Visões do outro, olhares de si mesmo.

Uma maneira de penetrar no âmago dessa sociedade e da sua mentalidade é questionar como e onde foram estabelecidas as fronteiras que distinguem quem está dentro e quem está fora. O que as pessoas num determinado lugar e tempo veem como “sub-humanos” nos revela muito a respeito da maneira como elas veem a condição humana. * (Mellinkoff)

Os conceitos de identidade e diferença são inseparáveis, segundo o Profº Tomaz Tadeu da Silva, uma depende da outra para existir, nenhuma das duas são autorreferentes. A identidade é a referência da diferença, é o ponto original relativamente ao qual se define a diferença. “Isso reflete a tendência a tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos” (Silva). “Cristãos estão certos e pagãos estão errados”.* Conservadores estão certos e progressistas estão errados; ou vice e versa.

Peter Burke relata em sua obra Testemunha Ocular as pesquisas de historiadores culturais franceses quanto à ideia do “Outro” (com O maiúsculo, l’Autre): “Esse novo interesse deles corre paralelo ao aumento do interesse pela identidade cultural e encontros culturais;” realidade cada vez mais presente após os “encontros” entre civilizações no transcorrer do tempo histórico durante e após o período das Grandes Navegações.

Imagem 1) Location unknown, possibly Worthing, 1967-68 by Tony Ray-Jones, © National Media Museum. Disponível no site: < https://www.artfund.org/whats-on/exhibitions/2017/02/25/only-in-england-photographs-by-tony-ray-jones-and-martin-parr-exhibition>. Acesso nov. 2019. O inglês Ray-Jones registrou os costumes e estilo de vida dos ingleses no final da década de 60 do século passado. Nesta fotografia ele faz com que o espectador perceba, o contraste entre as aspirações das mulheres e o caráter provinciano dos homens ao redor.

As segregações de todas as formas e a conservação e sustentação de sistemas históricos que estabelecem fronteiras sociais (políticas, econômicas, religiosas e educacionais) surgem, segundo Burke, de duas reações opostas quando estamos diante do outro: “O outro visto como reflexo do eu” e “a outra cultura como oposta, nesta ótica, seres humanos como nós são vistos como outros”.

A imagem que eu tenho do outro, é sempre o olhar que transborda de mim e que me define.

Neste ponto da reflexão entendo ser importante relacionar uma análise de Burke sobre o conceito do olhar (gaze), “um termo novo, tomado emprestado do psicanalista francês Jacques Lacan (1901 – 1981), para o que teria sido descrito anteriormente como “ponto de vista”. Seja quando pensamos sobre as intenções dos artistas ou sobre as maneiras pelas quais diferentes grupos de espectadores olhavam para os trabalhos desses artistas, é interessante refletir em termos do olhar ocidental, por exemplo, o olhar científico, o olhar colonial, o olhar do turista, ou o olhar masculino. O olhar frequentemente expressa atitudes sobre as quais o espectador pode não estar consciente, sejam elas de medos, ódios ou desejos projetados no outro”.

Imagem 2) Os núbios, fotografia de 1949 de George Rodger – Magnum Photos. Tirada na província de Cordofão, no Sudão, a imagem mostra o vencedor de uma luta sendo carregado nos ombros pelo seu oponente.

A classificação, a separação entre “nós” e “eles” que decompõe a sociedade, serve para estabelecer, propositalmente, divisões territoriais e espaços de relação e definições de identidades e diferenças culturais que sustentam olhares e descrevem expressões linguísticas e artísticas que declaram o outro como uma inversão do eu, o que ao final, é o outro como reflexo de mim mesmo: estereótipos, orientalismo, xenofobia, preconceitos, nordestino, bicha, negrinho, terrorista, fanatismo, extremismo, fundamentalismo: códigos linguísticos, entre outros, expressivos de um olhar para o outro como referente a uma sub-humanidade.

Aquilo que é deixado de fora é sempre parte da definição e da construção do “dentro”. A definição daquilo que é considerado aceitável, desejável, natural é inteiramente dependente da definição daquilo que é considerado abjeto, rejeitável, antinatural. A identidade hegemônica é permanentemente assombrada pelo seu outro, sem cuja existência ela não faria sentido. [1]

Compreende-se assim, que o que está na construção do “dentro” é criação de certa estrutura social para conversação dos mecanismos de inclusão e exclusão.

