A nascente sociedade urbana da Vila de Entre-Rios e o lugar dos escravos libertos e seus descendentes. – 4ª parte

A cidade de Três Rios, inicialmente Vila de Entre-Rios, tem sua formação urbana vinculada aos espaços físicos das fazendas de café que pertenceram à Mariana Claudina P. de Carvalho, a Condessa do Rio Novo e seus pais, o Barão e a Baronesa de Entre-Rios. Os escravos, personagens com pouca acuidade para a história vista de cima, mas importantes no contexto historiográfico da Nova História Cultural, foram libertos por desejo expresso no testamento da Condessa que deliberou a utilização das terras de uma das suas propriedades para o assentamento destes e criação da Colônia Agrícola de Nossa Senhora da Piedade composta no ano de 1882 e extinta em 1932 motivada por uma combinação de fatores.

Neste artigo, dividido em 4 partes para publicação, analiso a inserção da população pobre e negra no espaço urbano de relação daquela sociedade nascente no pós-abolição, utilizando-me pata tanto, além das referências literárias, das fotografias do acervo acumulado nas minhas pesquisas do mestrado, entendendo-as em sua dupla dimensão como fonte e testemunho de memória, um lugar de lembrança relacionado a todas as representações a elas associadas, percebendo presenças e ausências destes indivíduos em determinados espaços e grupos de relação.

É possível admitir que a coletividade entrerriense, mesmo sendo de uma cidade em formação no interior do Estado do Rio de Janeiro, refletia a configuração da sociedade brasileira a época: nova organização social burguesa republicana (comercial, industrial e financeira), capitalista e urbana e são os representantes desta elite que produziram as imagens analisadas: o olhar fotográfico reflete em sua maior parte “as cenas” do cotidiano deste grupo.

Educação e Trabalho

No campo da educação, importante para inserção do indivíduo na sociedade e para a conquista de melhores condições de trabalho e renda, as fotografias que seguem indicam as oportunidades experimentadas pelos descendentes dos negros libertos. Em uma escola particular não estão presentes, em um colégio do Estado são percebidos em número menor e em uma escola técnica profissional, meninos negros aparecem sendo preparados para funções no mercado de trabalho, onde se exigia capacitação técnica e não o ensino superior.

Fotografia 1: Vista externa do Gynásio Pinto Ferreira, instituição educacional tradicional com matriz na cidade de Petrópolis/RJ. Nesta imagem alunos e professores estão perfilados; os meninos na frente abaixo e as meninas na sacada do edifício, não sendo possível identificar um representante negro entre estes. Fotografia do ano de 1935, sem fotógrafo conhecido, do acervo André Mattos
Fotografia 2: Vista externa do Grupo Escolar Condessa do Rio Novo, na Praça São Sebastião, com seus alunos perfilados em frente à escola, observando-se no primeiro plano à direita, crianças plantando uma muda de árvore, e junto a elas, a professora Alva Coutinho Carvalhido. Nesta fotografia do início da década de 1940, é possível observar à presença em número maior de crianças brancas e em maioria meninas, mesmo sendo este um colégio mantido pelo Estado. Do acervo André Mattos sem autor conhecido.
Fotografia 3: Vista interna da Oficina da Escola Profissional de Entre-Rios, onde a presença de jovens meninos negros aparece com maior destaque. No segundo plano ao fundo a direita, membros da diretoria desta instituição de ensino e atrás bem ao fundo, dois possíveis instrutores, que em sendo, seriam os únicos professores negros observados nas fotografias. Registro da década de 1940, do acervo André Mattos.

“Dentre os libertos retiraram-se logo após a recepção de sua liberdade 8 indivíduos, todos do sexo masculino, e estes foram somente dos que tinham ofícios e que preferiram exercê-los fora da colônia, como mais rendosos. Foi interesse e não outro motivo que os fez emigrar.Eles eram carapinas, ferreiros, pedreiros e cozinheiros. Estes retirantes deixaram de obter lotes na colônia (…).” 1

Alguns negros desenvolviam nas fazendas outros ofícios além da atividade na agricultura, trabalhos que exigiam maior esforço físico, e que, imputaram a estes, a representação de indivíduos aptos ao trabalho na carpintaria, nas serralherias, nas obras urbanas, como pedreiros, pintores, entre outros.

Fotografia 4: Vista externa do Armazém de Café construído em Entre-Rios pelo presidente de Minas Gerais, observando-se os trilhos da E. F. Central do Brasil, bem em frente de um dos galpões. Nota-se que os que estão descarregando as sacas de café do vagão são todos negros, em destaque na imagem pela posição e por estarem bem trajados, em sua maioria, por senhores brancos. Fotografia do início da década de 1930, sem fotógrafo conhecido, do acervo Srº Altair.

Esta condição de serem trabalhadores acostumados com a lida braçal, acrescido da necessidade de sobrevivência além das fronteiras das fazendas, conduziu a população negra a atividades outras nas cidades, mas sempre em posições onde havia o imperativo de uma mão-de-obra menos qualificada, nos setores residuais, limitados às práticas ou ocupações inadequadamente retribuídas e degradadas, posições onde havia o imperativo de uma mão-de-obra menos qualificada.

Identificado em alguns jornais com o nome de Carlos (há referências também ao Lucas da Lata D`água), temos como exemplo desta realidade, o indivíduo destacado no registro que se segue, que vendia latões de água pelas ruas do distrito de Entre-Rios. No segundo plano veem-se lojas comerciais, além da presença de três crianças, sendo que apenas uma está com os pés calçados.

Fotografia 5: Registro da década de 1920, sem informação do fotógrafo, acervo Srº Altair.

Desta maneira, quando da implantação das propostas de educação para o trabalho, como as Escolas Profissionais, estas receberam no seu início, um número maior de alunos negros. A educação formal, que permitia com mais possibilidades a ascensão social, educando os doutores e bacharéis, comerciantes e industriais, atendia majoritariamente, as crianças e os jovens da elite branca.

Um aspecto importante percebido na fotografia 8, única do meu acervo a demonstrar sua condição da mulher negra como provedora familiar através da ajuda assistencial, indicando que mesmo entre grupos silenciados e esquecidos, subsistem…

“(…) zonas mudas e, no que se refere ao passado, um oceano de silêncio, ligado à partilha desigual dos traços, da memória e, ainda mais, da História, este relato que, por muito tempo, “esqueceu” as mulheres, como se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução, elas estivessem fora do tempo, ou ao menos fora do acontecimento.” 2

Pesquisando sobre as transformações urbanas na Vila e depois, distrito de Entre-Rios, através dos testemunhos das fontes fotográficas, os estudos apontaram para um crescimento urbano no entorno dos espaços “indicados” pelas estradas rodoviária e ferroviária, além dos terrenos à margem esquerda do rio Paraíba do Sul, constituindo-se o que atualmente é identificado como o centro da cidade de Três Rios.

Neste período entre a Vila de Entre-Rios e a emancipação e criação do município de Entre-Rios, grupos sociais escreveram a suas histórias e memórias, refletindo na própria concepção dos espaços sociais de relação, seus embates de memória, concebendo zonas segregadoras e de inter-relação, nos territórios da cidade, não somente considerando sua ocupação física, mas e principalmente, a formação econômica e cultural da sociedade.

Uma análise da população da cidade de Três Rios na atualidade através dos espaços urbanos organizados em bairros residências populares e o centro dividindo-se principalmente entre os prédios mais luxuosos e casas residenciais e lojas comerciais – incluindo-se clubes, escolas particulares e universidades; permite constatar que os indivíduos negros e mulatos em sua grande maioria estão vivendo nos bairros em casas mais simples e trabalhando em atividades profissionais que exigem mais esforço físico e um nível escolar menor.

Mesmo distinta na sua origem do período delimitado neste trabalho, tem-se na imagem 86 digitalizada de um jornal, a configuração de uma representação que se construiu como consequência dos embates de memória entre grupos detentores dos poderes políticos e econômicos e as minorias sociais, presente ainda atualmente – que perdura desde o século XIX e que entendo define muito bem os papéis imputados aos negros.

Fotografia 9: Imagem digitalizada da parte superior da capa do periódico “Correio Trirriense” na sua edição de nº 413 de 30 de abril de 1970.

A imagem do negro neste exemplo está diretamente relacionada às representações do trabalho, de um proletariado amigo e subserviente, do homem humilde e religioso, simboliza o popular que se expressa enquanto grupo social apenas nas manifestações de cultura, música e esporte, aquele que se faz feliz com os benefícios providenciados pelos grandes líderes políticos. A posição do homem negro nesta imagem – ele está num plano menor, numa atitude de reverência -, indica uma supremacia de um (o branco benevolente) para com o outro. O texto de inferência a imagem reforça estes estereótipos.

