O Ser Mulher e Professora: do Silêncio a Voz.

Profº Ms. André Luiz Reis Mattos

Em parceria com a Pedagoga Profª Marcia Lacerda Sarmento Lopes

2 Mulheres e a Educação: Uma história a ser contada.

2.1 Imagem de mulher.

Saindo do lar onde se esperava que fossem esposas devotadas e mães extremosas, as mulheres ousaram estudar e ingressar no campo profissional como professoras primárias. Ainda que a atividade docente da mulher fosse vista como uma continuação de suas lides maternas e, por isso mesmo aceita, o magistério primário constituiu uma das grandes oportunidades de inserção (a outra seria a enfermagem) da mulher de classe média no mercado de trabalho. (BUFFA, 1998, contra-capa)

A imagem social da mulher como ser para o matrimônio e a maternidade, impõe-se na sua relação com o mercado de trabalho, “ao menos a partir do momento em que a industrialização separa cada vez mais radicalmente o domicílio e o local da produção assalariado.” (Perrot. 2005, p. 149) Este é um dos aspectos diretor das pesquisas históricas relacionadas ao trabalho e/ou as profissões de mulheres. “As mulheres sempre trabalharam. Elas nem sempre exerceram “profissões.” (Perrot. 2005, p. 51)

As pesquisas de Perrot, de Joan Scott, Madeleine Guilbert e Rancière entre outros, perpassam pelos trabalhos comumente definidos no final do século XIX, como os “bons para uma mulher”. Estudando o período de industrialização nos países europeus, as pesquisas tratam da participação das mulheres no mercado de trabalho como enfermeiras, professoras, funcionárias de lojas de departamentos, manufatura de tabacos, indústrias química, de papel e principalmente, têxtil e de vestuário.

Têxtil e vestuário concentram então 73% das trabalhadoras; como a confecção é praticada ainda amplamente em domicílio, as “operárias da agulha” encarnam, aos olhos da opinião publica, o estereótipo da operária. As afirmações de um relatório operário de 1867 continuam verdadeiras: “O destino da mulher é a família e a costura (…) Ao homem, a madeira e os metais, à mulher a família e os tecidos” (PERROT. 2005, p. 155 e 171)

Esta autora afirma, considerando a realidade social francesa, que ainda hoje como outrora, as atividades profissionais identificadas com “boas para as mulheres” limitam-se por critérios bem definidos: permitir que a mulher exerça a atividade profissional, considerada menor, e do lar, primordial. “As discriminações de fato enraízam-se nos costumes, produto de representações de longa duração, remodeladas ao sabor das necessidades do tempo.” (Perrot. 2005, p. 251) Evidencia-se este fato com a atuação em um mesmo espaço físico – a residência, das atividades profissionais com a do lar, neste período de pandemia, com as educadoras exercendo suas funções, home office.

Semelhante ao que vimos quanto à burguesia no artigo anterior, com discursos sobre a natureza feminina (inferioridade física que define sua posição no mundo), quanto à particularidade dos papeis de gênero na relação com a estrutura da família considerada essencial (matrimônio como destino apropriado, educação dos filhos, marido com “voz preponderante”, a mulher é a sua “primeira companheira”), exclusão da mulher ao direito de cidadania, entre outros aspectos; também se encontram nos escritos socialistas do movimento operário francês, com algumas poucas exceções.

As referências quanto a mulher operária afirmam “quase constante a uma natureza feminina de ordem física que determina o lugar, o papel e as tarefas é um outro traço marcante. A mulher é, inicialmente, um corpo “fraco”, com “órgãos delicados”, “frágeis”, sujeitos a “indisposições periódicas”, corpo que condiciona seu humor instável. (PERROT. 2005, p. 177)

Imagem 1: “Diga-lhes que não matem os papais nas greves, de Georges Bradberry. Fonte: Les Temps Nouveaux – Supplément littéraire, 5 mai. 1906”. O desenho incorpora “praticamente todos os elementos dessa tradição em reservar às mulheres o espaço doméstico e maternal, sempre na retaguarda das lutas, (…). Diante da brincadeira inocente da criança com seus soldados de chumbo, o clima de violência vivido pelos trabalhadores franceses nos anos 1905-1907 é evocado: após numerosas greves sangrentas, o exército é culpado por estar ao lado do capitalismo contra os operários em greve. O papel da mulher operária é o da mãe que fica em casa cuidando dos filhos, preocupada com o retorno do homem, enquanto o marido é quem faz a greve”. (Mundim, 2019) Disponível no site file:///C:/Users/User/Downloads/147866-Texto%20do%20artigo-356225-1-10-20190701.pdf. Acesso agos 2020.

Escrevendo sobre a película Les misères de l’aiguille (As misérias da agulha), produzido pelo Cinema do Povo na França, em janeiro de 1914, Mundin (2019) afirma que o filme foi abertamente dirigido para expor os problemas das mulheres urbanas da classe trabalhadora francesa, do inicio do XX. O roteiro procurou mostrar “todas as misérias da mulher moderna, daquela que sofre um pouco em todo lugar por salários de fome.” (Lucien Descaves aput, Mundim, 2019)

O “Cinema do Povo” quis, na sua estréia, apresentar ao público um drama social que interessa à mulher. Não importa o que se diz, a mulher se encontra, na sociedade atual, em uma situação de muita inferioridade em relação ao homem. Diz-se, com razão, que a mulher é explorada duplamente: explorada como produtora e, muitas vezes, explorada em sua casa. (…) O “Anjo do lar”, tão preconizado pelos poetas, não existe mais! Restam apenas infelizes maltratadas pelo destino. (Lucien Descaves, aput, Mundim, 2019)

Para a mulher, burguesa ou operária, a prioridade social de antes mesmo do século XIX e início do XX, ainda conduz ao caminho da família, sofrendo, desta forma, dupla opressão: a do lar e do espaço publico do trabalho. Quando consegue conciliar a função materna de educação com a do trabalho, na profissão de estar professora, esta se torna uma das opções para que as mulheres pudessem fazer parte do espaço social de manifestação pública. É uma profissão que

“inscreve-se no prolongamento das funções “naturais” maternais e domésticas. O modelo da mulher que auxilia, (…) mulher que cuida e consola, realiza-se nas profissões de enfermeira, de assistente social ou de professora primária. Crianças, idosos, doentes e pobres constituem os interlocutores privilegiados de uma mulher dedicada às tarefas caritativas e de socorro, (…) profissões [que] colocam em ação as qualidades “inatas”, físicas e morais: flexibilidade do corpo, agilidade dos dedos – aqueles “dedos de fada”, hábeis na costura e no piano (…) e até passividade que predispõe à execução, doçura, ordem. (PERROT. 2005, p. 252)

2.2 Imagem de mulher: a realidade brasileira.

Zélia Maria Mendes Biasoli Alves afirma que a mulher no Brasil precisava possuir no final do século XIX determinadas características para que fosse atraente no papel de esposa, formando “uma teia complexa, tão intrincada que as práticas tendem a se perpetuar e a se reproduzir nas mais diversas famílias que têm “filhas mulheres”.” (ALVES, 2000) O saber divertir a família ao piano, conforme imagem 2, é uma destas “características atraentes” a jovens com perspectivas para o matrimônio.

Contudo, não basta possuir os atrativos necessários e a atenção de candidatos porque, em última instância, é a família quem tem o poder, quem “arranja” os casamentos, ou são as famílias que se juntam e combinam o que para elas é considerado o melhor. No final do século XIX e início do XX “a mulher é escolhida”ao mesmo tempo em que é “comandada”. Moça com muitos pretendentes tinha os seus pais e irmãos para direcionarem (com brandura ou imposição) com quem deveria se casar. E, por isso, não precisava estudar, porque, segundo as mulheres e os homens mais velhos, era dito, como justificativa para tirar a menina da escola que: O estudo muda a cabeça e faz a moça ficar sonhando bobagens. (Mulher, 80 anos); Mulher aprende a ler e escrever só pra ficar lendo romances e escrevendo bilhetes para o namorado. (Homem, 78 anos); Moça direita não perde tempo com essas besteiras de ficar lendo romances, porque isto é ocasião de perdição. (Mulher, 75 anos). (ALVES, 2000)

A historiografia moderna, pesquisando os processos de constituição da família na sociedade cristã ocidental e as implicações da educação da criança, demonstra o quanto o comportamento valorizado para a menina, na cultura dos últimos quartos do século XIX e início dos XX, baseava-se na obediência aos pais e aos mais velhos e às normas sociais de convivência. 

Tratava-se de um sistema em que a possibilidade de que a menina/moça/mulher viesse a transgredir e sentisse o “gosto bom” da liberdade era muito restrita. Restava-lhe o prazer de “agradar”porque aí passava a ouvir elogios: Eu sempre agradei quando fazia a coisa certa, eu dizia que ficava bonita, que agora sim era uma mocinha… (Mulher, 80 anos). E todos diziam aos pais que eles estavam de parabéns, porque nada me dava mais prazer do que, quando saia com eles, ouvir alguém elogiar e falar:`nossa, que menina mais educada que você tem, é um primor esta sua filha’. (Mulher, 90 anos). (ALVES, 2000)

Imagem 2: Meninas ao Piano, Renoir, 1892. A pintura demonstra uma cena doméstica simples, onde moças aprimoram um dos atrativos necessários a vida conjugal. Disponível no site https://www.tudoporemail.com.br/content.aspx?emailid=13742. Acesso agos 2020.

Este diferencial na educação feminina não apenas direciona a reflexão ao fenômeno de dominação masculina (o menino obtinha uma educação diversa em vários aspectos do da moça), como também explica a preocupação da família com o futuro da filha mulher, que deverá encontrar um marido que possa mantê-la e para isso é fundamental manter intacto suas “virtudes”, principalmente se o objetivo “fazer um bom casamento”, com um rapaz considerado um “bom partido.”