Para Silva, a primeira impressão que temos é que a identidade é definida por tudo que somos, ou seja, auto-suficiente, positiva, uma afirmação, “sou isso”. Nessa linha de raciocínio, a diferença também pode ser algo independente, aquilo que o outro é, “ele é aquilo”. Os dois conceitos, nessa perspectiva, fazem referência de si mesmo.

Partindo desse princípio, fica mais fácil entender porque identidade e diferença são inseparáveis. Quando afirmamos o que somos, só podemos ter certeza da afirmação porque existem outras pessoas que não o são. O que somos está intimamente ligado ao que não somos, logo, por trás do que sou, lê-se o que não sou. “A mesmidade (ou a identidade) porta sempre o traço da outridade (ou da diferença)”. (Silva).

A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais, conservando usurpas históricas ou estabelecendo limites ao “avanço” de uns ao conquistado por outros.

Imagem 3) Refeição de Camponeses, obra de Louis Nain de 1642, retrata as muitas carências dos homens e mulheres camponeses da paróquia Saint-Sulpice na França do século XVII, “sem fogo, sem lugar, sem confissão “, em busca de comida, proteção ou trabalho.

Na primeira aula da disciplina História da Educação no Brasil, no Curso de Pedagogia da Faeterj – Campus Três Rios/RJ, propunha sempre a reflexão quanto à afirmativa do Profº Darcy Ribeiro sobre a educação: “A crise da Educação no Brasil não é uma crise, é um projeto;” a asseveração seria continuadamente apresentada à discussão reflexiva cada vez que analisássemos um período histórico da educação brasileira, como forma de perceber o quanto a identidade e a diferença estão postas na sociedade, em estreita conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. “A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes”. (Silva).

As classificações sociais indicam as posições dos sujeitos, marcadas pelas relações de poder, se estruturando em torno de oposições binárias, onde uma das classes é sempre superior, como se fosse positiva e a outra inferiorizada, recebendo uma carga negativa.

As relações de identidade e diferença ordenam-se, todas, em torno de oposições binárias: masculino/feminino, branco/negro, heterossexual/homossexual. Questionar a identidade e a diferença como relações de poder significa problematizar os binarismos em torno dos quais elas se organizam. (Silva)

Afirmar a identidade e marcar a diferença implica, intencionalmente em incluir e em excluir. “Numa sociedade em que impera a supremacia branca, por exemplo, “ser branco” não é considerado uma identidade étnica ou racial”. (Silva). “Ser branco” nesse caso é normalizado, como se “ser negro” fosse anormal, por exemplo. Nesse sentido, temos a hierarquização de uma identidade sobre a outra, onde os poderes político, religioso, econômico e midiático normalizam e impõe sutilmente, sem que percebamos, uma identidade como desejável e natural.

Imagem 4) Lesbian couple at Le Monocle, Paris, 1932, fotógrafo Bressai, Metropolitan Museum of Art, em Nova York, EUA. Tirada num bar de lésbicas popular chamado de Le Monocle, no Boulevard Edgar-Quinet, Paris, França.

Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é “natural”, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade. (Silva)

Dessa forma, assim como a identidade depende da diferença, a definição do que é normal depende da definição do que é anormal. Involuntariamente ou voluntariamente, acabamos por reproduzir essa normalização da hierarquização da identidade no dia a dia, quando usamos de recortes que potencializam a ideologia dominante de superioridade de uma classe sobre a outra, e quando reproduzimos esses recortes estamos nos identificando com o sistema que os cortou.

Infelizmente, a maioria dos estereótipos de outros – judeus vistos por não-judeus, muçulmanos por cristãos, negros por brancos, camponeses por pessoas da cidade, soldados por civis, mulheres por homens, etc. – era ou é hostil, desdenhosa, ou no mínimo condescendente. Um psicólogo provavelmente buscaria o medo subjacente ao ódio e também a projeção inconsciente de aspectos indesejáveis do eu no outro. (Burke)

Imagem 5) Fotografia auto-explicativa.