 “Alberto Lavinas, o líder popular [o homem branco como líder, o chefe, o que segue na dianteira e tem suas vontades e determinações definidas como as melhores para o povo], o amigo dos trabalhadores, comemora o 1º de maio inaugurando obras que farão mais feliz o proletariado trirriense. No flagrante de Abdisio, o Prefeito Lavinas abraçando a um dos muitos trabalhadores trirrienses, homenageia de maneira simbólica, aquele que constrói a grandeza nacional: o Trabalhador Brasileiro.”


Em 22 de janeiro do mesmo ano, ou seja, 5 meses antes, na edição nº 401 do “Correio Trirriense” na sua capa, esta mesma fotografia é utilizada pela primeira vez, para enaltecer a relação entre o povo da cidade de Três Rios/RJ, mais especificamente, do bairro Monte Castelo, que através deste gesto de um dos seus moradores “agradecia” as melhorias realizadas naquele logradouro pelo governo municipal. O abraço representava a devoção e a manifestação de carinho de todos os residentes:

 “O governador trirriense recebe “AQUELE ABRAÇO” tão querido José Grilo, trirriense autêntico, homem do povo, velho motorista do DNER, morador antigo do bairro do Monte Castelo e irrestrito admirador do Chefe do Executivo trirriense”. 4

Os discursos da cidade são construídos e reconstruídos nas ações dos diversos grupos sociais que a compõem; mas todos de uma forma ou de outra, lembrados ou deixados no esquecimento, “escrevem” seus traços identificadores culturais: assim também os negros libertos e seus descendentes construíram sua fala, sua narrativa, memória visitada pelas fontes e testemunhos literários e fotográficos.

Referencias:

1 – Boletim nº 3 da Sociedade Central de Imigração do Rio de Janeiro, de 1884. Relatório do Srº Drº Ennes de Souza, apud, INNOCENCIO, Isabela Torres de Castro. Liberdade e acesso à terra. Rio de Janeiro/RJ. Folha Carioca Editora Ltda. 2005.

2 – PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru/SP. Editora Edusc, 2005.

3 – PREFEITO homenageia data do trabalhador inaugurando melhoramentos. “Correio Trirriense”. Três Rios/RJ. Ano IX, quinta-feira, 30 de abril de 1970, nº 413, capa.

4 – PREFEITO homenageia data do trabalhador inaugurando melhoramentos. “Correio Trirriense”. Três Rios/RJ. Ano IX, quinta-feira, 30 de abril de 1970, nº 413, capa.

A nascente sociedade urbana da Vila de Entre-Rios e o lugar dos escravos libertos e seus descendentes. – 3ª parte.

O futebol se fez presente no Brasil pelas mãos dos ingleses que vieram para a implantação da malha ferroviária como alternativa de lazer para a elite branca brasileira e não para os negros recém libertos; mas quando foi acomodado pelas classes populares este esporte passou a ser mestiço, negro e “brasileiro”. Existem pesquisas que estabelecem a presença dos negros em equipes de futebol amador já no início do século XX.

Fotografia 1: Registro externo dos jogadores do América Futebol Clube nesta fotografia publicada no jornal O Cartaz no seu ano II, de 28 de abril a 4 de maio de 1973, nº 86. Original de 1929, sem autor conhecido, do acervo André Mattos.

A primeira representação imagética conhecida de jogadores negros em uma equipe de futebol da cidade é datada de 17 de novembro de 1929, quando da realização do jogo entre o América Futebol Clube e o Riachuelo Esporte Clube, tradicional equipe auriverde da cidade de Paraíba do Sul/RJ, que terminou com o placar de 2 x 1 para os rubros de Entre-Rios.

Relacionam-se na fotografia os jogadores, estando em primeiro plano sentados: Santinho, Hélio – goleiro -, e Pinhal com o mascote da equipe Sebastião Guilherme Dias, o “Cici” à frente. Ajoelhados: Nico Couto, Teófilo e Silvio “Malandragem”. Em pé ao fundo da esquerda para a direita: o Srºs Aparício de Freitas, Darci César Guimarães (de terno branco) e Antônio Martins, os jogadores Manoel Duarte e Coutinho Junior, a madrinha Maria Cantuária de Araújo, o presidente do clube, Mariano Aguiar, os atletas Batoque, Chaves e José Manoel e por último, segurando uma bandeira, o Srº Josino de Carvalho.

Fotografia 2: Registro externo da equipe de futebol do Entrerriense Futebol Clube da década de 1930, onde se percebe a presença de alguns jogadores negros; da esquerda para a direita tem-se: Bertolino, Tamanduá, Fortunato, Licirio, Zé Coruja, Sapo, Gradim, Ayres, Bira, Jobal e Manoel. Em primeiro plano Habib Obeica e a madrinha do clube a Srta. Balbina Santos Gomes. Fotografia publicada no jornal “O Cartaz” no seu ano I, de 8 a 14 de janeiro de 1971, nº 19. Sem autor conhecido, do acervo André Mattos.

Observado a presença de negros entre os jogadores de futebol das equipes de Entre-Rios, o mesmo não ocorre entre os diretores dos clubes da cidade. Qualquer posição onde se determine algum tipo de poder, principalmente os econômicos e políticos, a presença dos afrodescendentes acontecia raramente. Entendo que esta realidade reflete nas redes de relação social, o lugar determinado a estes indivíduos, alijados das condições necessárias para figurar junto aos representantes das classes comerciais, industriais e financeiras, onde a presença dos brancos é mais evidente.

Pesquisar a participação de determinados grupos em variadas atividades permite mensurar a ocorrência das desigualdades nas ocupações sociais, definindo-se assim as zonas de segregação que ocorrem nos espaços urbanos. E esta condição aparece nas diversas formas de diálogos e registros, como por exemplo, nos escritos dos jornais e nos livros dos primeiros historiadores da cidade de Três Rios/RJ, utilizados nesta pesquisa. Pouco da participação dos negros é referendado.

Fotografia 3: Registro realizado em 2 de junho de 1930, durante a inauguração do atual campo de futebol do Entrerriense Futebol Clube, com a solenidade de benção e o corte da fita inaugural. Sem autor conhecido, esta fotografia foi publicada, na revista do Jubileu de Ouro do Entrerriense Futebol Clube, de 1975, do acervo André Mattos.

Nesta imagem temos da esquerda para direita: Quintino Pinto Álvares, Jacinto Sobrinho (atrás deste), Pedro Chimelli (ao fundo), Manoel Ferreira de Souza Neto (Manoelito, de terno branco), Vitorino Martins (ao fundo), o Padre Antonio Rossi, Horácio da Silva Braga (segurando o que parece ser uma vela), José da Silva Leal (também ao fundo), Balbina Santos Gomes (madrinha), Guilherme Bravo, Clodoaldo de Carvalho, Salim Chimelli (ao fundo), Ciro Marini, Mariano de Aguiar e Pedro Caldas. Destaca-se em primeiro plano o pequeno coroinha ao lado do padre. Alguns destes nomes estão entre os presentes nas fotografias referentes aos espaços da arte e do comércio apresentadas nas publicações anteriores.

O Historiador trirriense, Hugo José Kling, nas suas obras publicadas em 1969 e 1971, além de aspectos relacionados à formação urbana da cidade e seus monumentos, apresentou biografias dos “principais” moradores, um apanhado de artigos publicados nos jornais da cidade com características da historiografia positivista: são nomes e sobrenomes que representam uma parcela representativa dos comerciantes, industriais, profissionais liberais, religiosos e professores; personagens que figuram nas imagens fotográficas como as que neste trabalho são apresentadas.

Fotografia 4: Registro da diretoria, realizado diante da primeira arquibancada do estádio de futebol do Clube Entrerriense na Rua Marechal Deodoro no centro de Entre-Rios, com os degraus de madeira, em 18 de dezembro de 1933. Presentes nesta fotografia publicada no jornal “O Cartaz” de 5 de abril de 1974, na sua edição de nº 133, em pé ao fundo da esquerda para a direita: Julio Assumpção, Virgílio Torno, Pedro Caldas, Manoel da Rocha Pinto, Custódio José Martins, Namitala Hagge, Henrique José Marinho; e no primeiro plano sentados, também neste mesmo sentido: Theobaldo Rocha, Jacinto Sobrinho, Balbina dos Santos Gomes (madrinha do clube), Pedro Paulo Rodrigues Caldas e Mariano Aguiar. Sem fotografo determinado, do acervo André Mattos.