A pesquisa de Alves é baseada em analises e observações dos relatos

(…) de idosos/idosas que passaram a infância no final do século XIX e início do XX evidencia(ndo) um conjunto de valores presentes, de forma maciça, em diferentes camadas da população (médias e populares); alguns aplicar-se-iam indistintamente ao menino e à menina: “Respeito”, “Obediência”, “Honestidade”, “Trabalho”; mas outros seriam apenas ligados ao contingente feminino: “Submissão”, “Delicadeza no Trato”, “Pureza”, “Capacidade de Doação”, “Prendas Domésticas e Habilidades Manuais”. Esses valores recebem o rótulo de tradicionais, e cada grupo mostra, claramente, o que é esperado de um menino/rapaz e o que vem a ser o desejável para uma menina/moça. Ou seja, a educação não só se fazia diferente quanto propiciava que as distinções ficassem bem marcadas.(ALVES, 2000)

Desta maneira, compreende-se que esta foi uma época em que pensamento masculino, aliado a influência da igreja católica e da ciência positivista, moldava a imagem da mulher, não só por sua condição física, mas também intelectual, vista como inferior ao homem. Sua função se limitava ao ato de procriar, de cuidar dos filhos, marido e afazeres domésticos. Ter acesso ao estudo era uma realidade não ofertada a todas as classes sociais, não entendido como uma virtude a ser somada as outras e se limitava apenas às primeiras letras.

As conquistas das mulheres a partir do século XIX as tornaram paulatinamente, sujeitos de si, trazendo mudanças significativas em vários setores da sociedade, entre eles, na organização familiar, onde a mulher passa, em um número significativo de lares, a ocupar o lugar de chefe de família, na taxa de fecundidade, no mercado de trabalho, no aumento da procura por nível de instrução, e em profissões antes ocupadas somente por homens, começaram a dar espaço às mulheres, entre outras.

Alves (2000) questiona se as virtudes valorizadas no comportamento feminino desapareceram ou foram encobertos enquanto a mulher construía o seu espaço na sociedade, ou se foram substituídos por outros.

A resposta mais provável é: foram mantidos. Os dados de nossos projetos permitem afirmar que, durante todo um período que se poderia classificar como de transição, há um “pano de fundo” contra o qual a mulher continua sendo avaliada, ainda que a análise do quadro que se desenha nos anos 30, 40 e 50 mostre, já, uma abertura maior para a sua escolarização. No entanto, as diferenças permanecem muito grandes entre as expectativas da família em relação à vida escolar e profissional de seus “filhos homens” e a das meninas/moças. (ALVES, 2000)

2.3 Uma história a ser contada.

Pesquisar a trajetória das mulheres no magistério através dos registros históricos disponíveis, incluído na história global do trabalho da mulher, (“inseparável da história da família, das relações entre os sexos e de seus papeis sociais” (Perrot. 2005, p. 244)) é retirar do lugar de esquecimento e reavivar a memória da exclusão/inclusão da mulher professora, ainda insipiente no debate acadêmico brasileiro, mostrando como suas ações interviram/interferiram diretamente nas transformações sociais e culturais ocorridas naquele período, permanecendo com esta característica até os dias atuais.

É preciso compreender que estas são profissionais que se colocaram e ainda hoje permanecem na posição primeira em relação às práticas educacionais nas instituições de ensino. As pesquisas acadêmicas em torno das questões sobre a mulher no espaço social (durante as décadas de 70 e 80 do século passado) analisavam a constituição de papéis e os conflitos que marcam as relações entre os gêneros, privilegiando as conquistas femininas nos ambitos da política, da vida no campo, na literatura, na religião, ocorrendo uma ausência da presença da mulher em sala de aula.

A historiografia da educação vem priorizando os estudos nos campos de análise da história dos pensamentos e das ações pedagógicas, com muito mais intensidade.

Entre mulheres e educação, o que sempre se esculpiu nas vidas femininas foi um entrelaçamento de destinos incorporando sujeitos históricos aspirando por um lugar próprio no tecido social e uma profissão que se adaptou perfeitamente àquilo que elas desejavam, aliando o desempenho de um trabalho remunerado as aspirações humanas e afetivas que sempre lhes foram definidas pela sociedade. (ALMEIDA, 1998, p. 26)

Os historiadores filiados a História da Educação, que buscam ampliar as questões relacionadas à ocorrência feminina no magistério, identificam um lugar de pesquisa que começa a percorrer o universo educacional onde permeia o exame da atuação em sala de aula, que quando desvendada, suplantará o pensamento circunscrito a um ideário vocacional, apostólico e materno, não se excluindo a atuação da mulher professora nos problemas sociopolíticos, educacionais e culturais de sua época.

Ainda hoje a figura da docente enfrenta uma invisibilidade cultural, um afastamento de registros históricos e uma desvalorização por grande parte da coletividade, que não consideram seu papel relevante na construção e socialização dos conhecimentos e intervenção na manifestação dos indivíduos que interagem e influenciam a vida de relação, reproduzindo práticas que refletem interesses políticos e econômicos de uma parcela da sociedade brasileira.

A profissão do magistério que, a princípio, foi ideologicamente erigida como dever sagrado e sacerdócio por conta da tradição religiosa do ato de ensinar, tornou-se, na segunda metade do século XX, alvo de denúncias de proletarização e desvalorização, ora colocando professores e professoras como vítimas do sistema, ora como responsáveis pelos problemas educacionais que afligiam o país. Neste fim de século, o magistério primário é uma profissão definitivamente feminizada e as mulheres professoras tem em suas mãos a responsabilidade de ensinar crianças nos seus primeiros anos escolares, num país que acaba de promulgar a sua segunda Lei de Diretrizes e Bases e instituir a Década Nacional da Educação. (ALMEIDA, 1998, p 15)

Imagem 3: Gabriel Prestes (no centro), que foi diretor da Escola Normal e a Escola Modelo, atualmente Instituto de Educação Caetano de Campos, situado no bairro Consolação, em São Paulo/SP, com as normalistas, nesta fotografia do final do século XIX. Os cargos de direção das Escolas brasileiras da época se mantiveram nas mãos masculinas durante período inicial do século XX. Disponível no site https://ieccmemorias.wordpress.com/2015/05/27/galeria-dos-diretores-e-alguns-professoresda-escola-normal-da-praca-ate-1924/. Acesso agos 2020.

A importância contida nas conquistas das mulheres nesse espaço público despertou novos olhares que indicam que estas possuíam uma paixão e consciência de que a profissão seria sempre fundamental para as mudanças educacionais necessárias a formatação de uma sociedade mais democrática e justa.

Para a professora Jane Soares de Almeida dar voz ao magistério feminino, recolocando-o no devido lugar da história da educação brasileira, ante tantas críticas, falsidades e estereótipos que percorrem a nossa cultura, é identificar que a dedicação e o devotamento de tantas mulheres à educação não se explicariam apenas pelos ditames profissionais; estamos também, segundo a autora, diante de outra fonte energética: a paixão pelo possível, “sentimento derivado do sentido do ser e da existência, que incorpora o desejo as possibilidade concretas de sua realização”. (ALMEIDA, 1998, p. 13)

O conceito de paixão é utilizado pela autora para definir não somente o desempenho docente, mas o desejo, a coragem e o esforço empreendido em ações num território onde, principalmente nos anos iniciais da formatação desta memória, o poder e a presença masculina se sobrepunha à feminina. Ao se referir as mulheres e suas manifestações no campo educacional, Almeida (1998) afirma que as primeiras, as pioneiras da profissão desafiaram estruturas de desigualdades sociais, resistiram e acataram normatizações que as confinavam e oprimiam, mas que também foram as que deram os primeiros passos na tentativa de se conseguir algo mais do que o permitido pela sociedade da época.

Imagem 4: Registro de uma atividade cívica em homenagem ao Dia da Árvore, realizada na Praça da Autonomia, na cidade de Três Rios/RJ onde se tem a presença de alunas de escolas do município – no primeiro plano à esquerda, jovens terminando o plantio de uma muda acompanhadas da professora. Identifica-se na fotografia: terceiro da esquerda para direita, o Prefeito Walter Gomes Francklin, adiante a segunda mulher com vestido branco, Alva Coutinho Carvalhido e os dois últimos, João Pedro da Silveira e Aquilas Coutinho. Fotografia do início da década de 1940, sem autor definido, acervo Profª Ezilma Teixeira.

“Registrar história feminina no campo educacional tem sido a tentativa de estudiosos do tema, mas estes ainda são bastante reduzidos”. (ALMEIDA, 1998, p. 26) A ausência de registros e trabalhos neste campo de pesquisa, torna as mulheres professoras invisível para a memória da educação brasileira. No exemplo da imagem 4, onde é possível perceber a presença feminina não apenas na figura da professora, mas também, entre as alunas. Alva Coutinho foi professora no município e primeira e única representante feminina na Câmara de Vereadores do Município. O registro é do início da década de 40 do século passado, demonstrando o longo tempo histórico de pesquisa a ser realizada.

Revive-las é revirar silêncios e omissões, levantando os véus do que foi calado e sufocado no desenvolvimento social e na construção da história. É tornar compreensível que o ser professora é muito mais do que o tempo e o conhecimento dispensado na sala de aula. É compartilhar de uma paixão pelo exequível, com aqueles que acreditam que a escola é um dos lugares em que a socialização é essencial, principalmente, para os que residem em comunidades esquecidas pela sociedade. Além das questões referentes aos estudos e pesquisas sobre a participação feminina no campo da educação brasileira, é preciso também, definir as expressões e palavras a serem utilizadas na prática historiográfica, que atentem as discussões de gênero.

Usualmente, escreve-se no masculino, ou seja, a grande maioria das pesquisas em educação (como em outras áreas) refere-se aos alunos, aos operários, aos professores, aos adultos, etc., ou utiliza termos genéricos, como a classe trabalhadora, a elite brasileira, a burguesia, o professorado, o movimento social… A intenção primeira talvez seja de “dar conta” do coletivo, de fazer uma leitura mais geral e generalizável dos fenômenos (e nada poderia ser mais enganoso do que isso!); outra interpretação possível seria perceber nestes estudos uma predominância masculina, na suposição de que o que temos construído é, primordialmente, uma história da educação dos homens. Penso que isso também não é feito. Acredito que a história que usualmente se produz, e pretensamente neutra, isto é, ao se referir aos movimentos de alfabetização de adultos dos anos cinquenta/sessenta, a disciplinarização imposta durante o Estado Novo, ao acesso das classes populares à escola, ou outros temas, usa-se o masculino genérico, mas se lida de fato com atores sem corpos, sem cor, sem gênero. Na busca de um pretenso coletivo, o que se consegue é uma generalização vaga, que expressa muito pouco a diversidade e complexidade do tecido social. (LOURO, 1994)

Esta prática de escrita reafirma a extrema ambiguidade ainda presente na construção do saber científico, do conhecimento e da história, que desconsidera que a ação humana se dá nos fatos precisos do cotidiano e nas relações em sociedade, sendo estas representativas das aspirações únicas das vidas solitárias de homens e mulheres que, paradoxalmente, não excluem o desejo de fazer parte da coletividade para conseguir a realização individual.