No campo das expressões artísticas o que se percebe é que a imagem mental de olhares sobre as identidades e diferenças, do que é normal e o que é anormal, transborda nas imagens visuais. “Enquanto os escritores podem esconder suas atitudes sob uma descrição impessoal, os artistas” (aqueles notadamente que retratam o Outro ou os Outros) “são forçados pelo meio em que trabalham a adotar uma posição clara, representando indivíduos de outras culturas como semelhantes ou diferentes deles próprios.” (Burke)

O pintor, o fotógrafo, se encontra também envolvido por esta bruma social, seu olhar para o Outro, pode ser mediado por estereótipos e preconceitos ou apresentar uma contestação a esta realidade. Godard afirmou que “palavra e imagem são como cadeira e mesa: se você quiser se sentar à mesa, precisa de ambas;” ** conceito que afirma a relação entre palavra e imagens sobre o signo da complementação. “De fato, julgamos uma imagem “verdadeira” ou “mentirosa”” – uma ou outra como expressão do meu olhar quanto às identidades e diferenças, em consonância com o olhar do outro (artista, fotografo, escritor) -, “não devido ao que representa, mas devido ao que nos é dito ou escrito do que representa”. (Joly)

Retomando a ideia apresentada no primeiro artigo desta coluna (escrito de apresentação), se observa também neste contexto, que a imagem identificada na fonte por Narciso (todos nós) é seu próprio reflexo, ou seja, o representa como ele realmente é; então o que reafirmo e aceito como identidade e diferença, normal ou anormal, presente nas expressões artísticas e fotográficas, será sempre a imagem do eu espectador que nela se revela.

“Sou (como) Narciso: acredito ver um outro, mas é sempre uma imagem de mim mesmo.” Dubois.

Qual eu se revelou em você nas imagens deste artigo?

 

* MELLINKOFF, Ruth. Outcasts. Signs of Otherness in Northern European Art of the Later Middle Ages. Berkeley: University of California Press, 1993, p1i. Citado por BURKE, Peter. Testemunha Ocular. História e Imagem. EDUSC, Bauru/SP, 2004.

** Jean-Luc Godard, citado por JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. 13ª Edição. Papirus Editora. Campinas/SP, 2009.

Referencias:

BURKE, Peter. Testemunha Ocular. História e Imagem. EDUSC, Bauru/SP, 2004.

DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. 12ª Edição, Papirus Editora, Campinas/SP, 2009.

SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 84.

JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. 13ª Edição. Papirus Editora. Campinas/SP, 2009.

Marlene e o “antes de mim”

“Em relação a muitas dessas fotos, era a História que me separava delas. A história não é simplesmente esse tempo em que não éramos nascidos? Eu lia minha inexistência nas roupas que minha mãe tinha usado antes que eu pudesse me lembrar dela. Há uma espécie de estupefação em ver um ser familiar vestido de outro modo. [destaque do autor] Eis, em torno de 1913, minha mãe em traje de passeio, gorro, pluma, luvas, tecido delicado que surge nos punhos e na gola, de um “chique” desmentido pela doçura e simplicidade de seu olhar. É a única vez que a vejo assim, apanhada em uma História (dos gostos, das modas, dos tecidos): minha atenção desvia-se então dela para o acessório que pereceu; pois a roupa é perecível, ela forja para o ser amado um segundo túmulo. Para “reencontrar” minha mãe, fugidiamente, é pena, e sem jamais poder manter por muito tempo essa ressurreição, é preciso que, bem mais tarde, eu reencontre em algumas fotos os objetos que ela tinha sobre sua cômoda, uma caixa de pó-de-arroz de marfim (eu gostava do ruído da tampa), um frasco de cristal bisotado, ou ainda uma cadeira baixa que hoje tenho perto de minha cama, ou ainda os tecidos de ráfia que ela dispunha sobre o sofá, as grandes sacolas de que ela gostava (cujas formas confortáveis desmentiam a ideia burguesa da “bolsa”).

Assim, a vida de alguém cuja existência precedeu um pouco a nossa mantém encerrada em sua particularidade a própria tensão da História, seu quinhão. A História é histérica: ela só se constitui se a olharmos – e para olhá-la é preciso estar excluído dela… [grifo do autor] Para mim, a História é isso, o tempo em que minha mãe viveu antes de mim [grifo do autor] (aliás, é essa época que mais me interessa, historicamente).” (BARTHES, 2008, p. 96 a 98)

 Neste trecho da sua última obra, Barthes resume envolvido nas lembranças despertadas pelas fotografias de sua mãe falecida, a relação do historiador com a sua ciência, com possíveis fontes, bem como, a condição basilar do nosso ofício.