Uma única figura fugiu a esta condição: Camila, escrava de Mariana Claudina, que recebeu por desejo testamentário da Condessa do Rio Novo, uma casa em Entre-Rios em usufruto e a quantia de um conto de réis. “Camila foi uma escrava, mas foi também um ser humano e cristão.” (KLING. 1973, p. 46) Filha de um português – Augusto, e de uma escrava – Tônia, “a criança era clarinha e crescia robusta e linda”. (KLING. 1973, p. 57)

É interessante a tentativa de se “adequar” um “espaço” para Camila na história da cidade ao minimizar sua condição étnica nos termos: “um ser humano e cristão” e “criança clarinha”.

“Afinal, em agosto de 1835 é que Tônia e Camila entraram para o serviço do novo Sinhô na Fazenda da Boa União, onde à época se movimentavam mais de oitenta escravos de ambos os sexos, sem contar as crianças.

Tônia foi para a senzala e dali por diante, com outras escravas, participaria de todos os trabalhos, quer na capina da lavoura, que na apanha do café.A futura Condessa do Rio Novo, de pronto simpatizou com a mulata Camila, que regulava a sua idade e mais encantada ficou quando soube que sua nova escrava sabia ler e escrever, pois ela destinava-a a ser sua companheira na Fazenda, já que, havia decorrido mais de três anos, depois do seu casamento, sem que tivesse filhos.” (KLING, Hugo José)

A figura de Camila permanece até nossos dias apenas pela presença de seu nome no testamento da Condessa e, conforme afirma Hugo Kling (1971, p. 77) na tradição oral das histórias do “preto Bentão” falecido em idade avançada, mas que não recebeu também, maiores identificações, apesar deste autor afirmar que recolheu deste informações preciosas para os seus escritos.

“Refletir o trauma social (…) significa pensar tal memória dentro das redes de poder que as definem, recortam, delimitam elegendo critérios do que lembrar e por sua vez narrar e do que esquecer e silenciar, definindo assim linhas de interpretações da História que se deseja elaborar.” (DIETRICH, Ana Maria)

Fotografia 5: Registro externo relacionado às comemorações pela instalação do novo município de Entre-Rios. Artigos em jornais da época informam sobre uma festa popular – um grande churrasco -, realizado no campo do Entrerriense F. C.. Observa-se na fotografia a presença de homens e mulheres, adultos, jovens e crianças, brancos, negros e mulatos. Sem autor determinado, do acervo do Srº Altair.

Este pensar o conceito do poder de exclusão e silenciamento de memória pode ser aplicado aos aspectos sociais da história dos negros na pós-escravidão no Brasil, pois o esquecimento e as escolhas quanto ao que deve ser lembrado demarcam a memória coletiva e a construção da identidade deste grupo, que no casso deste trabalho, tem presença importante na formação cidade de Três Rios/RJ.

Rompendo o silêncio imposto ou os impedimentos a leitura deste discurso, as fotografias narram experiências sensíveis, aspectos das relações sociais, colaborando para a compreensão da vida desta comunidade étnica, sugerindo espaços de rupturas e continuidades, mesmo representado pelo olhar de outro grupo social. Quando os referentes fotográficos abarcam as atividades sociais nos espaços públicos da cidade, os indivíduos negros e mulatos aparecem em manifestações diversas, como expressos nas imagens 5 e 6.

Fotografia 6: Registro externo também referente à festividade descrita na fotografia anterior. Sem fotógrafo definido, do acervo do Srº Altair.

Porém, quando as imagens fotográficas destacam algum grupo do restante da população, seja por representação econômica, política ou religiosa, não se encontram nos registros a presença de indivíduos negros, conforme as fotografias a seguir analisadas.

Fotografia 7: Registro externo realizado na Praça São Sebastião, possivelmente quando da inauguração do prédio da Prefeitura Municipal de Três Rios em 1943, identificando-se entre o grupo que se destaca no primeiro plano ao centro: João Pedro da Silveira (primeiro a esquerda) e ao seu lado o Prefeito Walter Gomes Francklin, e entre as mulheres, encontra-se ao centro destas, e a professora Alva Coutinho Carvalhido, única mulher até o presente momento eleita vereadora em Três Rios. Sem
fotógrafo conhecido, do acervo Srº Altair.
Fotografia 8: Registro externo de uma atividade cívica em homenagem ao dia da árvore, realizada na Praça da Autonomia, onde se tem a presença de alunas de escolas do município (no primeiro plano a esquerdas jovens terminando o plantio de uma muda, acompanhada possivelmente por uma professora). Identifica-se na fotografia: terceiro da esquerda para direita o Prefeito Walter Gomes Francklin, adiante a segunda mulher com vestido branco, Alva Coutinho Carvalhido e os dois últimos, João Pedro da Silveira e Aquilas Coutinho. Fotografia do início da década de 1940, sem autor definido, do acervo André Mattos.

Pierre Bourdieu, escreveu que para ele:

A fotografia é um objeto que me interessou. Considerei, naturalmente, o fato desta ser a única prática com uma dimensão artística acessível a todos e de ser o único bem cultural universalmente consumido. Achei, assim, que, por meio desse desvio, conseguiria desenvolver uma teoria geral da estética. Era algo, ao mesmo tempo, muito modesto e muito ambicioso. É corrente dizer que as fotografias populares são horríveis etc. Eu queria, em primeiro lugar, entender por que razão isso é assim e, em segundo, tentar explicar, por exemplo, a frontalidade dessas imagens e o fato de nelas revelarem-se relações entre pessoas e uma série de coisas que indicam a medida de sua necessidade e que, por isso, têm o efeito de reabilitá-las. E então decidi analisar uma coleção de fotografias que pertenciam a Jeannot, um amigo de infância: examinei-as uma a uma e embrenhei-me nelas. Parece que encontrei muita coisa nesta caixa de sapatos.

Uma das razões desta paixão que nutro pela fotografia, também está no fato de “nelas revelarem-se relações entre pessoas”, de demonstrarem as demarcações nos espaços de relações sociais construídos nos embates de poder e memória, de “possuírem” histórias silenciadas, que aguardam serem retiradas da “caixa de sapatos.”

Referências:

BOURDIEU, Pierre e BOURDIEU, Marie-Claire. “O camponês e a fotografia”. Rev. Sociol. Polít., 26. (2006): 31-39.

DIETRICH, Ana Maria. Percurso de memória(s) traumática(s) da II Guerra Mundial. Disponível no site: http://pt.scribd.com/ana_diet/d/63676819-PERCURSOS-DE-MEMORIA . Acesso em 11 de out. de 2011.

KLING, Hugo José. Cinzas que Falam. Juiz de Fora/MG, 1ª Edição, Sociedade Propagadora Esdeva – Lar Católico – 1971

A nascente sociedade urbana da Vila de Entre-Rios e o lugar dos escravos libertos e seus descendentes. – 2ª parte.

“Aqueles que viveram em Entre-Rios por volta dos anos de 1885 a 90, não podiam prever o que seria decorrido 40 e poucos anos, este pedaço da antiga Fazenda de Cantagalo, que já é hoje um centro de grandes possibilidades, onde se vive sofrivelmente, por entre o febricitante trabalho de seus habitantes.

Quem conheceu Entre-Rios do tempo do professor Antônio Pulga, do Manoel da Travessia e da tia Senhoria; quem mais tarde assistiu ao período dos – Zés Portugueses e dos Pires, no Portão Vermelho; Virginio Emerenciano Pereira, Pereira Gomes, Alfredo e Pedro Torno e outros; quem ainda – e isso a poucos anos – assistiu o surto de progressos que deram a esta terra as iniciativas de Antônio Pereira Lopes e Vicente Dias, e hoje assiste ao esforço hercúleo para elevar sempre e cada vez mais Entre-Rios a culminância que o destino lhe reserva, certamente há de sentir prazer por morar em terra tão promissora.

Entre-Rios hoje difere muito daquele que conhecemos a 40 anos passados: difere nos hábitos e nos aspectos.

Antigamente vivia-se como se fosse uma só família, tão reduzido era o número de habitantes e tinha-se apenas a estrada “União e Indústria”, a estrada de Cantagalo e o largo de S. Sebastião, para se transitar. Tudo o mais eram apertados trilhos, por entre lagoas, pastos e moitas de marica.

O tempo foi correndo, a população aumentando e com ela os fogões; novas ruas foram abertas, começam a surgir as sociedades de toda a ordem, o estado sanitário foi melhorando e hoje, embora lhe falte água boa e um sistema perfeito de esgoto pode-se dizer que – moramos em uma verdadeira cidade onde há de tudo.