 “A memória revivida faz ressoar silêncios e omissões, levantando véus daquilo que foi calado e sufocado.” (ALMEIDA, 1998, p. 12) É preciso considerar nas pesquisas e estudos não somente a memória coletiva de uma sociedade, mas as posições e ações incluídas nos lugares de esquecimento, a respeito das relações de trabalho, da instrução, da vida e cultura femininas, representada no decorrer do tempo histórico, pelo “equilíbrio entre a condição desejável e a possível de se obter”. (ALMEIDA, 1998, p. 32)

Referencias

ALVES, Zélia Maria Mendes Biasoli. Continuidade e Rupturas no papel da Mulher Brasileira no Século XX. Disponível no site:< http://www.scielo.br/pdf/ptp/v16n3/4810.pdf>. Acesso mar 2015.

BUFFA. Ester, in, ALMEIDA. Jane Soares. Mulher e Educação: a paixão pelo possível. UNESP. São Paulo/SP, 1998, contra-capa.

LOURO, Guacira Lopes. Uma Leitura da História da Educação sob a Perspectiva do Gênero. Disponível no site: < https://revistas.pucsp.br/revph/article/view/11412/8317 > Acesso jan 2015.

MUNDIM, Luiz Felipe Cezar. As misérias da agulha do Cinema do Povo: um filme feminista no primeiro cinema. Significação, São Paulo, v. 46, n. 52, p. 16-38, jul-dez. 2019. Disponível no site file:///C:/Users/Particular/Documents/Downloads/147866-Texto%20do%20artigo-356225-1-10-20190701.pdf. Acesso agost 2020.

O Ser Mulher e Professora: do Silêncio a Voz.

Em parceria com a Pedagoga Profª Marcia Lacerda Sarmento Lopes

Estas reflexões serão divididas em três momentos:

1 – O Silêncio na historiografia.

2 – Mulheres e Educação: Uma história a ser contada.

3 – O magistério como espaço de inserção da mulher na esfera pública.

1. O Silêncio na historiografia.

Durante a instrução a mulher conserve o silêncio, com toda submissão. Eu não permito que a mulher ensine, ou domine o homem. Que ela conserve, pois, o silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida (pelo demônio em forma de serpente), caiu em transgressão. Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que, com modéstia, permaneça na fé, no amor e na santidade. (PAULO, o Apóstolo. I Epístola a Timóteo 2, v. 8-15)

A identidade social “concedida” as mulheres pelo Apóstolo Paulo, estabelece o silêncio e a submissão como posição do feminino na vida de relação, mandamento repetido por séculos pelas religiões, pelos manuais de comportamento e sistemas políticos e sociais. Historicamente a mulher é apresentada como sujeito coadjuvante em relação ao homem, sendo este fato uma construção social formatada por fatores biológicos, psíquicos, sociais e culturais.

Michelle Perrot, professora emérita de História Contemporânea na Universidade de Paris VII – Denis Diderot, pesquisando a história das mulheres, apresenta em seu livro As mulheres ou os silêncios da história os mais amplos olhares sobre o sujeito feminino ao empenhar-se, fundamentada em mais de trinta anos de estudos, em fazer emergir um relato histórico que destaque o papel atuante das mulheres como atrizes e agentes sociais de sua própria história.

Apesar dos avanços da historiografia moderna

subsistem, (…) muitas zonas mudas e, no que se refere ao passado, um oceano de silêncio, ligado à partilha desigual dos traços, da memória e, ainda mais, da História, este relato que, por muito tempo, “esqueceu” as mulheres, como se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução, inenarrável, elas estivessem fora do tempo, ou ao menos fora do acontecimento. (PERROT, 2005, p.9)

Durante largo período, as mulheres foram objeto de uma historiografia que as sentenciou ao silêncio e à invisibilidade, ficando a margem dos principais acontecimentos. O único som que ecoava era da voz masculina. A construção da história das mulheres percorre caminhos difíceis no objetivo de se registrar “seus passos”. A invisibilidade identificada nas pesquisas históricas relaciona-se, notadamente durante o período dos séculos XVII ao segundo quarto do XIX, aos traços da vida privada na qual, sua existência, não era considerada algo que valesse registrar, seja da mulher operária ou da mulher burguesa.

É importante anotar que esta invisibilidade apresenta-se como uma condição imposta pela posição do homem na vida social e do poder concedidos aqueles que percorreram boa parte do século XX escrevendo a história da sociedade ocidental.

Dentre todas as razões apresentadas para a invisibilidade histórica das mulheres, a autora [Michelle Perrot] destaca que o silêncio mais profundo é o silêncio do relato, pois se faz dominado pelo exclusivismo político, econômico e social masculino, no qual a história produzida é a história das rainhas e heroínas ou a história das mulheres imaginadas e idealizadas pelos homens. (AVILLA, 2014)

Ainda é preciso considerar a carência de traços, de fontes históricas, o que contribui para esta opacidade na escrita da história das mulheres. “Este defeito de registro primário é agravado por um déficit de conservação dos traços (…) a matéria que constitui as fontes integra a desigualdade sexual e a marginalização ou desvalorização das atividades femininas”. (PERROT, 2005, p. 12)

Os registros escritos apresentam-se como umas das fontes que permitem ao pesquisador da atualidade ampliar conhecimentos quanto à vida social das mulheres – suas atitudes, emoções e pensamentos, e o espaço privado ao qual estavam limitadas. Mas estes testemunhos serviram em muitos momentos para tornarem-se lembranças (construindo uma memória) e depois, para esquecer.

Como secretárias da família, as mulheres foram as grandes produtoras de arquivos privados. Nos livros de anotações elas registravam de uma maneira concisa a história familiar. As correspondências trocadas com irmãs, primas, tias, amigas íntimas, também eram uma forma de anotar suas experiências, porém, algumas destas cartas que permaneceram nos arquivos continham solicitações para que após a leitura se queimassem as amadas missivas. Acreditavam que se seus herdeiros, as gerações futuras, não tivessem acesso a suas confidências, elas não seriam julgadas ou mal interpretadas. Assumiram assim, um silêncio cúmplice, providenciando a destruição dos arquivos antes do final de uma vida; apagando os vestígios de suas histórias, pois…

o silêncio era ao mesmo tempo disciplina do mundo, das famílias e dos corpos, regra política, social, familiar – as paredes da casa abafam os gritos das mulheres e das crianças agredidas -,e pessoal. Uma mulher conveniente não se queixa, não faz confidências, exceto, para as católicas, a seu confessor, não se entrega. O pudor é sua virtude, o silêncio, sua honra, a ponto de se tornar uma segunda natureza. A impossibilidade de falar de si mesma acaba por abolir o seu próprio ser, ou ao menos, o que se pode saber dele. (PERROT, 2005, p. 10)

A mulher se cala pela própria imposição social do silêncio, não há escolha, “por pudor, mas também por autodesvalorização, elas interiorizavam, de certa forma, o silêncio que as envolvia” (PERROT, 2005, p. 13). E quando o silêncio é quebrado pela escrita este se faz apenas pelas privilegiadas da cultura.

As obras de arte do período relacionado contribuem para a construção desta imagem que silencia a mulher no seu espaço de manifestação: a vida privada.

Na pintura de Belmiro de Almeida, por exemplo, é possível encontrar os elementos indicadores desta realidade: o espaço privado, a posição do corpo inferior ao do homem, o rosto escondido pelo silêncio ou o pranto, a rosa (elemento de representação de um sentimento feminino de relação) despedaçada no chão, e principalmente, a indiferença do homem com relação ao que acontece com a mulher.

Imagem 1: Obra Arrufos (1887). Esta composição é um quadro do pintor, caricaturista, escultor, jornalista e professor brasileiro Belmiro de Almeida (22/05/1858 – 12/06/1935); produzida no início da sua carreira, é um dos seus trabalhos com maior reconhecimento. Atualmente faz parte do acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Disponível no site http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra6374/arrufos. Acesso jun 2020.

As experiências vivenciadas pelas mulheres do século XIX, além das obras de arte e das fotografias, foram registradas praticamente nas relações e nos objetos do cotidiano de expressão do privado familiar. Presentes recebidos em um aniversário ou mesmo pequenas lembranças trazidas das viagens por seus amados, objetos herdados de sua infância, pequenos museus de memórias femininas, verdadeiros lugares de lembranças onde guardavam seus pensamentos. Um universo constituído de representações da sua condição de ser materno e familiar: a casa, o jardim, a doçura das coisas, os enfeites, a fragilidade e a submissão.

Entre estes objetos a roupa branca tinha seu destaque, pois pertencia à esfera do íntimo, confissão da sua condição, as outras vestes, a esfera pública. Elas estão ligadas ás aparências na qual o cuidado é um grande dever das mulheres, sobretudo as da burguesia.

Desta maneira suas histórias também foram contadas de forma subliminar sem o registro de escrita, afirma Perrot, mas incutido em suas roupas e objetos de uso pessoal, ou seja, inscrevem-se as circunstâncias de sua vida através dos vestidos que elas usavam: seus amores na cor de uma echarpe ou simplesmente na forma de um chapéu. Uma luva, um lenço, era para essas mulheres relíquias de que só elas tinham condição de perceber o valor. O tempo dos acontecimentos era contado, lembrado pelas roupas que outrora vestiam. “A memória das mulheres é vestida. A roupa era sua segunda pele, talvez a única de que se ousa falar ou ao menos sonhar”. (PERROT, 2005, p. 39)

Imagem 2: Retrato do Marquês e Marquesa de Miramon e seus filhos (1865), obra de James Jacque Joseph Tissot, arte vitoriana disponível no site https://www.meisterdrucke.pt/artista/James-Jacques-Joseph-Tissot.html. Acesso jun 2020.