Diante dos registros imagéticos, ele experimenta a realidade, para a historiografia, da aplicação na atualidade, das análises e interpretações dos referentes presentes nas imagens fotográficas. Observa a figura materna apanhada em uma História, por estar vestida com roupas de outro tempo, um tempo anterior ao de sua relação com a mãe, período que mais o interessa historicamente, e que também se define na data do registro fotográfico.

Fotografia 1: Roland Barthes a direita, com a mãe e o irmão. Biscarosse, Landes, França. por volta de 1932. Disponível no site:<https://intelectuaisvaoapraia.tumblr.com/image/24000443389>. Acesso em set 2019.

Mas para reencontrá-la, a lembrança foi intensificada quando induzido a desviar sua atenção para os acessórios que a acompanharam em algumas fotografias, ainda vivos e presentes em sua memória, objetos que definem as particularidades da história de vida da mãe. Os objetos biográficos, entre estes a fotografia, possuem a condição de potencializar memórias, permitindo o recordar das experiências de vidas.

Os objetos biográficos são construções do mundo material que incorporam experiências de vida do seu possuidor. Como fonte de descobertas, o objeto biográfico ancora memórias que estimulam performances narrativas do colaborador. O significado biográfico dado ao objeto é efetivado na presença constante deste elemento material na vida de seus proprietários. (ALMEIDA)

As imagens no referente fotográfico conduzem Roland Barthes a percebe-se nítida e conscientemente distante no tempo e no espaço, era a História que o apartava no minuto recente e real do momento efetivado em cada fotografia.

O tempo funciona como um dos elementos que definem a condição de pertencimento de um fato ou objeto à história, é o que se apresentou para este autor no axioma “antes de mim” [grifo nosso], sendo necessário que o olhar do historiador esteja excluído do tempo histórico estudado, anterior à sua existência. Na atualidade, mesmo a História do tempo presente percorre um campo de pesquisa onde o evento ou objeto pesquisado encontra-se pelo menos a alguns passos no passado.

“Somente a História e a consciência histórica podem introduzir a necessária descontinuidade entre passado e presente: História, com efeito, é a ciência da diferença.” (MENEZES, 1992, p. 4)

Os estudos com relação ao passado são determinados pelas marcas da temporalidade, o historiador encontra um tempo diverso em vários aspectos daquele em que está inserido, podendo ocorrer inversões às representações originais de objetos históricos analisados, o que também remete aos limites da abordagem historiográfica que relaciona apenas fatos e eventos no decorrer de um tempo homogêneo, definidor de uma improvável e fechada verdade histórica.

A impressão que permanece é a de que o historiador estará sempre a percorrer caminhos anteriores a sua própria experiência, porque como “as flores [que] dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história.” (BENJAMIN, 2008, p. 224)

Nos registros que se seguem, o exemplo das fotografias como representação das particularidades da história de uma vida (como na experiência de Barthes), transpassa para a inserção de indivíduos em manifestações sociais representativas de uma determinada comunidade.

De meados dos anos quarenta até o final dos anos cinquenta do século passado, o rádio no Brasil alcançaria seu auge com os programas de auditório, sendo a Rádio Nacional a principal empresa radiofônica desse período. A “Hora do Pato” foi um dos seus programas mais populares, ocorrendo apresentação nos municípios do interior do Estado do Rio, como naquele ano 1956 em Três Rios. Além do programa de calouros com os cantores da cidade, havia a apresentação de artistas famosos contratados da Rádio Nacional.

Na edição nº 32 do Jornal A Tribuna de Três Rios, do acervo da Casa de Cultura da cidade, encontra-se escrito:

“No ano passado o Governo Municipal realizou grande festividade em comemoração a data [emancipação da cidade], com a colaboração da Rádio Três Rios, para qual foi convidada e aqui compareceu o maior programa popular da radiofonia brasileira, A HORA DO PATO, em apresentação gratuita na sede do Clube Atlético Entre-Rios. Era desejo do chefe Executivo Municipal [Prefeito Joaquim Ferreira], realizar, também este ano, festa idêntica que seria oferecida ao povo, de preferência em uma das praças de esporte da cidade, entretanto, razões de ordem econômica, tão conhecida de todo o povo através dos balancetes municipais periodicamente publicados, impede-nos de levar avante o seu intento”. (19 ANOS de vida autônoma. Tribuna de Três Rios, Três Rios/RJ, Ano I, nº 22, de 13 de dezembro de 1957, capa)

Fotografia 2: Tomada interna, registrando o publico presente no Clube Atlético Entre-Rios – CAER durante a apresentação do programa “A Hora do Pato”, realizado em 14 de dezembro de 1956, em comemoração ao aniversário de emancipação do Município de Três Rios. Registro com fotógrafo desconhecido, acervo Rádio Três Rios [1].

