretas, materiais, a-normais e in-significantes) que não se submetem às generalizações, uniformidades e padronizações abstratas e conceituais. Se a lógica busca antever os movimentos padronizados do mundo real, empregando generalizações abstratas para simular a normalidade (leis naturais) na mente, a estética é a cognição do singular, por meio da percepção dos sentidos, que gera o conhecimento sensível (cognitio sensitiva) das coisas. Desse modo, para além das fronteiras da lógica, tem início o campo da estética. Lógica e estética não são contraditórias, mas complementares.
A esteticidade das coisas provém de sua materialidade, cuja manifestação depende do tipo de sensação produzida no intérprete-fruidor, diante da presença da coisa (ou de sua reprodução). Melhor dizendo, enquanto o signo lógico (representativo) pode significar seu objeto sem que este esteja presente, a cognição sensível só é possível diante da presença real (ou virtual) da coisa.
Logo, não pode haver “signo estético” que não seja a coisa mesma (um singular); não há qualquer signo que represente (o conceito de) uma obra de arte. Nesse sentido, a obra de arte é única: pode-se reproduzi-la, mas não se pode representá-la (ou conceituá-la). Por exemplo: a crítica especializada de uma apresentação musical, a descrição dos atributos de uma pintura, o comentário sobre uma representação teatral, por mais profundos e pertinentes que sejam, não são signos dessas obras de arte, nem as representam.
Não é por meio de signos representativos (lógicos) que a obra de arte comunica seus sentidos, mas pelos efeitos estéticos e patêmicos causados por sua presença real (ou virtual) diante da percepção do fruidor.
O sentido lógico do signo representativo não ocorre nas coisas materiais, porque a significação lógica opera no signo (separado) das coisas, para gerar uma representação abstrata dessas últimas. Já que a lógica essencialista não lida de maneira imediata com as coisas, o signo lógico manipula conceitos (sobre os objetos) que podem ser articulados em sistemas semióticos. Os textos lógicos são histórias acerca dos objetos, emitidas por usuários da linguagem, conforme o tempo e o lugar.
Diferentemente, a cognição sensível (estética) não provém de duas entidades separadas (signo + objeto), mas constrói-se na presença real (ou virtual) da própria coisa, pela afetividade gerada na recepção. Ao contrário do signo lógico, que comunica uma norma de maneira objetiva e convencional, a obra de arte é um singular que não pode ser convencionado, por se tratar de um conjunto de acidentes concretos que ocorre fora da norma abstrata.
A lógica busca sempre pelo conteúdo, que pode ser representado por signos e textos codificados, para construir uma ideologia sobre o mundo real. A esteticidade, por seu turno, resulta da cognição sensível (aisthesis) operada apenas na presença da forma real (ou virtual) da coisa (artística ou não). Desse modo, a estética tende a privilegiar a forma.
Forma e conteúdo, na cultura, não são contraditórios, mas complementares.
Havia um mito na modernidade, segundo o qual o projeto racionalista (fruto da cultura letrada) tinha por finalidade de conduzir a humanidade a uma sociedade perfeita, isto é, ao império da razão. O signo lógico é, de fato, “teleológico”, uma vez que ele tem sempre uma finalidade, qual seja a de representar (a priori) o conceito de um objeto – trata-se de um pré-conceito antecipado por convenção. A lógica, assim entendida, é o a priori da física, ou seja, a lógica é uma espécie de “metafísica”. E como uma metafísica, a lógica tende a apreender o mundo físico aprioristicamente, de modo a ordená-lo por gêneros, a antecipá-lo por conceituação, isto é, a recriá-lo idealmente.
Ao invés disso, a esteticidade das coisas não pode ser prevista, porque ela não ocorre antecipadamente – trata-se de uma forma concreta existente no espaço-tempo –, mas apenas no momento mesmo em que é experimentada pelo fruidor. Assim, a esteticidade das coisas (ex.: obra de arte) não pode ser teleológica, não tem finalidade no horizonte, por ser uma experiência presencial – e não uma reflexão. A estética, mais vinculada ao singular, é uma forma de ‘física’ que tende a apreender o mundo fenomênica e empiricamente.
O registro das palavras e dos números (manuscrito ou impresso) foi por milênios a mídia mais econômica e eficiente para criar e transmitir conhecimentos conteudísticos. A formação cultural do ocidente é tributária da escrita verbal (e matemática), portanto, nada mais compreensível do que a longa hegemonia do pensamento lógico-abstrato sobre a manifestação estética das formas.
Para os zelosos guardiões da cultura letrada, o surgimento das mídias audiovisuais, a partir do século XIX, se transformou no vaticínio de um amargo retrocesso, por que não comunicam só conceitos, mas também a manifestação sensacional (lat.: sensatio) das formas singulares. Por não ter conteúdo convencionado linguisticamente (ou matematicamente), a esteticidade das coisas não pode ser “explicada”, isto é, não pode ser logicizada; mas apenas experimentada – fruída pelo perceptor, a partir de sua presença física ou virtualizada pelas mídias audiovisuais. A esteticidade provoca uma quebra da ordem probabilística da lógica, por que está vinculada à originalidade do singular. Essa originalidade da mensagem estética depende da criatividade que, por sua vez, só ocorre na medida em que se rompem com as regras, normas, uniformidades.