O escrito sobre a imagem 4, uma fotografia encenada, proporciona a possibilidade de percebermos o quanto a representação da fragilidade da saúde e emocional da mulher (assim a sua posição menor em relação ao homem) está presente no imaginário social da época.

Para o público vitoriano, a imagem evocava não só a inquietante realidade da doença como também o romantismo associado a ela, que era relacionada à criatividade artística e a amores não correspondidos. Robison inclusive apresentou um estudo da figura central desta fotografia intitulado “Ela nunca revelou seu amor”. Embora alguns considerassem perturbador ver uma cena tão íntima e mórbida representada em uma mídia tão realista quanto a fotografia, os espectadores da época compreendiam que Robison havia fotografado uma modelo representando um papel, não uma jovem moribunda de fato.(2012)

A mesma representação vamos encontrar no painel de James Jacque Joseph Tissot, na imagem 3, onde vemos uma jovem desmaiada (morta) no chão, e próximo a ela, um caderno de anotações ou diário.

Num outro momento as fotografias consentiram “que se conservasse o rosto amado (…) fotografias individuais ou de família, emolduradas ou reunidas em álbuns, estes herbários da lembrança, alimentam uma nostalgia indefinidamente enfraquecida.” (PERROT, 2005, p. 37) Memórias guardadas, formando os museus de vidas femininas, construídos na paixão pelas coisas, permitindo que algo de suas existências fosse retirado dos lugares de esquecimento.

Imagem 3: Abandonado (1881-2), painel de James Jacque Joseph Tissot (1836 – 1902) arte vitoriana disponível no site https://www.meisterdrucke.pt/artista/James-Jacques-Joseph-Tissot.html. Acesso jun 2020.

Assim, os modos de registro das mulheres estão ligados à sua condição, a sua fragilidade, ao seu lugar na família e na sociedade (…) é uma memória do privado, voltada para a família e para o íntimo, aos quais elas estão de certa forma relegadas por convenção, [cumplicidade] (meu destaque) e posição. (PERROT, 2005, p. 10)

A quantidade e a natureza das fontes representativas da vida das mulheres vieram se alterando ao longo do tempo histórico; assim, a escrita, os objetos, os discursos e ações fizeram retroceder o silêncio permitindo a construção de uma historiografia da mulher.

É o olhar do historiador em seu tempo histórico que constrói a escrita da história. Simone de Beauvoir, citada por Perrot, afirmou que “toda a história das mulheres foi feita pelos homens” (PERROT, 2005, p. 14). Esta historiografia do silêncio tem a sua base no nascedouro da constituição da história como ciência no século XIX, entregue as “mãos” de universitários, tendo no seu conteúdo acadêmico a preocupação com as pesquisas de uma história positivista pública e política, espaço onde as mulheres permaneciam ausentes.

Imagem 4: Henri Peach Robinson – Desvanecendo-se, (1858). Albúmen a partir de cinco negativos de vidro colódio úmido; utilizando-se da técnica de impressão combinada, Robinson oferece uma representação dos últimos momentos de uma bela jovem tuberculosa cercada pela família. Disponível no site https://www.widewalls.ch/magazine/pictorialism-photography-pictorialist-photographers. Acesso em jun 2020.

As transformações ocorridas no campo de pesquisas da História iniciadas no final da década de 20 do século passado (Escola dos Annales na França) possibilitaram, na década de 50, através, principalmente, dos estudos das “culturas familiares e do cotidiano”, mais atenção ao silêncio na historiografia sobre as mulheres, como visto nas obras de Georges Duby.

A leitura realizada sobre este tema pela História da Educação, campo de pesquisa da História Cultural, sob a perspectiva do gênero, se tornou no Brasil, mais frequente a partir da década de 70, seguindo uma tendência da Historiografia Francesa. Os grupos de estudos no meio acadêmico brasileiro passaram a pesquisar questões sobre a mulher ou a refletir sobre as relações homem/mulher em nossa sociedade.

Louro (1994) afirma que alguns núcleos iniciados nessa época foram criados nas universidades brasileiras, sendo uns vinculados a uma área específica e outros possuindo um caráter interdisciplinar. As pesquisas e estudos realizados, que por um longo tempo tiveram um caráter mais descritivo e até mesmo denunciador, recentemente caminharam para um campo de formatação teórica, a partir da descrição e da análise, propondo novos paradigmas; especialmente nos últimos anos, passam a apresentar algumas questões conceituais sobre uma dupla denominação: “estudos da mulher” ou “estudos de gênero”.

Quanto a essas abordagens a Prof.ª Dr.ª Guacira Lopes Louro relaciona em artigo publicado no início da década de 90, que

algumas estudiosas preferem a primeira denominação por acreditarem que deixa explícito de quem se quer tratar e chama a atenção para um sujeito/objeto de estudos tradicionalmente escondido ou negado numa ciência androcêntrica; outras estudiosas preferem o conceito de gênero,  já que este significa “a construção social e histórica dos sexos”, ou seja, pretendem, ao utilizar esse conceito, enfatizar o caráter social – e ao mesmo tempo relacional – dos dois sexos (portanto nessa abordagem supõe-se que os estudos se dediquem à construção do feminino e do masculino)”. (LOURO, 1994)

Entendemos que ao concentrar nossas pesquisas nos estudos teóricos nas obras de Michelle Perrot e Jane Soares de Almeida, além de outros autores através dos artigos analisados, percorremos pelos dois enfoques conceituais.

Imagem 5: Professora Núncia Bascú e seus alunos da capela Santa Lúcia, Nona Légua, Caxias do Sul, década de 1920. Ao fundo, a capela Santa Lúcia. Disponível no site https://www.researchgate.net/figure/Figura-1-Professora-Nuncia-Bascu-e-seus-alunos-da-capela-Santa-Lucia-Nona-Legua-Caxias_fig1_315973906. Acesso em jun 2020.

Perrot (2005) concentra parte de suas reflexões na história das mulheres operárias francesas do final do século XIX. Na seqüência desta publicação, estaremos nos concentrando nos caminhos da educação percorridos pelas mulheres brasileiras do final do século XIX e início do XX, tendo como principal referência à obra de Jane S. de Almeida. As primeiras mulheres, as pioneiras da profissão de educadoras que desafiaram estruturas de desigualdade social, que resistiram e acataram normatizações que as confinavam e oprimiam, mas que também deram os primeiros passos na tentativa de conseguir algo mais do que aquilo que lhes concedia o poder masculino.

Retirar do lugar de esquecimento essa presença das brumas do passado e dar-lhes perpetuação por meio da obra escrita são funções do historiador e principalmente do educador. Defender ideias e pontos de vistas divergentes, demolir parâmetros ao escolher a experiência vivida como foco de análise, promover rupturas nos valores dados como permanentes, expor-se e aceitar os riscos e as críticas fazem parte do ofício de se realizar a pesquisa histórica, o que também é um ato de coragem e, por que não, de paixão.

O caminho da educação não foi apenas resultado de uma concessão masculina, e nem ocorreu sem estar impregnado de preconceitos ligados ao sexo, significou na verdade, a oportunidade entrevista pelas jovens da época de conseguir maior liberdade e autonomia, num mundo que se transformava e no qual queriam ocupar um espaço que não fosse apenas aquele que lhes foi reservado pela sociedade masculina, representado pela vida no lar e a inteira dedicação à família.

Durante muito tempo a profissão de professora foi praticamente a única em que as mulheres puderam ter o direito de exercer um trabalho digno e conseguir uma inserção no espaço público, dado que os demais campos profissionais lhes foram vedados.

Existem muitas histórias a serem descobertas e outras revisitadas, histórias que se apresentam em fotografias e artes.

Uma história que faz parte do universo feminino, não se conta com um tipo de som ou de uma voz apenas e muito menos sobre um único olhar em uma mesma direção por séculos e séculos. Existem vários personagens, protagonistas, atores em cada ação, existem uma diversidade de sons, olhares, e sujeitos de suas histórias.

Referências:

ÁVILA, Rebeca Contrera. Resenha do Livro Minha História das Mulheres de Michelle Perrot, Disponível no site:<file:///C:Users/Particular/Downloads/248-825-1PB%20(1).pdf> Acesso em nov. 2014.

LOURO, Guacira Lopes. Uma Leitura da História da Educação sob a Perspectiva do Gênero. Disponível no site: < https://revistas.pucsp.br/revph/article/view/11412/8317 > Acesso em jan. 2015.

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Introdução. EDUSC, Bauru/SP, 2005.

HACKING, Juliet e CAMPANY, David. Tudo sobre Fotografia. GMT Editores Ltda. Rio de Janeiro/RJ, 2012.

Corpos e Cheiros: O Brasil no fundo do poço.

Benvindo Siqueira é brasileiro, ator, humorista, autor, diretor de teatro, cinema e televisão, opera também como Youtuber tecendo reflexões bem-humoradas sobre política e comportamento; possuindo uma extensa filmografia e trabalhos em novela e teatro, é nascido em 27 de julho de 1947, atualmente está com 72 anos, tendo 54 de carreira.

Iniciou sua atividade no teatro em 1966 no Rio de Janeiro ao lado de Gonzaguinha e Reinaldo Gonzaga com o espetáculo “Joana em Flor”, desde então esteve presente em mais de 50 peças. Criador do moderno Teatro de Rua no Brasil em 1977 em Salvador na Bahia, em 2006 participou do Tecendo Saber, projeto educacional televisivo do Instituto Paulo Freire, interpretando o Seu Celestino. Publicou o livro “Humor, Graça e Comédia” pela Editora Litteris.

Imagem 1: Benvindo Siqueira. Fotografia sem informação do autor. Disponível no site <https://noticiacarioca.wordpress.com/2018/01/29/bemvindo-sequeira-volta-ao-palco-com-stand-up-apos-tres-anos-afastado/>. Acesso em jun 2020.

Na Rede Globo, fez Tieta e ficou famoso por seu personagem na Escolinha do Professor Raimundo, “Seu Brasilino”. Foi dirigente de entidades profissionais pela defesa dos direitos de artistas. Possui um site na internet com informações sobre sua vida e carreira: https://www.bemvindo.art.br/, além de páginas no Instagran e Facebook.

Siqueira publicou um vídeo no youtube intitulado O Poço e o Fundo do Poço, a mais ou menos três meses, e as impressões de seu relato, que sugiro a todos assistirem (https://youtu.be/TheryTt0mSo), me motivou a escrever estas reflexões.