Quiséramos que o leitor que paciente nos lê, pudesse retroceder conosco aquela época distante, quando nos acercávamos do guarda da travessia da estrada dos Campos Elysios, hoje Rua 15 de novembro – o velho Dario – a ouvir-lhe as histórias, admirar-lhe os pássaros engaiolados que cantavam alegremente e gosar a sombra amiga do caramanchão existente ao lado, cuja folhagem exuberante, merecia todo o carinho do vigia atento, para então poder compreender o motivo da nossa obstinação em relembrar “coisas que passaram”, destruindo ilusões e derramando saudades, que ainda vivem n´alguns corações amadurecidos pelos anos (…)Entre-Rios foi nada, passou a ser muito, e no futuro será tão grande, que, prever se torna impossível.” “ENTRE-RIOS, o que foi e o que será”. Vê Jota, pseudônimo de Antônio Villela Junior. “Entre-Rios Jornal.” Entre-Rios, atual Três Rios. Ano II, sexta-feira, 17 de janeiro de 1936, ed. 52, p. 2.

Esta crônica do Vê Jota, escrito nos dias iniciais do ano de 1936, mantêm a característica relacionada na primeira parte deste trabalho (cronista da imprensa trirriense que mais escreveu sobre a sociedade nascente da Vila e depois distrito de Entre-Rios), apresenta-se como retrato de uma outra parcela da sociedade trirriense – diferente da apresentada anteriormente, tendo entre seus cidadãos citados, representantes daqueles responsáveis pelo “surto de progresso”; pessoas e espaços (recordados com muita saudade apesar da satisfação com o progresso conquistado), que se interpenetram demarcando ações, tempo, criando e revelando imagens e significados da vida de relação social.

Antônio Villela de Carvalho Júnior, esteve presente na formação dos principais grupos de artes cênicas, musicais, esportivos, culturais, políticos e sociais da cidade, foi vice-prefeito do Município de Paraíba do Sul/RJ, ocupou a cadeira nº 6 da Academia Trirriense de Letras e Artes. Sua crônica, publicada três anos antes da emancipação, é um registro do quanto Entre-Rios no final dos anos de 1930, difere em muito do último quarto do século XIX: “O tempo foi correndo, a população aumentando e com ela os fogões.”

Este “olhar” de um cronista que viveu o tempo histórico de formação da Vila e depois distrito, até a emancipação e formação administrativa de uma nova cidade no interior do Estado do Rio de Janeiro, no recorte temporal do início da República no Brasil, permite-me, em conjunto com textos imagéticos das fotografias deste período, perceber de que maneira, e em que espaços sociais, os negros libertos e seus descendentes estiveram presentes na formação da sociedade nascente da Vila de Entre-Rios, no pós-abolição até o final dos 40, e quanto esta inserção reflete na vida dos afrodescendentes que vivem atualmente em Três Rios/RJ.

Arte, cultura, economia, política, trabalho, educação, esporte e manifestações populares; as fotografias revelam quais os espaços conquistados ou concedidos aos negros libertos e seus descendentes na nascente sociedade de Entre-Rios. O que as presenças ou ausências nas imagens fotográficas nos revelam?

1 – Arte e Cultura

“Três Rios, ou melhor, Entre-Rios, desde a 70 anos passados [anos finais do século XIX], quando sua população era diminuta, e consequentemente, possuindo pequeno número de habitações – quase todas cobertas de zinco – começou a receber a visita de companhias dramáticas, que realizavam seus espetáculos em palcos montados no interior dos “Grandes Armazéns da Companhia da Estrada União e Indústria”, existente na área fronteira à Estação da Central do Brasil e hoje ocupada por construções modernas.” “TEATRO amador vem dos primórdios da cidade: 85 anos de cena”. Vê Jota. O Cartaz. Três Rios/RJ. Ano III, 24 de julho de 1974, nº. 149 (A).

Formaram-se no início do século XX alguns grupos de teatro amador que tiveram curta duração. Idealizado em 1913 por Vicente Dias, Alberto Silva, José da Silva Vaz e Antônio Vilela Junior, surge no ano seguinte o Grupo Dramático e Beneficente Dias Braga, encenando em 21 de agosto de 1914 no “Teatro Sul-América” o drama em 3 atos – “Condessa Diana de Rione” – e a comédia em um ato: “O Diabo atrás da porta”.

Nesta fotografia, temos os indivíduos que participaram da primeira encenação do Grupo D. B. Dias Braga: José Vaz, João Amâncio, Francisco Neves, Alfeu Braga, Virgilho Bilheri e Antônio Villela Junior, Hermínia Torres e Hercília Pereira. As duas meninas ao centro no primeiro plano são, à esquerda, Araci Vidal, e a direita, Adalgisa Villela.

“Nas áreas culturais e artísticas da Vila, o movimento tomou corpo malgrado à corrente ainda aferrada aos “preconceitos sociais” que entravava a participação de damas nas representações planejadas.” (KLING. 1969)

Hugo Kling relata a dificuldade da mulher no início do século XX, de fazer-se presente nas atividades cênicas, mas não identifica este mesmo comportamento social com relação aos negros: este grupo de teatro era formado principalmente, por comerciantes e seus filhos, não possuía negros entre seus pares.

As imagens que apresentam o corpo de diretores e os artistas, mesmo quando da comemoração do primeiro aniversário de apresentações do G.D.B. Dias Braga, em agosto de 1915, revelam que os negros não participavam destas atividades, muito provavelmente, por não se representarem entre o grupo de comerciantes, que se constituíram naquele momento, em sua grande maioria, de imigrantes estrangeiros. Demonstrando claramente que os espaços da dramaturgia se circunscreveram apenas a um grupo social da época.

Na fotografia acima em primeiro plano da esquerda para a direita: Araci Vidal e Adalgisa Vilela. Em segundo: Vilela Junior, José Vaz, Alberto Silva, Estefânia Carlinda Álvares, Iracema Almeida, e Vicente Dias. Ao fundo em pé na mesma ordem: Virgilio Bilheri, Edgar Vidal, Francisco Neves de Carvalho, Trupim P. da Silva, João Amâncio, Fernando Castilho e Pedro Fernandes.

Esta realidade parece não ter se alterado com o passar do tempo, pois 23 anos após o Grupo Dias Braga, em 1937, organiza-se nas dependências do informativo “Entre-Rios Jornal” o Grupo de Amadores Teatrais Viriato Correia – presente até os dias atuais inclusive com a dependências de um teatro próprio; que entre os seus componentes quando da apresentação da primeira peça, não possuía nenhum artista cênico negro. Reportando aos aspectos das artes – música -, no início da formação social na Vila de Entre Rios, Vê Jota escreve:

“A música começou a ser cultuada em Três Rios, não só pelas damas que se dedicavam ao estudo da música em piano, como também pelas bandas formadas pelos escravos [presentes nas cerimônias de inauguração das Estações de Entre-Rios tocando em homenagem ao imperador D. Pedro II], como a que ainda chegamos a conhecer na Fazenda de São Lourenço de propriedade do venerado Visconde de Entre-Rios, já nos primeiros anos da República e em franca decadência. O seu mestre chamava-se João Prata e desfrutava da confiança e da amizade do Visconde.” EM COMEMORAÇÃO ao nosso aniversário – prêmio Melnhaque: A melhor “História de Três Rios”. JUNIOR, Antônio Villela. “O Jornal de Três Rios”. Três Rios/RJ. Ano II, 26 de abril de 1961, nº 53, p. 2.

Relaciona este cronista ainda: a Banda Henrique Mesquita que possuía como mestre o musicista Francisco Duarte descrito como uma criatura de longos cabelos alourados, olhar doce e atitudes paternais; a charanga do Pedro Belmonte, o Grupo Musical Carlos Gomes, regido pelo professor Guerra da Costa, o Grupo da Lira fundado por volta de 1900 pelos irmãos Agnelo, Galvino e Marcolino e o Grupo Musical 1º de Maio do qual foram fundadores os ferroviários Carlos Vidal, Severino José Ferreira e Ernesto Mattos entre outros; – agremiação musical centenária que ainda permanece em plena atividade no município.

A Banda Musical 1º de Maio teve atuação importante na aglutinação da população para os comícios do movimento emancipacionista. Ao domingo percorria as ruas da cidade realizando apresentações musicais e convidando o povo para esta atividade. Jornais da época informam a participação de seus músicos em bailes, quermesses da igreja, carnavais e, acompanhando o féretro de pessoas mais afortunadas da cidade.

