Uma maneira de penetrar no âmago dessa sociedade e da sua mentalidade é questionar como e onde foram estabelecidas as fronteiras que distinguem quem está dentro e quem está fora. O que as pessoas num determinado lugar e tempo veem como “sub-humanos” nos revela muito a respeito da maneira como elas veem a condição humana. * (Mellinkoff)
Os conceitos de identidade e diferença são inseparáveis, segundo o Profº Tomaz Tadeu da Silva, uma depende da outra para existir, nenhuma das duas são autorreferentes. A identidade é a referência da diferença, é o ponto original relativamente ao qual se define a diferença. “Isso reflete a tendência a tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos” (Silva). “Cristãos estão certos e pagãos estão errados”.* Conservadores estão certos e progressistas estão errados; ou vice e versa.
Peter Burke relata em sua obra Testemunha Ocular as pesquisas de historiadores culturais franceses quanto à ideia do “Outro” (com O maiúsculo, l’Autre): “Esse novo interesse deles corre paralelo ao aumento do interesse pela identidade cultural e encontros culturais;” realidade cada vez mais presente após os “encontros” entre civilizações no transcorrer do tempo histórico durante e após o período das Grandes Navegações.
As segregações de todas as formas e a conservação e sustentação de sistemas históricos que estabelecem fronteiras sociais (políticas, econômicas, religiosas e educacionais) surgem, segundo Burke, de duas reações opostas quando estamos diante do outro: “O outro visto como reflexo do eu” e “a outra cultura como oposta, nesta ótica, seres humanos como nós são vistos como outros”.
A imagem que eu tenho do outro, é sempre o olhar que transborda de mim e que me define.
Neste ponto da reflexão entendo ser importante relacionar uma análise de Burke sobre o conceito do olhar (gaze), “um termo novo, tomado emprestado do psicanalista francês Jacques Lacan (1901 – 1981), para o que teria sido descrito anteriormente como “ponto de vista”. Seja quando pensamos sobre as intenções dos artistas ou sobre as maneiras pelas quais diferentes grupos de espectadores olhavam para os trabalhos desses artistas, é interessante refletir em termos do olhar ocidental, por exemplo, o olhar científico, o olhar colonial, o olhar do turista, ou o olhar masculino. O olhar frequentemente expressa atitudes sobre as quais o espectador pode não estar consciente, sejam elas de medos, ódios ou desejos projetados no outro”.
A classificação, a separação entre “nós” e “eles” que decompõe a sociedade, serve para estabelecer, propositalmente, divisões territoriais e espaços de relação e definições de identidades e diferenças culturais que sustentam olhares e descrevem expressões linguísticas e artísticas que declaram o outro como uma inversão do eu, o que ao final, é o outro como reflexo de mim mesmo: estereótipos, orientalismo, xenofobia, preconceitos, nordestino, bicha, negrinho, terrorista, fanatismo, extremismo, fundamentalismo: códigos linguísticos, entre outros, expressivos de um olhar para o outro como referente a uma sub-humanidade.
Aquilo que é deixado de fora é sempre parte da definição e da construção do “dentro”. A definição daquilo que é considerado aceitável, desejável, natural é inteiramente dependente da definição daquilo que é considerado abjeto, rejeitável, antinatural. A identidade hegemônica é permanentemente assombrada pelo seu outro, sem cuja existência ela não faria sentido. [1]
Compreende-se assim, que o que está na construção do “dentro” é criação de certa estrutura social para conversação dos mecanismos de inclusão e exclusão.
Para Silva, a primeira impressão que temos é que a identidade é definida por tudo que somos, ou seja, auto-suficiente, positiva, uma afirmação, “sou isso”. Nessa linha de raciocínio, a diferença também pode ser algo independente, aquilo que o outro é, “ele é aquilo”. Os dois conceitos, nessa perspectiva, fazem referência de si mesmo.
Partindo desse princípio, fica mais fácil entender porque identidade e diferença são inseparáveis. Quando afirmamos o que somos, só podemos ter certeza da afirmação porque existem outras pessoas que não o são. O que somos está intimamente ligado ao que não somos, logo, por trás do que sou, lê-se o que não sou. “A mesmidade (ou a identidade) porta sempre o traço da outridade (ou da diferença)”. (Silva).
A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais, conservando usurpas históricas ou estabelecendo limites ao “avanço” de uns ao conquistado por outros.
Na primeira aula da disciplina História da Educação no Brasil, no Curso de Pedagogia da Faeterj – Campus Três Rios/RJ, propunha sempre a reflexão quanto à afirmativa do Profº Darcy Ribeiro sobre a educação: “A crise da Educação no Brasil não é uma crise, é um projeto;” a asseveração seria continuadamente apresentada à discussão reflexiva cada vez que analisássemos um período histórico da educação brasileira, como forma de perceber o quanto a identidade e a diferença estão postas na sociedade, em estreita conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. “A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes”. (Silva).