Instado por sua neta a ver o filme O Poço, película espanhola dirigida por Galder Gaztelu-Urrutia, onde o roteiro utiliza-se de uma prisão dividida em andares com um poço no meio das celas, para escancarar o egoísmo humano em uma evidente divisão de classes, Benvindo relata a sua impressão inicial:

__O filme é fantástico, quem já viu pode dizer, eu não aguentei 15 minutos de filme, era um horror, era um horror, o filme me horrorizou – mostrando por gestos ter acompanhado o filme com as mãos sobre os olhos. Afirma que não teve estômago para continuar, fazendo-o por curiosidade apenas de forma “picotada” nos dias seguintes.

__O filme, – afirma, é o retrato fiel da desigualdade do mundo capitalista. É o retrato fiel do Brasil. O Brasil é o próprio Poço com sua desigualdade social.

Constrói Siqueira uma análise sobre o filme que considera uma alegoria, uma cadeia com centenas de andares e com um poço no centro, onde os sujeitos se encontram encarcerados – dois em cada cela -, numa prisão distópica onde todos pertencem a um nível, não podendo sair.

Imagem 2: A desigualdade social tem cor, traços e corpos bem marcados nos quadros de Cândido Portinari, um dos pioneiros ao retratar os marginalizados e excluídos em suas obras. A tela, Criança Morta (1944) retrata vida difícil enfrentada por famílias brasileiras que abandonam suas terras arruinadas pela miséria e a fome. Disponível no site <https://masp.org.br/acervo/obra/crianca-morta>. Acesso em jun 2020.

Pelo poço desce uma bancada com “os melhores banquetes, dispostos no primeiro estamento, no estamento zero, por mais de 50 chefes de cozinha preparando os melhores manjares do mundo” (SIQUEIRA, internet) A bancada desce para o primeiro andar onde os personagens, por três ou quatro minutos, podem comer a vontade e assim sucessivamente de andar em andar.

__Lá pelo 30º andar já não há mais comida suficiente, porque todo mundo já comeu, os andares de cima já comeram o que era para ter comido. Já quase não tem mais nada, o que sobra é uma comida mijada, cagada, cuspida, restos (…) mas mesmo assim as pessoas disputam e comem. Quando chega aos últimos andares já não existe mais nada e as pessoas começam a comer-se umas as outras, “fatiadas”.

__Mas é o perfeito retrato do que o capitalismo faz com os povos do mundo. E é o perfeito retrato da sociedade brasileira. (meu destaque)

A partir deste momento da sua narrativa, Benvindo Siqueira procede a uma comparação da nossa sociedade com a realidade retratada no filme, afirmando que vivemos num poço de desigualdades onde a miséria não tem fim. As imagens construídas pela sua fala forte, incisiva, estabelecida nas relações de exclusão e territoriedades sociais imprime-se na afirmativa de que “é insuportável assistir O Poço, como é insuportável reconhecermos e vermos a miséria do nosso país.” (meu destaque)

Imagem 3: Na obra de Leandro Bassano, 1557-1622, pintor da escola de Veneza, Banquet Scene, c. 1595, é possível identificar o banquete dos ricos e a migalhas para o miseráveis e os animais. Disponível no site <https://sites.google.com/site/aprendizuniversal/modos-de-vida>. Acesso em jun 2020.

É preciso identificar e superar as práticas de exclusão e as ações determinantes da invisibilidade, que se apresentam em nossa cultura social como uma forma de submissão e apagamento dos sujeitos viventes nos “estamentos” inferiores. Um dos caminhos é o da arte nas suas expressões em imagem.

Não há rivalidade entre fotografia e a arte quando da iluminação de realidades humanas conduzidas ao lugar de esquecimento histórico e social. Nas artes de objeções e críticas à pulsão de poder (poder que implica a formatação do poço sem fundo onde a miséria não tem fim), o que importa é trazer ao olhar o que perturba, inquieta, clareia; provocando o “conferir à imagem uma significação que parte dela [permitindo] uma interpretação que excede a imagem, desencadeia palavras, um pensamento, um discurso interior, partindo da imagem que é seu suporte, mas que simultaneamente dela se desprende.” (JOLY. 2009, p. 120)

Nas obras de arte e nas fotografias neste artigo selecionadas o que nos impressiona/aflige são os corpos e sua representatividade. Citando o filme Parasita (*), Siqueira (internet) materializa em sua fala o cheiro do povo, que é o cheiro de seus corpos:

__Quem é de classe média, classe média alta, quem é rico sabe o que é o cheiro do povo, o povo tem cheiro, porque quem mora em um barraco, cinco ou seis pessoas num mesmo cômodo, respirando o mesmo ar, o ar fétido do esgoto, da falta de ventilação, aquele cheiro fica impregnado no corpo, é o cheiro da pobreza. O ditador Presidente General Figueiredo chegou a dizer “prefiro o cheiro de cavalo a o cheiro do povo”.

Imagem 4: Descendentes dos escravos libertos pela Condessa do Rio Novo, na antiga Entre-Rios, hoje cidade de Três Rios/RJ, poucos anos após o finalizar das atividades da Colônia Agrícola de Nossa Senhora da Piedade, assistidos pelo Grupo Espírita Fé e Esperança, nesta tomada externa da sede da instituição, realizada na segunda metade da década de 30 do século XX. Fotografia do acervo Sr. Altair, sem autor conhecido. As desigualdades são mantenedoras das obras sociais de caridade, no quinhão que cabe aos sujeitos dos estamentos inferiores.

Os corpos se destacam… depauperados, envelhecidos, mal alimentados, entristecidos e sem esperança; mas não é somente o cheiro, Siqueira (internet) afirma, que  igualmente é a visão, o tato, da miséria, “aquela miséria que você se recusa a ver nas palafitas (…) a miséria mais profunda do Brasil, aquela que fede, que da horror, aquela que você não quer ver, aquela que tem casca de ferida no corpo, aquela que as pessoas estão morrendo esqueléticas, animalescas”. São os corpos dos últimos estamentos sociais.

O que menos importa nas expressões imagéticas da miséria é o contexto institucional da produção da obra de arte e da fotografia, mas a conjuntura histórica de sua recepção e a sua função desencadeadora de “fazer as coisas se aproximarem de nós, ou antes, das massas.” (BENJAMIN. 2008, p. 101)

(…) a compreensão da corporiedade humana como fenômeno social e cultural, motivo simbólico, objeto de representações e imaginários. Sugere que as ações que tecem a trama da vida quotidiana, das mais fúteis ou das menos concretas até aquelas que ocorrem na cena pública, envolvem a mediação da corporeidade; fosse tão somente pela atividade perceptiva que o homem desenvolve a cada instante e que lhe permite ver, ouvir, saborear, sentir, tocar e, assim, colocar significações precisas no mundo que o cerca. (BRETON. 2010, p. 7)

Este é o corpo, “vistos e cheirados” nas imagens da miséria humana.

“Nas sociedades heterogêneas, as relações com a corporeidade inscrevem-se no interior das classes e culturas que orientam suas significações e valores;” (BRETON. 2010, p. 81) assim temos o que a sociologia de Bourdieu e Boltanski define como os usos sociais do corpo. As valorizações distintas dos corpos sociais permitem as expressões nas territoriedades sociais do que Benjamim determina como “uma nova forma de miséria [que] surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem.” (BENJAMIN. 2008, p. 115)

Imagem 5: Moradores de rua em Recife/PE, retrato da miséria de corpos sem teto, sem abrigo, sem educação, trabalho e saúde. Não foi possível definir o autor desta fotografia.

Desta forma, a miséria, criatura das relações capitalistas, é o objeto daqueles que

(…) estão nos andares de cima [que] não querem nem saber, acham que tudo lhes é devido, que eles comem o banquete farto porque estão no andar de cima, eles merecem, e assim são as pessoas do andar de cima que pensam que estão fora do poço, não, estão todas no mesmo poço (…) os donos do poço são os banqueiros, os financistas, os investidores, os donos do agronegócio, os especuladores, estes são os donos do poço, estes que preparam o banquete que é servido às classes sociais, até chegar à migalha, até chegar à miséria total, porque o banquete não é suficiente para todos, só para os estamentos superiores. (SIQUEIRA, internet)

Mas como mitigar a pobreza de experiência se o olhar desconhece, foge, diverge dos invisíveis e excluídos, apesar deles possuírem rostos e corpos que os representam? Os homens não desejam novas experiências. “Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de descente possa resultar disso.” (BENJAMIN. 2008, p. 118)

Nada de descente, só corpos e cheiros, no fundo do poço…

 

 

Referências:

(*) Parasita é um filme sul-coreano de thriller, drama e comédia, dirigido por Bong Joon-ho. Lançado em 2019, o longa-metragem tem feito um enorme sucesso internacional depois da sua exibição no Festival de Cinema de Cannes, onde venceu a Palma de Ouro. No ano seguinte, Parasita foi o grande vencedor do Oscar 2020, premiado nas categorias de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original e Melhor Filme Estrangeiro. (…) Desde o primeiro frame, Parasita traça um retrato crítico da realidade sul-coreana, chamando atenção para as desigualdades econômicas que dividem aquele país. (…) Em dois polos opostos, as famílias Kim e Park simbolizam dois modos de vida totalmente distintos: uns vivem abaixo do limiar da pobreza e os outros são milionários. Isso se torna visível nas dinâmicas, nos problemas e nos universos mentais dos núcleos familiares. (…) Numa sociedade capitalista que se caracteriza por uma divisão extrema da população, os funcionários observam o cotidiano dos Park e percebem como a vida deles é mais fácil, mais agradável, mais feliz. MARCELO, Carolina. Filme Parasita. Disponível no site < https://www.culturagenial.com/filme-parasita/>. Acesso em jun 2020.

 

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Editora e Livraria Brasiliense. São Paulo/SP, 11ª reimpressão, 2008.

BRETON, David Le. A Sociologia do Corpo. Editora Vozes. Petrópolis/RJ, 4ª Edição, 2006.

JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. Papirus Editora. Campinas/SP, 13ª Edição, 2009.

SIQUEIRA, Benvindo. O Poço e o Fundo do Poço. Disponível: https://youtu.be/TheryTt0mSo. Acesso em jun. 2020.