A população negra, liberta da condição de propriedade, utilizou-se de estratégias de mobilidade social na pós-abolição para a inserção nas sociedades urbanas. O ambiente da arte musical recebeu intensa participação e influência dos negros na formação, no caso de Entre-Rios, mas também de outros centros urbanos brasileiros, de diversos grupos instrumentais, bem mais do que nos das artes cênicas. Destacaram-se no distrito também a Banda “Jazz União” e a “Jazz Band Columbia”.

Regina Xavier (2008, p 25) afirma que, “se a cidade era um lugar de conflitos e de resistência para os escravos era, ao mesmo tempo, um lugar que propiciava espaços de convivência para a comunidade negra, importante na construção de estratégias variadas na busca de melhores condições de vida”.

Se os atributos morais da etnia negra apresentados por Vê Jota em seu artigo indicam uma visão negativa formatada pela sociedade republicana brasileira eminentemente branca – representada na sua “porção” regionalizada pela sociedade entrerriense, alguns estereótipos “positivos” valorizavam os talentos destes para “a música, para a dança ou qualquer outra atividade que a emoção sobrepujasse a razão. Observa-se que as “características da raça”, dependendo do espaço social, podem ser qualificadas negativa ou positivamente.” (ABRAHÃO E SOARES, 2003)

Os “reflexos” sociais nos “espelhos” das crônicas e das fotografias muito nos revelam da inserção do negro na sociedade pós-abolição.

Outro espaço de participação social dos negros na coletividade entrerriense ocorreu pelas atividades esportivas, especificamente, o futebol, que possuía a época representantes deste grupo em todas as equipes da cidade, o que possibilitou certa ascensão social e financeira. Mas, isso veremos na próxima edição.

Referencias:

ABRAHÃO e SOARES, Bruno Otávio de Lacerda e Antonio Jorge Gonçalves. O elogio ao negro no espaço do futebol: entre a integração pós-escravidão e a manutenção das hierarquias sociais. Disponível no site: http://comunicacaoeesporte.files.wordpress.com/2010/10/elogio-ao-negro-no-espaco-o-futebol-pos-escravidao-e-hierarquias-sociais.pdf . Acesso em: 12 de fev. 2012.

KLING, Hugo José. A Matriz de São Sebastião de Entre Rios e outras anotações históricas. Juiz de Fora/MG: Sociedade Propagadora Esdeva, 1969.

XAVIER, Regina Célia Lima. A escravidão no Brasil Meridional e os desafios historiográficos. In: RS negro: cartografias sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre/RS. EDIPUCRS, 2008

A nascente sociedade urbana da Vila de Entre-Rios e o lugar dos escravos libertos e seus descendentes. (1ª parte)

José D`Assunção Barros (2007) escreve que pensar e sentir a cidade antes do século XIX muitas vezes fora função dos poetas, dos cronistas e romancistas, bem como dos arquitetos e dos filósofos. Antonio Villela Junior – Vê Jota -, apresenta-se entre os cronistas da imprensa trirriense como aquele que mais escreveu sobre a sociedade nascente da Vila e depois distrito de Entre-Rios. Seus trabalhos atravessaram todo o período da formação urbana e indo além do movimento de emancipação, publicados nos anos iniciais da década de 1910 no jornal “Arealense”, bem como no informativo “Entre-Rios Jornal” (onde escreveu a coluna “Coisas que passaram”) entre outros, sendo de importância considerável para o estudo e a escrita da história de Três Rios/RJ e das sociedades constituídas nos anos iniciais da República, no interior do país.


Fotografia 1: Antonio Vilela Júnior – Vê Jota.

Dentre as diversas maneiras de se pensar a cidade e o espaço urbano de relação social, José D`Assunção Barros (2007) relaciona os estudos que consideram a “cidade como texto”, perspectiva apoiada sobre a contribuição da semiótica para o entendimento do acontecimento urbano, “e o seu leitor privilegiado seria o habitante (ou o visitante) que se desloca através da cidade,” sendo possível fazer uma leitura deste ambiente, através das diferentes escritas e linguagens que surgem nos processos de relação entre os grupos sociais e destes com os espaços urbanos, compreendendo seus critérios de aceitação e segregação, sua tecnologia, sua produção material e cultural, a distribuição de riquezas e etc.

Esta “escrita” da cidade é dinâmica, está sempre sendo revisada e alterada pelos próprios habitantes: “a cidade é um discurso”, (BARTHES. 2001) que pode ser lido e compreendido, mesmo com a diversidade de sentidos, através dos próprios espaços de relação (ruas, praças, monumentos, edificações) e das manifestações sociais e culturais que ocorrem nestes (festas, expressões artísticas, manifestações cívicas e esportivas etc.); sendo a fotografia a fonte que registra tanto os espaços quanto as manifestações nestes.

“De múltiplas maneiras o próprio espaço e a materialidade de uma cidade se convertem em narradores da sua história (…) É extremamente difícil e desafiador para o historiador que estuda as realidades urbanas do passado recuperar o registro (…) destes atos de fala.” (BARROS. 2007)

Fotografia 2: Nesta imagem as principais construções encontram-se margeando o trecho da Estrada União e Indústria – Rua da Condessa, (atualmente Avenida Condessa do Rio Novo), e da linha férrea da Estrada de Ferro Central do Brasil, (na fotografia a direita de baixo para cima e ao centro) na direção oposta à sua estação e pátio de manobra. Esta fotografia foi publicada na edição nº. 54 do O Jornal de Três Rios, que circulou em 3 de maio de 1961, com informação que o registro seria de julho de 1914, e pertencia ao Srº Guilherme Bravo, editor proprietário do jornal Arealense. Panorâmica do distrito de Entre-Rios na década de 10, sem fotógrafo conhecido, acervo André Mattos.

Na Vila de Entre-Rios, Estado do Rio de Janeiro, do último quarto do século XIX o pequeno contingente populacional permitia uma relação descrita pelo cronista como familiar, próxima ao que ainda ocorre nas pequenas cidades do interior ou em alguns bairros dos médios municípios brasileiros.

Através das imagens fotográficas percebe-se o quanto o distrito ampliou os espaços de relação com novas edificações para o comércio, a indústria e residências, ruas, praças, escolas e igrejas, o hospital, cinemas. O número de habitantes amplia-se recebendo também estrangeiros que se juntaram aos que aqui já residiam, entre estes os funcionários das estradas rodoviária e de ferro, os remanescentes dos proprietários rurais e os negros libertos das fazendas da região. Vê Jota percebe que este crescimento populacional determina a formação de “sociedades de toda a ordem,” grupos sociais são constituídos e estes que de distintos modos, escreveram o “discurso urbano” do período temporal de formação da cidade de Três Rios/RJ.

Não proponho recuperar neste trabalho, todos os caminhos percorridos através das variadas atividades cotidianas desenvolvidas pelos moradores de Entre-Rios; foram traçados múltiplos percursos, pois múltiplos os grupos sociais e suas manifestações de ordem cultural, religiosa, econômica e política, que se entrecruzam em vários momentos. Mas considerando a presença primeira das Fazendas de Café nesta região e da sua aristocracia rural, que se formaram também graças a relação com o negro através do trabalho escravo, permiti-me vislumbrar a inserção da população pobre e negra no espaço urbano de relação daquela sociedade nascente, utilizando-me para tanto das fotografias do acervo acumulado nas pesquisas para a construção de um dos capítulos da minha dissertação de mestrado, percebendo presenças e ausências destes indivíduos em determinados espaços e grupos de relação; um …

“Decifrar de outro modo as sociedades, penetrando nas meadas das relações e das tensões que as constituem a partir de um ponto de entrada (um acontecimento, importante ou obscuro, um relato de vida, uma rede de práticas específicas) e considerando não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles.” (ROGER, CHARTIER)

Fotografia 3: A imagem permite observar aspectos da formação urbana do distrito de Entre-Rios. Destaca-se à direita a estação ferroviária da Estrada de Ferro Central do Brasil, com seu depósito e pátio de manobra repleto de vagões. Ao centro à esquerda, a Estação de Pedra da Estrada de Ferro Leopoldina com seu pátio, onde é possível ver uma locomotiva em partida (expelindo fumaça). Os trens entravam no pátio de ré, após manobra no atual bairro do Triângulo, depois de atravessar a Ponte das Garças. Fotografia do centro do distrito de Entre-Rios, entre a primeira metade da década de 1910 e o inicio da década de 1920. Sem informação do seu autor, acervo André Mattos.

 É preciso admitir que a coletividade da Vila de Entre-Rios, mesmo sendo um espaço em formação no interior do Estado do Rio de Janeiro, refletia a configuração da sociedade brasileira a época: nova organização social burguesa republicana (comercial, industrial e financeira), capitalista e urbana e são os representantes desta elite que produziram as imagens analisadas; o olhar do fotógrafo refletia em sua maior parte “as cenas” do cotidiano deste grupo.