As classificações sociais indicam as posições dos sujeitos, marcadas pelas relações de poder, se estruturando em torno de oposições binárias, onde uma das classes é sempre superior, como se fosse positiva e a outra inferiorizada, recebendo uma carga negativa.
As relações de identidade e diferença ordenam-se, todas, em torno de oposições binárias: masculino/feminino, branco/negro, heterossexual/homossexual. Questionar a identidade e a diferença como relações de poder significa problematizar os binarismos em torno dos quais elas se organizam. (Silva)
Afirmar a identidade e marcar a diferença implica, intencionalmente em incluir e em excluir. “Numa sociedade em que impera a supremacia branca, por exemplo, “ser branco” não é considerado uma identidade étnica ou racial”. (Silva). “Ser branco” nesse caso é normalizado, como se “ser negro” fosse anormal, por exemplo. Nesse sentido, temos a hierarquização de uma identidade sobre a outra, onde os poderes político, religioso, econômico e midiático normalizam e impõe sutilmente, sem que percebamos, uma identidade como desejável e natural.
Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é “natural”, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade. (Silva)
Dessa forma, assim como a identidade depende da diferença, a definição do que é normal depende da definição do que é anormal. Involuntariamente ou voluntariamente, acabamos por reproduzir essa normalização da hierarquização da identidade no dia a dia, quando usamos de recortes que potencializam a ideologia dominante de superioridade de uma classe sobre a outra, e quando reproduzimos esses recortes estamos nos identificando com o sistema que os cortou.
Infelizmente, a maioria dos estereótipos de outros – judeus vistos por não-judeus, muçulmanos por cristãos, negros por brancos, camponeses por pessoas da cidade, soldados por civis, mulheres por homens, etc. – era ou é hostil, desdenhosa, ou no mínimo condescendente. Um psicólogo provavelmente buscaria o medo subjacente ao ódio e também a projeção inconsciente de aspectos indesejáveis do eu no outro. (Burke)
No campo das expressões artísticas o que se percebe é que a imagem mental de olhares sobre as identidades e diferenças, do que é normal e o que é anormal, transborda nas imagens visuais. “Enquanto os escritores podem esconder suas atitudes sob uma descrição impessoal, os artistas” (aqueles notadamente que retratam o Outro ou os Outros) “são forçados pelo meio em que trabalham a adotar uma posição clara, representando indivíduos de outras culturas como semelhantes ou diferentes deles próprios.” (Burke)
O pintor, o fotógrafo, se encontra também envolvido por esta bruma social, seu olhar para o Outro, pode ser mediado por estereótipos e preconceitos ou apresentar uma contestação a esta realidade. Godard afirmou que “palavra e imagem são como cadeira e mesa: se você quiser se sentar à mesa, precisa de ambas;” ** conceito que afirma a relação entre palavra e imagens sobre o signo da complementação. “De fato, julgamos uma imagem “verdadeira” ou “mentirosa”” – uma ou outra como expressão do meu olhar quanto às identidades e diferenças, em consonância com o olhar do outro (artista, fotografo, escritor) -, “não devido ao que representa, mas devido ao que nos é dito ou escrito do que representa”. (Joly)
Retomando a ideia apresentada no primeiro artigo desta coluna (escrito de apresentação), se observa também neste contexto, que a imagem identificada na fonte por Narciso (todos nós) é seu próprio reflexo, ou seja, o representa como ele realmente é; então o que reafirmo e aceito como identidade e diferença, normal ou anormal, presente nas expressões artísticas e fotográficas, será sempre a imagem do eu espectador que nela se revela.
“Sou (como) Narciso: acredito ver um outro, mas é sempre uma imagem de mim mesmo.” Dubois.
Qual eu se revelou em você nas imagens deste artigo?
* MELLINKOFF, Ruth. Outcasts. Signs of Otherness in Northern European Art of the Later Middle Ages. Berkeley: University of California Press, 1993, p1i. Citado por BURKE, Peter. Testemunha Ocular. História e Imagem. EDUSC, Bauru/SP, 2004.
** Jean-Luc Godard, citado por JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. 13ª Edição. Papirus Editora. Campinas/SP, 2009.
Referencias:
BURKE, Peter. Testemunha Ocular. História e Imagem. EDUSC, Bauru/SP, 2004.
DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. 12ª Edição, Papirus Editora, Campinas/SP, 2009.
SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 84.
JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. 13ª Edição. Papirus Editora. Campinas/SP, 2009.