História, Memória, Esquecimento: Pandemias.

Ecléa Bosi referindo-se a um movimento nas ciências humanas, ocorrido e ainda presente, nas décadas finais do século passado, quanto da recuperação da memória, indaga: “será moda acadêmica ou tem origem mais profunda como a necessidade de enraizamento? Do vínculo com o passado se extrai a força para a formação de identidade”. (meu destaque) (BOSI)

O homem sempre sentiu necessidade de olhar e conhecer o passado, mesmo quando suas articulações em sociedade convergiam estudos e pesquisas para as ações no presente e a construção de um futuro próximo. Mas existem momentos de maior fragilidade deste vínculo, quando ocorre a perda da relação do homem com suas memórias.

Para Benjamin, o principal período da história humana de distanciamento das tradições culturais e históricas é o da modernidade capitalista…

Tanto uns como os outros [operários e passantes na multidão], vítimas da civilização urbana e industrial, não conhecem mais a experiência autêntica (Erfahrung), baseada na memória de uma tradição cultural e histórica, mas somente a vivência imediata (Erlebnis) e, particularmente, o Chockerlebnis [experiência de choque] que neles provoca um comportamento reativo de autômatos “que liquidaram completamente sua memória.” (BENJAMIN)

Esta condição de uma “vivência imediata” vem provocando um distanciamento das expressões sociais e culturais formadas nas relações históricas dos diversos grupos humanos, impregnando a sociedade de um desvalor dos espaços físicos, das construções e das práticas de relação, dos sentimentos de nostalgia, das tradições, da memória e das experiências que representam o “velho”, devendo estes ser substituídos e esquecidos em nome da própria modernidade. Esquece-se o que se viveu, vive-se sem reminiscências.

A memória, a narrativa e a história, são analisadas por alguns autores como representações de coletividades sociais em determinados tempos e espaços históricos, instituídos pelas ações dos sujeitos inseridos nestes grupos.

Para Rossi…

Na tradição filosófica, e também no modo de pensar comum, a memória parece referir-se a uma persistência, a uma realidade de alguma forma intacta e contínua; a reminiscência (ou anamnese ou reevocação), pelo contrário, remete à capacidade de recuperar algo que se possuía antes e que foi esquecido. (ROSSI)

Memória, lembranças e esquecimentos, são níveis intermediários entre o tempo e a narrativa histórica; “em que a experiência temporal e a operação narrativa se enfrentam diretamente, ao preço de um impasse sobre a memória e, pior ainda, sobre o esquecimento.” (RICCEUR)

Diante desta perspectiva entende-se a definição de História indicada por Ricceur:

Seria assim existenciáriamente justificado o duplo emprego da palavra “história”: como conjunto dos acontecimentos (dos fatos) decorridos, presentes e futuros, e como conjunto dos discursos sobre esses acontecimentos (esses fatos) no testemunho, na narrativa, na explicação e, finalmente, na representação historiadora do passado. (RICCEUR)

Apesar de todos os “testemunhos” (imagens, artes, textos, tradições, entre outros) vivemos tempos de esquecimento (modernidade) e com isso, de perda (ou esquecimento) dos rastros que indicavam que os mesmos caminhos já foram percorridos.

Imagem 1: Indumentária médica durante a Peste Negra na Europa. “A primeira a notar o aparecimento de uma nova doença que fazia sucumbir a população, com grande número de mortos, foi Messina, na Sicília, no final de 1347. A seguir, outras cidades conheceram a crueldade daquela doença. Sicília, Gênova e Veneza foram as portas de entrada da peste bubônica na Europa. Uma a uma, as cidades eram tomadas pela nuvem negra da mortandade que se disseminava pela Europa; nos primeiros seis meses, no inverno, alcançou o norte da França e o leste na Península Ibérica, e, em dois anos, havia atingido todo o continente. As cidades viam os habitantes sucumbirem à doença em proporções nunca imaginadas. As mortes variaram de um oitavo a dois terços da população das cidades. Ao todo, a Europa perdeu um terço de seus habitantes. Estima-se que a peste bubônica tenha matado vinte milhões de pessoas.” (UJIVARI)

Ao longo da história a relação da espécie humana com os micro-organismos é assinalada por episódios que se concebem entre os mais dramáticos, pois de forma avassaladora, as epidemias eliminaram em milhares ou milhões de vidas, mais do que as guerras, sem que, na maioria dos casos, as vítimas compreendessem a causa.

Ujivari, em sua obra A História e suas Epidemias, a convivência do homem com os micro-organismos, descreve algumas destas ocasiões quando estes seres intervieram nas atitudes dos homens, conduzindo seu viver e suas experiências sociais, como nas batalhas que foram vencidas por surtos nos acampamentos militares, comprometendo o rumo história humana.

Revela também, que muitas das mudanças sociais, políticas e econômicas ocorreram por causa de epidemias devastadoras. A história da humanidade, afirma o autor, pode ser narrada em paralelo à história das doenças infecciosas.

Imagem 2: Cholera quarantine in Italy. Travellers from Switzerland en route for Italy being kept in quarantine at Bardonnechia, Italy, for five days. Illustration published London, 16 August 1884. (Photo by Ann Ronan Pictures/Print Collector/Getty Images).

O termo “globalização”, de largo uso hoje, designa um fenômeno ocasionado pelo homem nas últimas décadas, e claramente abrange também uma “globalização” dos agentes infecciosos, (…) Por fim, depois que a ciência descobriu esses micróbios e avançou no conhecimento da prevenção e tratamento das doenças que causam, todos se animaram no sentido de dominá-los — seres inferiores que afinal são (…) como até o abuso dessa ciência influenciou no surgimento de novas doenças infecciosas e epidemias, [pois] quando a ciência não é disponibilizada para todos e quando a desigualdade socioeconômica prevalece em âmbito mundial, é difícil, ou mesmo impossível, controlar esses micróbios, favorecendo-se assim a ocorrência de novas epidemias. (UJIVARI)

Vivemos um momento, como afirma Rossi, em que o “apagar” (da memória e das lembranças) “não tem a ver só com a possibilidade de rever a transitoriedade, (…) Apagar também tem a ver com esconder, ocultar, despistar, confundir os vestígios, afastar da verdade, destruir a verdade.” (ROSSI)

Ao analisar semioticamente o quadro de Paul Klee, Angelus Novus, Benjamin afirma que este…

Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (BENJAMIN)

Imagem 3: Capa do jornal ‘Gazeta de Notícias’ expõe o caos no Rio de Janeiro dominado pela gripe espanhola (imagem: Biblioteca Nacional) BIBLIOTECA NACIONAL DIGITAL / BIBLIOTECA NACIONAL DIGITA. A Gripe Espanhola, gerada por uma primeira geração do vírus H1N1, infectou, em 1918, pelo menos 500 milhões de pessoas, metade da população. Pesquisas indicam que entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas morreram em consequência da doença. No Brasil, em setembro de 1918, uma violenta mutação do vírus da gripe veio a bordo do navio Demerara, originado da Europa. O transatlântico desembarcou passageiros infectados no Recife, em Salvador e no Rio de Janeiro.

Existem incontáveis “ruína sobre ruína” que clamam serem reviradas e reerguidas, ou revistas em parte, para que o historiador atente apropriar no presente às reminiscências das ações dos sujeitos históricos de outros tempos. Estas desaparecem ou são esquecidas por perda de valor, são vestígios daquilo ou daqueles que não mais existem, do que não está presente; deseja-se como o Anjo de Benjamin, “acordar” os mortos e conhecer suas vidas; mortos que percorreram os caminhos das pandemias, e “ruínas” que indicam que continuaremos a percorrer, com toda a complexa possibilidade de intervenção no ambiente cultural e social das relações humanas.

Imagem 4: Trabalhadores carregam corpos de vítimas de coronavírus em Bergamo, Itália. Fonte: Fotogramma / EFE-EPA – 18.3.2020.

Mas o que o Anjo encara fixamente, parecendo querer se apartar (por ser talvez impossível um encontro?) com seus “olhos escancarados, sua boca dilatada e suas asas abertas”? (BENJAMIN) O que estaria relacionado com o passado, com as ruínas, os fragmentos, o tempo e com os mortos, mas que permanece sempre presente?

Ele afronta a Memória. Seja individual ou coletiva, preservada no esquecimento (par dialético da lembrança) e na lembrança, “momento objetal da memória” (RICCEUR), e de alguma maneira sempre presente em espaços e ações do homem, enquanto ser social e histórico. Citado por Ecléa Bosi, P. Nora afirma: “A memória se enraíza no concreto, no espaço, gesto, imagem e objeto”. (BOSI)

Imagem 5: O quadro Angelus Novus de Paul Klee , e seu autor.

Michael Löwy escreve que esta é a tese mais conhecida de Benjamin, que se oferece como comentário de um quadro de Paul Klee; o que foi escrito tem pouca afinidade com o quadro, “trata-se fundamentalmente da projeção de seus próprios sentimentos e ideias sobre a imagem sutil e despojada do artista alemão.” (LÖWY, 2007, p. 88) “Cultivada” após a sua publicação em variados contextos e estudos, esta tese é uma alegoria, considerando que seus elementos não possuem além do texto, o sentido que de propósito lhes é atribuído pelo autor; e que neste artigo é aplicada na acepção de que a memória e a história na relação com o tempo permite-nos, se assim desejarmos, aprender as experiências do passado, para um existir melhor no presente.

 

Referencias:

BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História, in Walter Benjamin – Obras Escolhidas Vol. I – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo/SP: Brasiliense. 11ª Reimpressão, 2008.

BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória. Ensaios de Psicologia Social. Ateliê Editorial. São Paulo/SP, 2ª Edição, 2004.

LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo/SP: BOITEMPO. 1ª reimpressão, 2007.

RICCEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas/SP: Editora UNICAMP, 2ª reimpressão, 2010.

UJVARI, Stefan Cunha. A História e suas Epidemias, a convivência do homem com os micro-organismos. Editora Senac Rio e Editora Senac São Paulo, 2ª Edição.

ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento. Seis ensaios da história das idéias. Fundação Editora da UNESP, São Paulo/SP, 2007.