Barthes sentiu uma “espécie de estupefação” diante da imagem de sua mãe, em registros fotográficos de um tempo em que ele mesmo não existira, e eu, uma grande surpresa, após reconhecer inicialmente nas imagens o meu avô Mario de Castro Reis, o homem calvo de terno, na terceira fila ao centro, (emancipacionista e Presidente da Câmara de Vereadores de Três Rios no período de 1955/1959), ao seu lado direito, com o olhar direcionado na direção do Sr. Mário, o amigo e companheiro político, Dr. Otávio Freitas (Presidente da Câmara de Vereadores no período de 1947/1949), e a minha avó, Zeni Reis, a senhora ao lado direito do Dr. Otávio e depois, ao seu lado direito, a jovem, com a mão no rosto, que anos mais tarde seria a minha mãe, Marlene Reis Mattos. (Nas fotografias 2 a 4, da nossa direita para esquerda).

Fotografia 3: Segundo registro do espaço interno do principal salão do Clube Atlético Entre-Rios – CAER, permitindo observar o grande público presente. Fotografia de 14 de dezembro de 1956, sem autor conhecido, acervo Rádio Três Rios.

 

Estas fotografias eram desconhecidas de todos nós familiares de Marlene, encontrei-as em minhas pesquisas no acervo da Rádio Três Rios. Inicialmente, ela não conseguiu localizar, em sua memória, informações quanto à data e o que estava fazendo no Clube Atlético Entre-Rios, reconhecido pelo seu salão principal. Lembrava-se apenas que era comum a apresentação de cantores e artistas contratados pela rádio para eventos, como se observa, sempre bastante populares. Segundo os arquivos da empresa, as fotografias foram realizadas em 14 de dezembro de 1956, durante a apresentação do Programa “A Hora do Pato” da Rádio Nacional; minha mãe estaria então com 16 anos.

As feições de meus avós encontram semelhança com as imagens anotadas na memória, mas esta jovem, na verdade, apesar de reconhecê-la na figura materna, não a havia percebido, porque não vivenciei na minha existência uma relação direta com ela. Nas lembranças que trago na memória não encontro uma moça como esta, eu a desconhecia. A fotografia guardou em seu referente uma imagem que agora permite, não só pela semelhança na aparência, mas também por tudo que está sedimentado como conhecimento ligado aos signos e índices relativos à juventude e especificadamente, a maternidade e a relação de amor e admiração, ser incorporada a todas as memórias que possuo sobre minha mãe.

Fotografia 4: Terceira e última imagem do espaço interno, registro realizado de um outro ângulo, permitindo perceber parte das dimensões do salão do CAER e a presença de um público composto de homens, mulheres, jovens e crianças. Nesta fotografia, a jovem Marlene Reis parece voltar sua atenção para o Dr Otávio que também olha para ela. Do acervo Rádio Três Rios, sem fotógrafo conhecido, registro de 14 de dezembro de 1956.

As memórias e as lembranças são constituídas nas experiências de relações sociais (fatos e situações do cotidiano) e por diversas formas de percepção destas experiências, podendo ocorrer entre sujeitos no mesmo tempo ou em tempos e espaços distintos.

As fotografias também são lugares de lembrança das experiências de outros, que permanecem “vivas” no referente fotográfico, possibilitando não só uma leitura rememorativa de eventos e ações dos sujeitos históricos em seu tempo, mas também, através do olhar investigativo e interpretativo no presente, delinear as lembranças que se fazem comuns.