Diferentemente da cognição lógica, cujo objetivo é transcender os fenômenos para dar-lhes uma ordenação hierárquica para além de suas ocorrências concretas, a cognição estética visa apreender os dados concretos dos fenômenos, fruindo-os por meio da experiência subjetiva direta. Existe esteticidade em toda experiência humana de percepção de formas como, por exemplo, nos gestos desencadeados por um esporte, pela comunicação corporal, pelo passeio tátil das mãos sobre um corpo, pela audição de uma música ou pelo impacto de uma imagem. A comunicação estética não está sempre vinculada à arte, assim como o som não está sempre vinculado à música.
Para a abordagem semiótica da arte é preciso considerar a definição e diferenciação entre a percepção, a percepção estética e a percepção estética da obra de arte (ECO, 2002, p. 232). Eco define o evento estético como uma manipulação da forma que provoca um reajustamento do conteúdo, levando, por fim, a uma mutação de código e mesmo a uma mutação de visão de mundo. Daí a possibilidade de a estética constituir outros modos de conhecimento socialmente relevantes, inclusive para além da esfera das artes.
A ideia logocêntrica de que as artes servem tão-somente para produzir deleite, guarda resquícios de um preconceito da lógica universalista contra as manifestações singulares. O prazer gerado pela experiência estética (catarse) provém da ruptura em relação à convencionalidade – trata-se de um efeito colateral provocado pela libertação da lógica.
Por outro lado, a experiência estética também é um poderoso meio de investigação e inferência do real, podendo oferecer à lógica muitos elementos de análise crítica, aos quais o pensamento abstrato não tem acesso por meio de deduções e antecipações categoriais. A experiência estética em geral (e a arte em específico) desenvolve outro modo de conhecimento, que não se baseia no logos, mas na aisthesis. Os conhecimentos advindos da fruição estética não são sistematizáveis por meio de inferências lógicas, nem traduzíveis em conceitos categoriais abstratos, porque são frutos da cognição provocada pela presença real (ou virtual) de artefatos análogos (objetiva e/ou subjetivamente) aos fenômenos encontráveis na natureza e na cultura.
É óbvio, então, que a aquisição de conhecimento legítimo acerca do mundo real, tendo por base a investigação estética, depende de uma cognição ana-lógica, vinculada à observação da forma dos fenômenos. Assim, toda forma reconhecida pela cultura pode ser analisada sob o ponto de vista de sua esteticidade, tanto quanto de sua logicidade. Melhor dizendo, os textos culturais (compostos de signos lógicos e sinais estéticos) estão mesclados de logicidade e esteticidade, de modo que só a gradação (+ lógico ou + estético) é que “separa” a ciência, a filosofia, da arte.
Conclusão – é preciso ter em mente que até o século XIX, o registro e comunicação das linguagens lógicas (verbal e matemática) eram mais econômicos e, por conta disso, toda a cultura ocidental beneficiou-se de livros que formavam conceitos, ideias abstratas, representações e outros conteúdos. No entanto, a partir da invenção da fotografia (1829), até a Internet (1991), vieram à luz outras mídias capazes de registrar e comunicar imagens e sons em movimento, ou seja, formas e aparências físicas das coisas.
Com o advento das mídias audiovisuais, a forma estética pôde, finalmente, ter seu registro reproduzido. A reprodução virtual de singulares e acidentes (imagens icônicas, sonoras e cinestésicas) processada pelas mídias audiovisuais pode, agora, ser também compreendida como a representação da esteticidade das coisas. O pôster da Monalisa é uma forma midiática do quadro pintado por Leonardo Da Vinci, mas não é uma descrição ou um conceito abstrato acerca do quadro – o cartaz é o próprio quadro virtualmente reproduzido e colocado diante da percepção do fruidor. Embora não seja a mesma coisa que o original, tem caráter estético, e se trata de um análogo.
Se, no passado, o que prevalecia era a comunicação lógica das palavras e números, deixando ao campo da forma (estética) uma pequena participação no âmbito da arte (tutelada pela lógica linguística), com o advento das mídias audiovisuais o campo da forma ganha capacidade de comunicar sua esteticidade.
Enquanto o registro da escrita era restrito à elite, não exercia influência em toda a sociedade, que se pautava pela oralidade secundária (influenciada pela elite letrada). A partir de Gutenberg, o registro da escrita se democratizou, permitindo que a sociedade como um todo entrasse na era do letramento, gestor histórico do renascimento, do iluminismo e da modernidade.
No século XIX, surgem os registros das linguagens audiovisuais, mas enquanto esse registro era raro e oneroso, somente uma “elite” produtora dominava sua emissão. Entretanto, o consumo das formas audiovisuais se popularizou e em fins do século XX, com o advento da tecnologia digital, o registro das linguagens audiovisuais pôde ser democratizado, permitindo – à semelhança com a alfabetização geral nos séculos anteriores – que a sociedade contemporânea possa (re)produzir seus audiovisuais, inaugurando uma nova era cultural.
Referências
ECO, U. Tratado geral de semiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
PEIRCE, C. S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.
WEEDWOOD, B. História concisa da linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2002.