 

A História da e na Estação Rodoviária de Entre-Rios (Estação das Mudas), pela fotografia de Revert Henry Klumb

Homenagem aos 81 anos de emancipação do município de Três Rios/RJ, minha cidade natal. O distrito de Entre-Rios, após um período de luta separacionista em 14/12/1938, pelo decreto 634, conquistou a sua emancipação político-administrativa da cidade de Paraíba do Sul/RJ, sendo instalado o novo município em 01/01/1939. Considerando a existência, a época, de outros municípios no Brasil com o mesmo nome, em 31/12/1943, pelo decreto-lei 1056, recebeu a denominação Três Rios, tendo em vista a confluência e encontro em seu território dos três rios, Paraíba do Sul, Piabanha e Paraibuna.

“Diante de uma imagem – por mais antiga que seja -, o presente jamais cessa de se reconfigurar (…). Diante de uma imagem – por mais recente, por mais contemporânea que seja -, o passado, ao mesmo tempo, jamais cessa de se reconfigurar, porque essa imagem só se torna pensável em uma construção da memória.” (DIDI-HUBERMAN e NASCIMENTO)

“Entre-Rios nasceu e se criou pela influência de artistas do trabalho.” (SILVA, 1939, capa) Esta afirmativa é encontrada no periódico Entre-Rios Jornal, de fevereiro de 1939, sendo seu autor Pedro Moraes da Silva. Este historiador trirriense estabelece, no seu artigo, uma relação entre o início da formação urbana da cidade de Três Rios/RJ, e a presença dos funcionários da Companhia União e Indústria, e, principalmente, dos trabalhadores da estação ferroviária e oficinas da Estrada de Ferro D. Pedro II.

João Pedro da Silveira, ex-prefeito do município, ao escrever neste mesmo periódico, mas em 1966, quando do 28º aniversário da emancipação do município, assegurou que “sobravam razões de entusiasmo e até mesmo de justo orgulho pelo vertiginoso crescimento desta jovem cidade” (SILVEIRA, 1966, capa).

Três Rios, cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro experimentava, naquela época, um período econômico favorável, definido por Silveira, ao considerar o cômputo geral das rendas públicas, a sequencia de construções (realizações públicas e particulares), pelo montante de todo o capital empregado no comércio, nas indústrias e mesmo nos setores das profissões liberais, que ofereciam “garantias de sucesso, desde que administradas com carinho e dedicação”, (SILVEIRA, 1966) delineando, desta maneira, a imagem de um futuro promissor para seus habitantes.

Visões separadas por quase 30 anos de história, mas que se aproximam ao estabelecerem como condicionantes para o “nascimento” e para a “vida” de Três Rios/RJ, dois elementos: o trabalhador e o capital.

Esta “influência de artistas do trabalho” compreende na sua origem, pela presença dos funcionários de três obras importantes para a formação do núcleo urbano da cidade, que possibilitaram, em um curto período de tempo, o seu crescimento econômico, político e social: a Estação Rodoviária de Entre-Rios, uma das doze estações de mudas da estrada União e Indústria, e as Estações Ferroviárias das Estradas de Ferro D. Pedro II e Leopoldina Railway Company Limited.

“Transposto o Paraíba na ponte que se chama das Garças, o traçado passou a cortar as terras das Fazendas do Cantagalo e da Boa União… Dentro das terras do Cantagalo, a Companhia fez erguer uma grande estação rodoviária, onde seus carros de transporte, depois da inauguração, passaram a apanhar e a deixar cargas, o mesmo fazendo as Diligências em relação aos passageiros.” (KLING. 1971, p. 83)

A construção da estação rodoviária foi acompanhada de 29 casas para os funcionários que tinham famílias, havendo alojamento para os solteiros, em dependências próximas aos armazéns. Sexta e maior das doze estações das mudas da estrada União e Indústria, construída e administrada pela Cia União e Indústria de propriedade de Mariano Procópio, esta edificação estabeleceu-se historicamente, como o núcleo inicial na formação da Vila de Entre-Rios.

Fotografia 1: Vista externa da Estação de Entre-Rios, núcleo inicial da Vila de Entre-Rios – chamada Estação Barão de Entre-Rios, em homenagem ao fazendeiro Antonio Barroso Pereira, falecido em 8 de maio de 1862, que colaborou com a Companhia União e Indústria, permitindo a passagem da estrada pelas terras da Fazenda de Cantagalo e da Fazenda Boa União. Fotografia de Revert Henry Klumb, de 1861/1866. As fotografias de Klumb fazem parte de diversos acervos. O espaço urbano surge como um ativo arraial ao redor da movimentada estação rodoviária, onde eram embarcadas dezenas de arrobas de café e outras mercadorias, oriundas das fazendas da Zona da Mata mineira e do Vale do Paraíba (mais próximas), e passageiros, (existia uma estrada interligando a estação à Vila da Paraíba do Sul/RJ) com destino a Petrópolis/RJ, e principalmente para a capital do Império, o Rio de Janeiro; transformando-se depois, na Vila de Entre-Rios (distrito de Paraíba do Sul/RJ), com um comércio atraente, e possibilidades de conquistas econômicas, para aqueles que chegavam às suas terras.

Na área cedida pelos Fazendeiros do Cantagalo à Companhia União e Indústria, outras casas foram erguidas, de sorte que aos poucos o arraial foi contando com algum comércio, como vendas, lojas e botequins. Nas proximidades da rodoviária foram construídas mais algumas casas, para morada e comércio, estas pelos proprietários da Fazenda de Cantagalo, que as iam arrendando aos interessados em explorar as possibilidades da movimentação resultante do arraial que a União e Indústria ensejou. (KLING. 1971, p. 83)

Revert Henry Klumb (1995, p. 150) escreveu que, na Estação de Entre-Rios, durante a viagem de inauguração da Estrada União e Indústria, realizada em diligências, no dia 23 de julho de 1861, a comitiva imperial fez parada para descanso e almoço, servido na casa principal, sendo recebida em festa por políticos, fazendeiros e comerciantes, representantes militares e eclesiásticos da região.

A obra literária de Klumb foi elaborada, não apenas por meio de suas impressões realizadas durante aquele dia, mas entre os anos de 1861 e 1872. Por isso, ao relatar este momento de repouso, descreve também à estação da Estrada de Ferro D. Pedro II – erguida seis anos após a inauguração da rodovia, tecendo comentários sobre a realização das duas obras (as estradas rodoviária e de ferro), considerando-as importantes para o progresso do país, mas asseverando que uma estaria fadada a inutilizar a outra, o que realmente ocorreu.

Antonio Ribeiro de Sá, neto do Barão Ribeiro de Sá, anota em seu livro, baseado na notícia da viagem de D. Pedro II de Petrópolis/RJ a Juiz de Fora/MG, pela União e Indústria, publicada no Jornal do Comércio daquele ano, que:

Um quarto de hora depois de atravessar a ponte [Ponte das Garças], chegaram à Estação de Entre-Rios. O edifício principal dessa bela estação é de madeira, com almofadas de reboco de barro rústico, conservando a cor natural, produzindo lindo efeito. (DE SÁ. 1942, p. 15)

Os poucos relatos encontrados na minha pesquisa, que descrevem a Estação de Entre-Rios, assemelham-se com a imagem presente na fotografia 1. O historiador trirriense, Hugo J. Kling descreve esta construção, da seguinte maneira:

Tinha sessenta metros de extensão. No centro era a parte destinada aos passageiros e dum lado e do outro, no mesmo correr, estavam os armazéns de carga, bar e restaurante. Nos fundos, onde se situa hoje a Praça da Autonomia, erguiam-se as cocheiras e os depósitos de carros, oficinas e ferrador de animais. (KLING. 1971, p.83)

No livro Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho”, Richard Burton, explorador e orientalista britânico, narra uma excursão realizada pelos campos e montanhas do Brasil em 1867, da capital Rio de Janeiro às minas de ouro do centro de Minas Gerais, via Petrópolis/RJ e Barbacena/MG, utilizando-se, em grande parte, da Estrada União e Indústria. Sobre a Estação de Entre-Rios e seu entorno escreveu:

Às 11h30min da manhã, depois de quatro horas de viagem efetiva, chegamos a Entre Rios, o meio do caminho. Ali, um almoço – e um mau almoço, por sinal – esperava os viajantes (…) Em Entre Rios, descêramos para uns 200 metros acima do nível do mar; a atmosfera é desagradável, quente e úmida, alimentando febres; a água ainda pior. No hotel, portanto, só tratamos de matar o tempo. Nas imediações, o vale, coberto, outrora, de luxuriantes florestas, foi limpado para a plantação de café e deverá ser lavrado para o plantio de algodão. As chuvas torrenciais, seguindo-se às queimadas de todos os anos, arrastaram o humo carbonífero dos morros para as depressões estreitas, e pantanosas, que são frias demais para o cultivo; cada córrego é um escoadouro de adubo líquido que se dirige para o Atlântico, e o solo superficial é de pura argila. Também aqui as terras sofrem dois flagelos especiais: os grandes proprietários e o sistema de agricultura herdado dos aborígines, ou vindo da África Central e perpetuado pelos desleixados métodos de cultura, necessários em toda a parte onde é empregada a mão-de-obra servil. No Brasil, como na Rússia e no Sul dos Estados Unidos, onde vastas plantações têm de ser meramente roçadas, o solo virgem constitui um importante fator, no que diz respeito ao valor real da propriedade territorial; a falta de adubo e a necessidade de pousios só permitem que seja aproveitada metade do total das terras – às vezes, mesmo, uma décima parte – para o cultivo anual. Esse mal deve ser mitigado, antes que o país possa ser colonizado ou grandemente melhorado, mas não é fácil sugerir uma adequada medida, sem os males da “desapropriação”. (BURTON. 2001)

Este texto configura-se como um resumo das condições geoclimáticas da Vila de Entre-Rios, bem como, uma análise da relação dos grandes fazendeiros de café com as suas terras. Pesquisas nos jornais da cidade, do início do século XX, permitem constatar a incidência de doenças relacionadas a essas condições do local, “alimentando febres”, e as constantes cheias do rio Paraíba do Sul.

Entendo ser importante para a narrativa, com a proposta de observar-se não apenas a história da Estação de Entre-Rios, mas a historia possível de ser constatada, através de recortes empreendidos na fotografia nº 1, que apresento a seguir, por esta ser a única conhecida imagem a perpetuar as memórias relacionadas à estação rodoviária.