Enquanto lugar de lembranças, a fotografia permite percorrer não só os espaços da memória das pessoas que se relacionam diretamente com indivíduos, objetos e paisagens referenciadas na imagem, pelas semelhanças com as “imagens mentais arquivadas” na memória (Barthes reencontra a mãe ao reconhecer nas fotografias objetos de seu uso diário); mas também observar e descobrir muito além do que o fotógrafo no ato fotográfico, em seu instante de elaboração, captou em seu olhar, consentindo o encontrar e o compartilhar de memórias, lembranças e mesmo do que permanecia esquecido, oculto, dependendo da particularidade em que se forjou o olhar do Spectator [2]; proporcionando “à mente condições de formar uma ideia relativa a algo já vivenciado ou, caso se trate de uma informação nova, fazer com que o interlocutor consiga imaginar, ou seja, formar imagem mental”. (HAGEMEYER, 2011, p. 43)

[1] RÁDIO TRÊS RIOS, empresa de radiocomunicação fundada em 27.11.1947, pelo Sr. Elias Jorge, precursor da radiofonia em Três Rios. Atualmente, ainda sob a administração da família Jorge, a Rádio Três Rios, transmitindo na sintonia AM 1150 KHZ, ampliou o ramo de comunicação do grupo com as emissoras FM 89,7 – Antena 1 e Canal 5 de TV por cabo. Empresa sempre presente nas manifestações políticas, culturais e sociais do município, tem grande importância na história da radiofonia da região.

[2] “Observei que uma foto pode ser objeto de três práticas (ou de três emoções, ou de três intenções): fazer, suportar, olhar. O Operador é o Fotógrafo. O Spectator somos todos nós, que compulsamos, nos jornais, nos livros, nos álbuns, nos arquivos, coleções de fotos. E aquele ou aquela, que é fotografado, é o alvo, o referente, emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrun da Fotografia, porque essa palavra mantém, através da sua raiz, uma relação com o “espetáculo” e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto.” (BARTHES, 2008, p. 20.)

 

Referências:

ALMEIDA, Juniele Rabelo. Objeto Biográfico e Performance Narrativa: Questões para História Oral de Vida. Disponível no site: http://neho.vitis.uspnet.usp.br/images/stories/PDFs/juniele.pdf. Acesso em: 09 de jan. 2012.

BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira, 2008.

BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. In Walter Benjamin – Obras Escolhidas Vol. I – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo/SP: Editora Brasiliense. 11ª Reimpressão, 2008.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Nova tradução de Beatriz Sidou. São Paulo/SP: Centauro Editora, 2009.

MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória, no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), São Paulo, n. 34, 1992.

As imagens da morte, primeiras reflexões.

XIV Encontro Regional da ANPUH-Rio (Associação Nacional de História), 19 de julho de 2010, a primeira ANPUH que estive presente. Numa mesa com mediação da Prof.ª Ana Maria Mauad, apresentei o projeto de pesquisa que em abril daquele ano foi selecionado no Programa de Pós-Graduação em História Cultural da Universidade Severino Sombra – USS de Vassouras/RJ, (hoje Universidade de Vassouras) estando sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Ana Maria Dietrich.

Não conhecia a UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), por isso, além de pegar o ônibus em Três Rios/RJ, minha cidade natal, bem cedo, resolvi usar um táxi para o percurso entre a rodoviária Grande Rio e a instituição que sediaria o encontro. Se tivesse por algum motivo que buscar na memória as lembranças do trajeto realizado pelo motorista naquela manhã, não encontraria, simplesmente porque minha atenção fora direcionada a uma imagem singular para quem na fotografia e na memória tinha o objeto de sua paixão e estudos.

No para-brisa do carro, refletido estava em uma posição favorável a observação do motorista, um senhor aparentando seus 50 anos, a imagem de dois jovens abraçados e no segundo plano uma praia. Não observava a fotografia, mas a imagem que no para-brisa espelhava dois meninos que “acompanhavam” o motorista em seus caminhos diários, como uma lembrança daqueles e de algum lugar e momento que não se desejava esquecido, e que jamais se repetiria daquela mesma forma como o registro havia perpetuado.

Fiquei me perguntando quem seriam? Filhos, netos? Ainda adolescentes estariam vivos ou por uma dessas tramas do destino, não mais se encontravam neste plano da vida? Que sensações, que sentimentos se reafirmam com a presença da lembrança que da memória retorna sempre viva e presente através daquela imagem fotográfica? Não formulei nenhuma pergunta ao taxista, pois absorvido em reflexões várias não percebi que tão rapidamente chegara ao meu destino.