Herdeira das propriedades de seus pais a Condessa do Rio Novo, sem descendentes diretos do seu casamento com seu primo José Antônio Barroso de Carvalho (Major Carvalhinho), concedeu por desejo expresso no seu testamento liberdade aos seus escravos deliberando também a utilização das terras da Fazenda de Cantagalo para o assentamento destes.

“Deixo livres todos os escravos que eu possuir ao tempo da minha morte, e desobrigados da prestação de serviços até aos vinte e um anos, os ingênuos filhos de minhas escravas nascidas depois da Lei de vinte e oito de dezembro de mil oitocentos e setenta e um. Esses libertos e ingênuos, e seus descendentes formarão em minha fazenda denominada de Cantagalo – uma colônia agrícola – com a denominação de “Nossa Senhora da Piedade”, que será a protetora do estabelecimento. Na mesma fazenda e a expensas do rendimento dela serão estabelecidas duas escolas para educação dos menores da colônia, de ambos os sexos, que serão franqueadas também aos menores da circunvizinhança, se não houver inconveniente. Aos adultos serão distribuídos lotes de terras a fim de cultivarem cereais para a sua subsistência e lotes de cafezais para beneficia-los e colher os frutos: destes, depois de convenientemente preparados e vendidos, lhes pertencerá a metade do produto liquido, e a outra metade à casa de caridade, que se fundar na cidade da Paraíba do Sul…” (Testamento da Condessa do Rio Novo de 18 de novembro de 1882, transladado do original em 1993 pela historiadora trirriense Irene Lopes Guimarães)

O período que se seguiu à libertação dos escravos – Mariana Claudina Pereira de Carvalho faleceu em Londres em 5 de junho de 1883 aos 87 anos -, e da Lei Áurea, encontra uma vila em processo de formação urbana, com a presença importante de trabalhadores funcionários da Estrada União e Indústria e da Estrada de Ferro D. Pedro II.

A principal expectativa por parte dos emancipados tornados libertos encontrava-se na Colônia e o término da escravidão apresentou-se como uma das etapas de um processo que visava obter o tratamento e direitos igualitários de cidadão. Segundo Isabela Innocencio (2005) foram um total de 244 escravos que conquistaram a liberdade, sendo 86 mulheres, 116 homens e 42 ingênuos.

Deste tempo até meados de 1935, quando do encerramento das atividades da Colônia Nossa Senhora da Piedade, Entre-Rios encontrava-se num crescente processo político visando à emancipação da cidade de Paraíba do Sul/RJ, principalmente por superá-la economicamente.

Nesta região do Vale do Paraíba a minoria de negros (é possível considerar a chegada neste percurso de tempo de negros oriundos de outras fazendas e regiões) se confronta então com os interesses daqueles que aportaram nestas terras e seus descendentes, atraídos pelas possibilidades de trabalho e renda junto às estações, ao comércio e a indústria, vindos do interior de Minas Gerais, bem como, imigrantes portugueses, espanhóis, italianos, sírios e libaneses, e uma pequena parcela de alemães que vieram para a construção da cidade de Petrópolis/RJ e Juiz de Fora/MG e ingleses que nesta terra chegaram junto com os trilhos, os vagões e as locomotivas.

Para esta configuração, além das imagens fotográficas, foram importantes as crônicas do Vê Jota, pois através delas foi possível conhecer alguns dos personagens que transitavam por caminhos marginais nesta nova sociedade, “tipos populares” ou popularescos, presentes nas antigas ruas de terra batida.

“Tia Senhorinha”, velha crioula ex-escrava, curvada pela ação dos anos vividos e tida como dada a bruxarias, o que lhe valeu ser surrada algumas vezes pelos supersticiosos. “Panqueca”, português que trocara o hábito de trabalhar pelo de beber e tinha uma boca depravada. “Zé Periquito”, preto, moço, com os pés inchados pela quantidade de bichos que lhe atacavam os dedos; tinha a mania de se supor namorado das moças e vivia dizendo: “Zé Periquito qué casá, sim sinhô!” “Maria Jagunça”, uma preta descuidada dos requisitos de higiene e que por 40 réis de aguardente, portava bilhete de namorados: uma alcoviteira barata! “Cegonha”, outra preta, esta assediada e cozinheira que nas horas de folga, postava-se nos logradouros públicos e quando as crianças e mesmo marmanjos a espicaçavam, dizia: “Paga imposto!” e mudava de lugar. “Luiz”, mulato velhote trabalhador e fiel, que se esborrachava, as vezes e passava a elogiar as pessoas de destaque na localidade, terminando os elogios com frases como estas: “canalha”!, cachorro”! Antonio Simão, mulato que falava macio e vivia da caridade pública: foi o maior filante de cachaça de que viveu em Entre-Rios. Morreu abraçado a um garrafão vasio. Muitos outros tipos, alguns até perigosos, animaram as ruas de Entre Rios.” (EM COMEMORAÇÃO ao nosso aniversário – prêmio Melnhaque: A melhor “História de Três Rios”. JUNIOR, Antonio Villela. “O Jornal de Três Rios”. Três Rios/RJ. Ano II, 26 de abril de 1961, nº 53, p. 2.)

Apesar de experimentarem inicialmente uma proposta inédita de assentamento agrário, diferentemente da maioria dos ex-escravos que ao serem libertos não tinham muitas opções de trabalho e nem terra para produzir e morar, os negros da Fazenda Cantagalo e das fazendas de café da região, não conseguiram se livrar dos estigmas da cor e da escravidão, bem como dos interesses diversos – principalmente econômicos e fundiários -, daqueles que deveriam prover a realização dos desejos testamentários da Condessa do Rio Novo e que se incluem entre os fatores para a derrocada do empreendimento.

Entre os indivíduos listados por Villela Junior temos apenas um português e os outros são negros ou mulatos, indicando as condições de inserção dos indivíduos desta etnia naquela sociedade. É um discurso que desqualifica estes personagens, representações que demarcam territórios sociais (de classe e etnia), elaborados pelo senso comum e aplicados para descrever relações interpessoais e intergrupais.

Os termos utilizados também demonstram a maneira como os negros são percebidos: “ex-escrava”, “dada a bruxarias”, “preta descuidada”, “alcoviteira barata”, “velhote”, “trabalhador e fiel” (um ser subserviente, preparado para o trabalho pesado), “preta” e “filante de cachaça”. Os atributos físicos aparecem logo depois de seus nomes ou apelidos, identificando-os enquanto indivíduos marginais. O negro é relatado como um ser amoral, tendencioso ao vício da bebida, aos desvios da sexualidade e a violência. Cria-se com esta perspectiva um antagonismo de raças, “eliminava-se o escravo, mas inventava-se o negro/preto como uma marca social negativa. Libertava-se o trabalhador e instituía-se legalmente a idéia de “vadiagem” para controlá-lo.” (GOMES E ARAÚJO) Assim a utilização da mão-de-obra escrava durante um longo fundamental período de formação da sociedade brasileira determinou na pós-escravidão (o escravo e suas atividades no trabalho eram entendidos como coisas menores, inferiores) às delimitações de classes e papéis entre grupos étnicos distintos e o lugar que passaram a ocupar na cidade.

O que claramente se observa nas fotografias 4 e 5.

Fotografia 4: Tomada externa registrando a presença do ex-presidente Nilo Peçanha (marcado com uma seta) na Estação Ferroviária da Estrada de Ferro Central do Brasil em Entre-Rios, quando da campanha para a eleição do presidente do Estado do Rio de Janeiro, de 1914. Os apoios da cobertura da plataforma em frente à estação ficavam fora de sua área, fixadas na calçada. Esta fotografia do primeiro quarto da década de 10 do século XX, pertence ao acervo  Srº Altair, sem fotógrafo conhecido
Fotografia 5: Ex-presidente Nilo Peçanha (marcado com uma seta) junto às autoridades quando da sua passagem pela Estação Ferroviária da Estrada de Ferro Central do Brasil no distrito de Entre-Rios, registro externo do primeiro quarto da década de 10 do século XX. Sem autor conhecido, do acervo Sr. Altair

Nas duas imagens temos os registros fotográficos sobre a passagem do então ex-presidente da república Nilo Procópio Peçanha, pelo distrito de Entre-Rios (hoje Três Rios/RJ). Uma diferença marcante entre as duas está que na primeira, além dos políticos, comerciantes e outros representantes das elites do município de Paraíba do Sul e do distrito de Entre-Rios, reconhecidos principalmente pelas suas vestimentas e por se encontrarem em arredor do presidente, e membros de sua comitiva, temos a presença de populares e de crianças em número significativo, agrupadas e principalmente localizadas abaixo da posição do ex-presidente, mas em condições de serem “captadas” com destaque pela objetiva. A imagem valoriza a presença dessas pessoas junto a Nilo Peçanha.