Recorte 1: Primeiro recorte da fotografia 1, onde se vê a parte central – com hotel e restaurante – da Estação Rodoviária de Entre-Rios.

No recorte, tem-se a presença de indivíduos à frente da construção principal assobradada, que se destaca por ser uma obra destinada aos passageiros e onde, na parte superior, funcionavam os escritórios: são homens vestindo conjuntos de calça, paletó e colete, que na época eram em tons escuros, acompanhados de camisas brancas; e mulheres com roupas que demonstravam ostentação e riqueza. Diferenciando-se destes, à esquerda, e a direita junto a uma carroça, homens vestidos de forma mais simples.

As novidades européias eram consumidas na capital e também no interior fluminense pelas esposas, filhas e filhos dos ricos fazendeiros do café do Vale do Paraíba, e em seguida, com a “transferência” da produção do café para as terras do interior paulista, pelas famílias das grandes fazendas de São Paulo. Sedas francesas, cambraias de linho ou algodão e incontáveis casimiras de lã inglesa seguiam em direção às ricas fazendas de açúcar ou café. Rendas e bordados de Flandres ou da Irlanda, chapéus de feltro ou seda, fitas e pentes para cabelos, cintos, crinolinas (armações circulares de metal colocadas no forro de saias e vestidos para aumentar o volume das saias rodadas) e os imprescindíveis sapatos, botas e botinas, símbolos da condição livre ou senhorial no Brasil escravista, eram consumidos com avidez. (MARINS)

É preciso considerar, que o Império utilizou das representações da modernização europeia, incluindo-se, neste contexto, a moda das roupas e acessórios, para adaptar a sociedade brasileira aos costumes e práticas de uma sociedade moderna.

A Estação recebia também, durante seus anos iniciais, passageiros da cidade de Paraíba do Sul/RJ e das fazendas de café das cercanias que, utilizando-se das diligências Mazeppa, sempre puxadas por duas parelhas de mulas, dirigiam-se a Petrópolis (fazendeiros da região possuíam casas nesta cidade) ou à capital Rio de Janeiro. Hugo J. Kling informa, que “no prédio principal funcionava um bar e havia também um Hotel com alguns quartos que se alugava a quem precisasse aqui pernoitar. O conforto era relativo ao local e ao tempo.” (KLING, 1969, p. 61)

Recorte 2: Observa-se a extremidade direita da sede principal da estação.

 

Recorte 3: Tem-se a extremidade esquerda da sede principal da estação.

Nestes dois recortes das extremidades da Estação, vê-se melhor acabamento nas portas e janelas, e na cerca: entendo ser possível localizarem-se nestes espaços os alojamentos dos empregados e funcionários solteiros e almoxarifados. Na imagem acima, parece haver, no segundo plano à esquerda, atrás do edifício principal, outra construção semelhante a um alojamento ou refeitório, pois mais ao centro tem-se uma pequena chaminé, e ao fundo destaca-se um dos galpões.

Recorte 4: Ainda do prédio principal no seu lado mais a esquerda, vê-se uma carroça ao centro.

Nitidamente vê-se uma carroça estacionada no lado esquerdo da casa central, no espaço destinado aos armazéns de carga, parecendo conter três sacos em seu interior. A estação recebia e guardava para futuro transporte a produção de café e outros produtos das fazendas da região. Percebe-se que a construção tem suas paredes em madeira, e a base com pedras cortadas.

Recorte 5: Observa-se o espaço do centro para a extremidade direita, da sede principal da estação.

Homens, três ou quatro, – possíveis funcionários da estação ou de uma das fazendas -, à direita da casa central, próximos a uma charrete, bem como a duas carroças com lonas colocadas de maneira diversa, à frente e ao lado da cerca que separa o pasto da estrada. A presença deste meio de transporte na fotografia permite compreender a estação como local de movimento de pessoas e mercadorias.

Recorte 6: Pátio ao fundo e, no segundo plano, um dos galpões.

O pátio no fundo da estação era o local onde se encontravam as cocheiras, os depósitos de carros, oficinas e ferrador de animais, constando da imagem pelo menos dois carros de carga ao centro. A Estação de Entre-Rios era constituída de três vastos galpões, incluindo o prédio principal e outro pequeno, ao centro.

O historiador Hugo Kling (1971, p. 83) escreveu que a parte aos fundos da casa destinada à recepção dos passageiros, onde no recorte veem-se os dois grandes galpões, localizava-se no espaço que atualmente abriga a Praça da Autonomia.

Recorte 7: Tem-se parte dos currais com alguns animais.

Na parte inferior do registro fotográfico da Estação de Entre-Rios destacam-se os currais, com as mulas e cavalos utilizados no trato com as diligências de passageiros e os carros de carga, vistos dois destes à esquerda, cobertos de lona.

“Para as doze estações de muda da Companhia União e Indústria seriam necessárias um milhar de muares (600 para os carroções do transporte de carga e 400 para tracionar diligências de passageiros)”. (DAVID, 2009, p. 136) Na fotografia alguns animais para transporte de carga ou passageiros foram enquadrados.

Recorte 8: Imagem do rio Paraíba do Sul, pastos abaixo e os morros cobertos pela Mata Atlântica mais ao alto.

Observam-se neste recorte as margens esquerda e direita do rio Paraíba do Sul que corta a cidade de Três Rios/RJ, e que por muito tempo, inundava nos períodos de chuvas intensas, o que foi praticamente contido por aterramentos. Também próximo ao local, na parte inferior da imagem tem-se a região descrita por Richard Burton como “pantanosas, que são frias demais para o cultivo”, terras com poucas árvores. Ao fundo, na parte superior, os morros com sua vegetação primitiva, característica da Mata Atlântica, possuindo a região madeiras nobres. Na atualidade, após o processo de urbanização desta margem do rio Paraíba do Sul, encontram-se poucos espaços com esta vegetação.

Recorte 9: Imagem da sede da Fazenda Cantagalo, no segundo plano, ao alto à direita.

Neste recorte, nota-se no segundo plano ao fundo, mais à direita e ao alto, a sede da Fazenda Cantagalo, de propriedade do Barão de Entre-Rios. Compreendo que a escolha do ângulo por parte de Klumb deva ao seu desejo de colocar, no mesmo registro fotográfico, a estação rodoviária e a sede da fazenda que pertencia ao homem que contribuiu para a realização da obra da estrada União e Indústria, por permitir a passagem da mesma, por suas terras: “(…) as casas brancas que a um km perdemos de vista, são da Fazenda Cantagalo, propriedade da Baronesa de Entre-Rios, mais longe se acha à cidade de Paraíba do Sul, inteiramente decaída de sua antiga importância (…)” (KLUMB, 1995, p. 150)

Ao fazer esta descrição Klumb, não relaciona como proprietário da Fazenda Cantagalo o Barão de Entre-Rios, e sim sua esposa, a Baronesa, provavelmente porque a fotografia 1 tenha sido realizada após a morte de seu esposo em maio de 1862.

A fotografia de Revert Klumb é a única reprodução fotográfica conhecida destes importantes marcos para a memória da cidade: a Estação Rodoviária de Entre-Rios no auge de seu funcionamento, núcleo inicial da Vila de Entre-Rios, lugar onde realmente “nasceu” a cidade de Três Rios e a sede da Fazenda Cantagalo, de propriedade do Barão de Entre-Rios. Patrimônios históricos que se perderam completamente com o tempo, restando à fotografia e as poucas descrições, como lugares de lembranças que permitem a escrita da história.

A construção da estação, com a fixação, no seu entorno, de seus funcionários, de alguns dos trabalhadores da estrada e a movimentação de carga e passageiros, influenciou diretamente na edificação de outras obras, e na formação de um pequeno comércio, ampliando-se, consideravelmente, o espaço urbano, com a presença dos trabalhadores da Estrada de Ferro D. Pedro II e da Leopoldina Railway Company Limited, surgindo deste núcleo a Vila de Entre-Rios, atualmente cidade de Três Rios/RJ.

Mas esta é uma outra história, que eu conto depois…

Referencias:

BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho – Coleção “O Brasil visto por estrangeiros”, tradução de David Jardim Júnior. Senado Federal, Brasília, 2001. Disponível no site: http://www.senado.gov.br/publicacoes/conselho/asp/pdfS.asp?COD_PUBLICACAO=78. Acesso em: 10 de out. 2011.

DAVID, Eduardo Gonçalves. A mula do ouro: paixões e dramas por trás da construção de rodovias e ferrovias na única monarquia das Américas. Niterói/RJ: Editora Portifolium, 2009.

DE SÁ, Antonio Ribeiro. A Cidade de Entre-Rios – sua origem e fundação. Composto e impresso na Tipografia Brasil, Juiz de Fora/MG, 1942.

DIDI-HUBERMAN, Georges apud NASCIMENTO, Roberta Andrade do. Charles Baudelaire e a arte da memória. Disponível no site: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2005000100004. Acesso em: 01 de dez. 2011.

KLING, Hugo José. A Matriz de São Sebastião de Entre Rios e outras anotações históricas. Juiz de Fora/MG: Sociedade Propagadora Esdeva, 1969.

KLING, Hugo José. Cinzas que Falam. 1ª Edição, 1971.

KLUMB, Revert Henry. Doze horas em diligência – Guia do Viajante de Petrópolis a Juiz de Fora. In: Anuário do Museu Imperial – Edição Comemorativa. Petrópolis/RJ: Editora Gráfica Serrana, 1995.

MARINS, Paulo César Garcez. Resumo do texto: A vida cotidiana dos paulistas: moradias, alimentação, indumentária. Disponível no site: http://www.terrapaulista.org.br/costumes/vestuario/saibamais.asp.  Acesso em: 25 de out. 2011.

SILVA, Pedro Moraes da. O Município de Entre Rios. Artigo publicado numa edição especial do “Entre-Rios Jornal”, ano V de 17 de janeiro de 1939, nº 209, p. 6. Arquivo da Casa de Cultura de Três Rios.

SILVEIRA, João Pedro da. Fundação da cidade de Três Rios: 1938 – 1966. Artigo publicado no “Entre-Rios Jornal” no final de 1966. Arquivo da Casa de Cultura de Três Rios.