“A fotografia é um fenômeno estranho … Você confia em seus olhos ao mesmo tempo em que desnuda sua alma” (I.M.)
No filme “Abraços Partidos” de Almodóvar (2009) há uma cena em que o protagonista Mateo, um escritor cego, comenta que o dramaturgo Arthur Miller após ter se divorciado de Marilyn Monroe, foi casado com uma fotógrafa com quem teve um filho com síndrome de down, o qual rejeitou durante toda a vida. A fotógrafa em questão era Inge Morath, que embora relativamente pouco conhecida no Brasil, foi uma artista importante para a sua época. Trabalhou na poderosa Agência Magnum, ganhou prêmios, viajou documentando povos e culturas, e hoje existe uma fundação com seu nome que promove concursos anuais para fotógrafas iniciantes.
Ela pode ser considerada uma das fotógrafas pioneiras, no sentido em que foi uma das que quebraram barreiras, ousaram, inovaram e deixaram um legado artístico permanente. Nascida Ingeborg Hermine Morath, em 1923 em Graz na Áustria, seu pai era cientista cujo trabalho levou-o a diferentes laboratórios e universidades na Europa durante a sua infância, e ela acabou indo morar em Berlim. O primeiro encontro que teve com a arte-vanguardista foi o Entartete Kunst (Arte Degenerada) exposição organizada pelo partido nazista em 1937, que buscava influenciar a opinião pública contra a arte moderna.
“Eu encontrei uma série de pinturas emocionantes e me apaixonei por Franz Marc, especialmente seu “Blue Horses”, ela escreveu mais tarde. Mas só eram permitidos comentários negativos, e assim começou um longo período de calar e esconder os pensamentos.” No final da II guerra, Morath foi encaminhada para o serviço da fábrica de Tempelhof, em Berlim, juntamente com prisioneiros de guerra ucranianos. Devido a essa experiência negativa, ela recusou-se a fazer fotografias de guerra, preferindo trabalhar em temas que mostravam as suas consequências sociais.
Após a Segunda Guerra Mundial, trabalhou como tradutora e jornalista. Em 1948, ela foi contratada inicialmente como correspondente de Viena e, posteriormente, como editora para Heute uma revista ilustrada publicada pelo Office of War Information, em Munique. Na Viena do pós-guerra, ela encontrou o fotógrafo Ernst Haas (1921-1986). Trabalhando juntos para a Heute, escreveu artigos para acompanhar as fotos de Haas. Em 1949, Morath e Haas foram convidados pelo fotógrafo Robert Capa a integrar a recém-fundada Magnum Photos², em Paris, onde ela atuaria como editora.
As chamadas cópias contatos fotográficas enviadas para o escritório da Magnum por um de seus membros fundadores – o ‘mítico’ Henri Cartier Bresson – deixou Inge fascinada. “Eu acho que aprendi a fotografar estudando o modo como Bresson fotografava, antes mesmo de ter uma câmera na minha mão”, escreveu. No ano de 1951, começou sua nova atividade, durante uma viagem a Veneza. “Ficou imediatamente claro para mim que a partir de agora eu seria fotógrafa, eu sabia que poderia expressar as coisas que eu queria dizer, dando-lhes forma através dos meus olhos.”
Inicialmente, começou a trabalhar como secretária junto à Simon Guttman, que era Editor da Imagem Post. Após vários meses de aprendizado para atuar como fotojornalista, Guttman quis saber o que ela queria fotografar, e porque. “Não importa o tema, porque após o isolamento do nazismo senti que tinha encontrado a minha linguagem na fotografia”, respondeu. Passou vários meses fazendo o que se conhece em fotografia como eventos sociais: cobertura de exposições, inaugurações, acontecimentos noturnos etc., sob o pseudônimo de Egni Tharom, seu nome escrito ao contrário.
Em 1953 por sugestão de Robert Capa, foi trabalhar com Cartier-Bresson como pesquisadora e assistente, e logo depois foi convidada para se tornar fotógrafa efetiva da Magnum Photos. Durante a década de 1950 viajou incessantemente, fazendo coberturas na Europa, Oriente Médio, África, Estados Unidos e América do Sul para publicações em revistas como Paris Match e Vogue. Morath escreveu e publicou também mais de trinta monografias sobre seus ensaios fotográficos.
Como muitos membros da Magnum, trabalhou como fotógrafa em sets de filmagem, fazendo making of de vários filmes. Moulin Rouge (1952) do cineasta John Huston foi um dos primeiros trabalhos. Huston escreveu depois sobre ela: “É uma sacerdotisa da fotografia. Tem a rara capacidade de penetrar além das superfícies e revelar a essência das coisas”. Morath trabalhou novamente com Huston em 1960 no set de Os Desajustados, um ‘blockbuster’ com Marilyn Monroe, Clark Gable e Montgomery Clift, com roteiro do escritor Arthur Miller. Foi quando se conheceram.