Em confronto com o vetor escravidão, que como vimos, foi um dos constituintes sociais da base de formação da sociedade trirriense, tem-se à vista nesta imagem um bom número de adultos e crianças negras, bem como, percebe-se a ausência, nas duas imagens, da representação feminina, tendo em vista que a mulher brasileira adquiriu o direito de votar nas eleições nacionais somente no Código Eleitoral Provisório, de 24 de fevereiro de 1932, mas, à época, apenas as mulheres casadas devidamente autorizadas pelos seus maridos, às viúvas e solteiras com renda própria, costumavam aparecer em público.

Na segunda imagem, observa-se claramente o desejo de registrar a presença de Nilo Peçanha, junto a ele apenas as autoridades e os indivíduos expoentes das classes econômicas e políticas de Paraíba do Sul e do distrito de Entre-Rios. Os dois registros atendem a vontade de se comprovar a receptividade positiva e o apoio a sua campanha para presidente do Estado do Rio de Janeiro junto aos diferentes grupos sociais. Percebe-se também, à direita, presença de uma criança segurando o seu chapéu numa posição de reverência, trajando camisa e calça compridas e calçado com botas, demonstrando uma condição social superior às destacadas na fotografia anterior, enquanto os adultos portam chapéus.

Outro aspecto observado é o espaço físico onde as imagens foram construídas: ambas na Estação Ferroviária da Rede Central do Brasil, mas a primeira em local mais amplo, junto aos trilhos, propício a maior aglomeração popular, tendo no segundo plano os prédios do trecho urbano da Estrada União e Indústria (atual Avenida Condessa do Rio Novo); e a segunda, ao lado da sede da estação, onde o espaço reduzido serviu para limitar a presença apenas para representações políticas e econômicas da região.

O que nos informam esses personagens, suas roupas e adereços [também a falta destes como os sapatos nos pés de algumas crianças do primeiro registro], seus olhares, posição corporal e distribuição espacial na fotografia, seus espaços de relação, entre outros aspectos do registro imagético? Corroboram principalmente na identificação das divisões econômicas existentes nesta sociedade, na percepção da presença do poder político e econômico ainda nas mãos da etnia branca quase 30 anos após a libertação dos escravos, e na utilização do povo apenas para “confirmar” o apoio político à candidatura de Nilo Peçanha, entre outros fatores.

Referências

BARROS, José D`Assunpção. Cidade e História. Petrópolis/RJ. Editora Vozes. 2007.

BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Revista Estudos Avançados. v. 5 n.11 São Paulo/SP, jan./abr. 1991.

GOMES e ARAÚJO. Flávio e Carlos Eduardo Moreira. Abolição da escravidão: a igualdade que não veio. Disponível no site: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/abolicao_a_igualdade_que_nao_veio_6.html. Acesso em 23 jan. 2012.

INNOCENCIO, Isabela Torres de Castro. Liberdade e acesso à terra. Rio de Janeiro/RJ. Folha Carioca Editora Ltda. 2005.

Fotografia, nostalgia e utopia.

Na edição de domingo, 3 de abril de 2011 do jornal “O Globo”, em um trecho da reportagem “Exposição de fotos revela o passado do Rio – Memórias da Cidade reúne imagens das décadas de 50 e 60, que fazem parte do acervo da Agência O Globo”, vemos algumas imagens deste acervo, em exposição que reuniu 65 fotografias separadas por temas como mobiliário urbano, transporte e arquitetura.

No final do artigo encontra-se destacada a opinião do designer visual da exposição, Sr. Jair de Souza que, analisando as fotografias, afirmou que estas “mostram a atmosfera diferente, que existia no Rio: “__ Tem a foto do Parque Shanghai, que hoje voltou a ser visitado, de um homem ouvindo jogo do Brasil num rádio de pilha enquanto fazia a barba. É uma época que você não conheceu, mas [da qual] sente saudade”. (meu destaque)

Em tempos de exaustão emocional como o que vivemos atualmente, decorrente das restrições impostas pela pandemia do Coronavirus, a nostalgia e a saudade se apresentam como “o anseio por um tempo diferente, não necessariamente [mas também] a saudade de um lugar” (Silva, 2019), tempo e lugares que ressurgem depositados nas imagens fotográficas de um passado “ao qual não se pode mais ter acesso, mas também como artifício que pode gerar sensações de presença através das possibilidades do ter sido.” (Silva, 219)

A fotografia não pode ser confinada a “qualquer sistema redutor”, e entre os vários “olhares” ou discursos, tem-se a dimensão temporal da saudade e da nostalgia como objeto de análise, por conduzir alguns – e eu me incluo entre estes, a uma lembrança representativa de uma realidade vivida, experimentada, não apenas por sua construção ocorrida num tempo próximo e igualmente histórico, mas por uma aspiração da natureza do sentimento de atração pelo passado, por um período ou um lugar que estabelece associações agradáveis, surgindo “voluntária ou involuntariamente, como instrumento gerador da utopia, ancorado (…) nos sonhos de um outro lugar e de um outro tempo”. (BEBIANO, 2000)

Imagens 1, 2, 3 e 4: Da esquerda para direita, de cima para baixo: (1) tomada de um parquinho na Praça São Sebastião em frente à antiga sede da Escola Estadual Condessa do Rio Novo (atualmente Casa de Cultura); (2) registro do concurso Garota Simpatia de 1968, promovido pela Rádio Três Rios em comemoração pelos seus 21 anos, nas dependências do Clube Atlético Entre-Rios – CAER; (3) e (4) tomadas do desfile cívico de sete de setembro com apresentação da bateria do Colégio Cenecista Walter Franklin e de uma das quermesses realizada na Igreja São Sebastião. Fotos da década de 1960, sem fotógrafo conhecido, do acervo Rádio Três Rios. Todas as fotos da cidade de Três Rios/RJ.

Não entendemos saudade e nostalgia como sendo a mesma coisa, mas partimos da ideia de que a nostalgia carrega uma força narrativa que permite maior decomposição de sua estrutura; a saudade aparece como uma de suas dimensões. (…) A história da historiografia, como analítica da historicidade, contribui sobremaneira para compreender o papel narrativo das emoções ao representar o tempo, seja em leituras do passado, seja em projeções do futuro. Pôr em evidencia as dimensões emocionais do fazer historiográfico, além de instigar uma nova relação entre o historiador e seu objeto, lança novas sensibilidades e empatias para o leitor. (SILVA, 2019)

As atividades referenciadas nos registros fotográficos acima são práticas presentes em nossa sociedade e apesar de tantas mudanças sociais ocorridas no passar do tempo, são percebidas e experimentadas ainda por muitos, sendo possível observar-se – nostalgicamente -, semelhanças e diferenças com relação aos momentos do presente e do passado.

Quantas lembranças são movimentadas nas memórias das pessoas quando nos deparamos com as imagens de crianças brincando em um parquinho na praça? As atividades religiosas com procissão, barraquinhas de salgados e doces, fogos de artifício, ruas enfeitadas, pessoas com “roupa de ir à missa”, nostalgicamente removem do esquecimento as lembranças de tempos experimentados ou apenas percebidos nos discursos de outros, referendados que são nas fotografias. Realidades que os impositivos da pandemia vão aos poucos nos afastando pela necessidade de preservação de vidas.

Desfiles cívicos, bailes populares, programas de rádio, concursos de beleza, passeios na praia, jogo de futebol nos estádios ou nos pequenos campinhos de terra batida ao observar tais eventos, tem-se a memória sensorial, emocional, como efeito de proximidade, no comparecimento vivo através de uma imagem do passado, que retorna ao presente pela lembrança reencontrada, movimentada e compartilhada pelos reminiscentes presentes nas fotografias.

Imagem 5: Jovens confraternizando no interior do coreto da Praça São Sebastião em Três Rios/RJ, nesta tomada externa realizada entre o final dos 50 e o início dos 60. O isolamento social necessário diante das características de contágio do Covid 19, tem diminuído as aglomerações como estas, gerando, para muitos, saudades destas vivências. Fotografia do acervo Rádio Três Rios, sem autor conhecido.