Morath e Miller se casaram em 1962, e foram morar nos Estados Unidos, logo depois que ele se divorciou de Marylin Monroe. Tiveram uma primeira filha, Rebecca, que é hoje cineasta, atriz e escritora. O segundo filho do casal, Daniel, nasceu em 1966 com síndrome de Down e foi internado em uma instituição logo após seu nascimento. Arthur Miller jamais foi visitá-lo, apesar dos pedidos insistentes de Inge, e o filho não foi citado em sua biografia.
Durante os anos 60 e 70, trabalharam juntos em vários projetos. Sua primeira colaboração com Miller foi o livro Na Rússia (1969), que juntamente com Encontros Chineses (1979), descreveu as suas viagens na União Soviética e na República Popular da China. Embora a fotografia fosse o principal meio através do qual Morath encontrou sua expressão, era também escritora e falava diversos idiomas, isso fez com que tivesse fama incomum entre seus colegas. Ela escreveu muitas vezes de forma divertida sobre seus temas fotográficos, mas a maioria de seus textos só foram publicados postumamente.
Inge Morath foi uma das poucas mulheres que se tornaram membros da Magnum Photos, que até hoje permanece como uma organização predominantemente masculina. Muitos críticos têm analisado os elementos lúdico e de surrealismo que caracterizam o trabalho de Morath do início de sua carreira de fotógrafa. Ela atribuiu isso às conversas que teve com Cartier Bresson, durante as suas viagens à Europa e aos Estados Unidos. Continuou com seu trabalho até idade avançada, recebendo o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Hartford (Connecticut, EUA) em 1984.
A fotógrafa viveu até 2002, completando 78 anos. A Inge Morath Foundation foi criada por sua família em 2003, para preservar e compartilhar seu legado. Ela sempre encorajou entusiasticamente as mulheres fotógrafas e como tributo à sua colega, os membros da Magnum Photos estabeleceram a Inge Morath Award, um prêmio anual administrado pela Fundação e concedido a jovens fotógrafas, para apoiar o trabalho e a realização de seus projetos documentais de longo prazo.
Pode-se dizer que o trabalho fotográfico de Morath foi motivado pela questão fundamental do “Humanismo” (ou “Realismo Poético”) formado tanto pela experiência da guerra, e por sua sombra persistente sobre o pós-guerra na Europa. Essa motivação aumenta em sua obra madura com temas em que ela documenta a resistência do espírito humano em situações de extrema opressão, bem como as suas manifestações de alegria. As imagens dos fotógrafos da Magnum foram (e ainda são) acompanhadas pelas declarações dos próprios autores, que analisam o contexto do seu trabalho, no aspecto ético e estético.
Arthur Miller (1915-2005), definiu sua perspectiva filosófica, no artigo intitulado “Inge Morath And Borders” (em tradução livre):
“Para Inge, o conceito de fronteira entre culturas e raças era essencial para a compreensão dos povos. Criada sob o nazismo com seu credo super nacionalista maníaco, a resistência à tendência atual de caracterizar os indivíduos de acordo com suas origens e não como pessoas humanas era algo a ser combatido. (…) O que sua perspectiva histórica lhe deu foi um profundo respeito pelas diferenças e pelos indivíduos e suas culturas”. (Fonte- https://moazedi.blogspot.com/2016/02/inge-morath-and-borders-by-arthur-miller.html)
¹A Leica (abreviação de Leitz(sche) Camera) é uma empresa ótica alemã, com sede em Wetzlar fundada em 1913, por Ernst Leitz. Possui três unidades que produzem respectivamente: câmeras fotográficas, equipamentos de pesquisa geológica (topografia e geodésia) e microscópios. Para se ter uma ideia do valor das câmeras fotográficas: em maio de 2011 uma Leica, com ano de fabricação de 1923, foi leiloada por 1,9 milhão de dólares, tornando-se uma das máquinas mais caras da história.
(Fonte- https://pt.wikipedia.org/wiki/Leica_Camera)
² A Agência Magnum Photo foi criada em 1947 com sede em Paris na rua Faubourg Saint-Honoré, em instalações precárias e somente um telefone. “Foram cinco os fotógrafos fundadores: Robert Capa, David (Chim) Seymour, Henri Cartier- Bresson, George Rodger e Bill Vandivert, juntamente com duas fotógrafas fundadoras, Rita Vandivert e Maria Eisner − raramente citadas no processo constitutivo −, que se encarregaram das funções administrativas. Atualmente a Agência tem sedes em várias cidades, em quase todos os continentes.
(Fonte-https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/15/cultura/1497515001_383889.html)
Referências:
https://www.knowitall.org/photo/large-blue-horses-artopia
https://www.magnumphotos.com/theory-and-practice/learning-from-the-master/
https://www.artsy.net/artwork/inge-morath-marylin-monroe
https://photoplay.livejournal.com/250916.html?thread=767524
http://blog.alemdoolhar.com/2013/03/magnum-photos-agencia-de-fotografia.html