O isolamento social caracteriza-se por apresentar-se como agente fomentador de stress, com impactos psicológicos e emocionais e sentimentos de esgotamento físico e mental, agregando-se à solidão, à saudade, a depressão e desordens interpessoais; bem como, as experiências da fome, do desemprego, da morte e do luto, e da incerteza do futuro.

É neste contexto em que a nostalgia e a utopia se apresentam como impositivos de sentimentos no presente, que se atrelam ao passado que se pretende reviver (nostalgia) ou de um futuro (utopia) que se deseja construir.

A utopia nasce como gênero literário e discurso político. Enquanto a nostalgia é o anseio pela volta a casa, a utopia é o não lugar. As utopias não têm lugar definido, são peças do imaginário centradas na palavra e aspiram existência. Em seu sentido original, as utopias estão associadas à questão da ideologia. Compõem um conjunto de ideias e crenças que dão sentido e norteiam comportamentos. As utopias são a criação imaginária de uma sociedade em que as realizações de homens e mulheres são marcadas por valores de igualdade, justiça e bem-estar comum. O esfacelamento desses valores em uma sociedade cujas práticas (ou falta delas) são movidas pela expansão do capitalismo, pelo consumo e pelo fetiche do original tende a produzir uma incessante busca pelo passado idealizado. (SILVA, 2019)

Nostalgia e utopia se confundem neste momento em que o presente não corresponde aos anseios de todos por um país que proporcione segurança social em todos os seus campos, pois vivemos um …

(…) governo [que] vem se aproveitando do sofrimento do povo para aplicar medidas perversas de uma política econômica que esvazia as chances de um Estado soberano e com justiça social. Ao lado disso, esse governo e suas alianças promovem a mais danosa política ambiental e a escolha de um caminho isolado nas relações internacionais, em especial neste momento de extrema necessidade e dependência de tecnologias e insumos para o controle do novo coronavírus. O governo não é só incompetente em administrar o País na pior crise sanitária de nossa história. Ele trabalha contra os interesses das e dos brasileiros, deixando mortos pelo caminho, mentindo e fazendo descaso do sofrimento e aprofundando as condições de pobreza, com uma política econômica austericida que reduz o investimento público, considerado um modelo de política tosca, antiquada e de ineficácia comprovada em todo o mundo, mesmo entre teóricos conservadores. (RIZZOTTO, COSTA e LOBATO, 2020)

Neste contexto as fotografias então se qualificam como lugares de lembrança dos testemunhos de outros, que permanecem “vivos” no referente fotográfico, incitando não só uma leitura rememorativa de fatos e ações dos sujeitos históricos em seu tempo, mas também, através do olhar no presente, delinear as lembranças em comum; sem perder a condição de fonte e objeto de estudos e pesquisas multidisciplinares, permitindo abarcar temáticas diversas, passando do campo nostálgico e utópico, nas ciências humanas e destes para o campo dos estudos de memórias.

Fazemos parte de uma coletividade social e o nosso testemunho reflete muito do que absorvemos das relações nesta sociedade. Os referenciais de memória que formamos também espelham esta realidade, independente do tempo e dos espaços de relação de existência do ser, permitindo que os sentimentos de saudade e nostalgia também estejam entre as dimensões possíveis de análise das fotografias.

Imagem 6: Observa-se a presença do público – homens, mulheres e crianças -, durante a inauguração do estádio de futebol do Entrerriense Futebol Clube, na cidade de Três Rios/RJ, em 1930. Destaque à direita para arquibancada, que possuía, embaixo, os vestiários para os jogadores, e na esquerda, no primeiro plano, instrumentos musicais da Banda 1° de Maio. Os jogos de futebol tem ocorrido, nestes tempos de pandemia, sem a presença do público. Sem informação do autor da fotografia, acervo André Mattos

Como condição humana, a nostalgia é um elemento que acompanha as transformações da modernidade e faz parte de um repertório básico de experiências. Como conceito forte, seja por tradição seja por um tempo que não existe mais ou nunca existiu, ela é capaz de modular memórias individuais e coletivas. A nostalgia por muito foi entendida como um sintoma ou causa de buracos entre significantes e significados, uma doença que passou do estágio físico para o social e se transformou, numa análise conservadora, em uma abdicação da memória, um desejo inútil por um mundo ou um modo de vida do qual alguém é irrevogavelmente separado. (SILVA, 2019)

A nostalgia e a utopia em tempos de profundo impacto em habituais relações sociais, quando ocorre uma “busca ávida por traços distintivos de uma época [e lugares do passado ou pensados para o futuro], idílica, sempre se nos apresenta pulsante ao encararmos uma imagem já recuada no tempo.” (ARAUJO) Ademais, num outro “canto” deste conceito, é possível que o olhar de um fotógrafo do tempo presente observe no mundo ao seu redor, lugares, pessoas, hábitos, que encontrem similaridades ao experimentado e percebido por outras pessoas no passado; serão sempre como memórias compartilhadas.

Cada espaço vivido surge com funções originalmente particulares e distintas, e no seu processo de formação, as suas respectivas histórias e memórias se entrelaçam. Os registros fotográficos revelam-se de suma importância por permitirem a observação cuidadosa dos processos de rupturas, continuidades e sobreposições arrastados no âmbito das alterações urbanas, o que também favorece a percepção de caminhos possíveis que serão percorridos no futuro. A compreensão faz-se pelo papel de registro dos fatos em tempos históricos que, principalmente o material fotográfico disponível de diversos acervos concede. “Esquecer um período da vida é perder o contato com os que então nos rodeavam.” (HALBWACHS, 2009, p. 37)

Jean Duvignaud afirma que Maurice Halbwachs demonstra ser impossível “conceber o problema da recordação e da localização das lembranças quando não se toma como ponto de referência os contextos sociais reais que servem de baliza a essa reconstrução que chamamos de memória”, (DUVIGNAUD, 2009, prefácio p. 7-8) estabelecendo que a pesquisa historiográfica não deva se desvincular de uma apreciação das memórias coletivas. A experiência compartilhada da memória através das interações sociais é fator formador da identidade dos sujeitos, e suas lembranças são resultados deste processo, preservando uma experiência histórica repleta de valores e tradições culturais.

“Não esqueçamos que a memória parte do presente, de um presente ávido pelo passado, cuja percepção “é a apropriação veemente do que nós sabemos que não nos pertence mais,”” e a imagem fotográfica é “uma coisa viva… que sobe do passado com todo o seu frescor. Chamada de novo, trabalhada pela percepção do agora, arrisca-se a fugir da captura de um presente que não se reconhece nela.” (BOSI, 2004, p. 20)

Estas reflexões me conduziram ao personagem Gil Pender do filme de Woody Allen, Meia Noite em Paris (Midnight in Paris, 2011). Um homem vivendo os conflitos da modernidade, que encontra em passeios noturno por Paris um passado que ele não pode experenciar e que confia ser melhor que seu presente. Uma maneira de confrontar a realidade existencial do presente, que lhe ajuda a mudar o seu futuro (que no princípio da trama poderia ser visto como algo utópico).

Referências:

ARAUJO, Marcelo da Silva. Na imagem do passado a nostalgia do presente; memória, lazer e sociabilidade na Praça da Lira. Disponível no site: http://www.ffp.uerj.br/tamoios/2008.1/praca%20da%20lira%20Marcelo%20da%20Silva%20Ara%FAjo.pdf. Acesso mar. 2011.

BEBIANO, Rui. Nostalgia e imaginação: dois fatores dinâmicos num mundo global. Disponível no site: http://www.apfilosofia.org/documentos/pdf/RuiBebiano_Memoria_Globalizacao.pdf. Acesso abr. 2011.

BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória. Ensaios de Psicologia Social. Ateliê Editorial. São Paulo/SP, 2ª Edição, 2004.

DUVIGNAUD, Jean in prefácio, HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Nova tradução de Beatriz Sidou. São Paulo/SP: Centauro Editora, 2009.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Nova tradução de Beatriz Sidou. São Paulo/SP: Centauro Editora, 2009.

RIZZOTTO, COSTA e LOBATO; Ana Maria Frizzon, Ana Maria e Laura de Vasconcelos Costa. A esperança impulsiona, alimenta, move e fortalece a utopia. Disponível em https://www.scielo.br/j/sdeb/a/K8T7nqTnzZLXRXP4GswTvHP/?format=pdf&lang=pt. Acesso jun. 2021.

SILVA, Rodrigo Machado da. História e Historiografia Analítica e sentimental: Preposições sobre a distância histórica, nostalgia e visões da modernidade brasileira dos oitocentos. Disponível em https://www.scielo.br/j/alm/a/WVtpzfdGG8xKHNJYsDD4h6r/?lang=pt#. Acesso jun. 2021.