Foi um momento especial por tudo que envolveu de significados, pois estava nos passos primeiros de um caminho iniciado na graduação em Licenciatura em História, pela Universidade de Uberaba/MG – pesquisa sobre história e fotografia (as questões relacionadas à memória foram sugestão da minha orientadora do mestrado) -, motivado a época pelo registro fotográfico da Fazenda Capoeirinha em Chiador/MG, onde a presença das pessoas “vivas” na imagem, mas não mais existentes fisicamente na atualidade, até hoje movimenta meus pensamentos de múltiplas indagações.

Imagem 1: Vista externa da Fazenda Capoeirinha em Chiador/MG. Fotografia sem registro da data e autor, acervo André Mattos.

A fazenda pertencia aos bisavós do meu pai, Mauro da Silva Mattos: Marcelino José da Costa e Maria Cherobina de Castro Mattos, e esta fotografia despertou naquele momento de escolha do tema para o trabalho final da graduação em Licenciatura em História pela Universidade de Uberaba/MG, a admiração e a paixão que sempre senti na observação de qualquer fotografia antiga. Percebo algo de “mágico” em cada uma daquelas que me conduzem a um ambiente diferente, há um tempo anterior e a um fato que eu não experimentei e que não me será possível vivenciar, mas que a imagem consegue imputar uma “sensação de realidade”.

E mais ainda: não conseguia ao olhar para aquelas pessoas, objetos, paisagens e espaços de relação que não se encontram no tempo presente, deixar de imaginar sobre suas vidas, suas histórias, identificando-os no agora em uma realidade pós-morte.

A imagem fotográfica, vencendo a distância que a separa do ato fotográfico, a “imagem-ato”, se presentifica ao observador com toda a sua possibilidade de narrar uma parcela da história, da obra e das lembranças dos que permanecem representados no seu referente. Aqueles que “sobreviveram” na imagem permanecem vivos neste lugar de lembrança. As imagens fotográficas são testemunhos da história e da parcela da obra de um sujeito, mas também, depoimentos da vida e da morte.

A Fazenda Capoeirinha ainda continua na atualidade com sua sede bem conservada, mas as pessoas que foram “preservadas” na imagem, sem o registro do autor e da data de sua reprodução, ao olhar de cada um de nós não existem mais.

Na imagem 1 observa-se interessante distribuição dos indivíduos deixando claro uma divisão social, com os prováveis trabalhadores, suas crianças e mulheres postadas num segundo plano, e os possíveis proprietários e seus familiares (também homens, mulheres e crianças) no primeiro plano bem à frente à esquerda, e dois homens a cavalo logo atrás destes.

Esta fotografia possibilita ao historiador interessantes análises sobre as questões das hierarquias sociais naquele tempo, não só porque a arrumação espacial concedida para o registro fotográfico permite a identificação de grupos sociais distintos, através de limites territoriais evidentes, mas também e ainda, pelas roupas (chapéus, ternos, gravatas e vestidos de melhor qualidade no acabamento percebidos entre as pessoas que se destacam) e pela formação étnica com os negros apenas entre os trabalhadores. E estas mesmas questões levam-me a imaginar as possíveis tramas ocorridas, histórias de vidas que estes personagens experimentaram influenciados pelas questões sociais, culturais e religiosas de seu tempo.

Roland Barthes define punctum como o “detalhe” que atrai. “Sinto que basta sua presença para mudar minha leitura, que se trata de uma nova foto que eu olho, marcada a meus olhos por um valor superior. Esse “detalhe” é o punctum (o que me punge)”, (2008, p.68) elemento cultural e social, flecha que feri alguns, mas com certeza, nem todos.

Apesar desta fotografia em sua totalidade entusiasmar, o punctum se apresenta, para mim, na mulher que está na posição intermediária entre dois grupos, vestida e arranjada de forma a demonstrar sua condição de serviçal. Uma personagem que transita por dois mundos, aparece no centro da imagem, num plano a frente dos prováveis trabalhadores da fazenda e seus familiares, estando ao lado do que parece ser um carrinho de bebe.

Quem ela foi; qual seu nome? Quais experiências vivenciou na existência registrada e perpetuada na imagem fotográfica? Quais emoções experimentou, dores, tristezas, alegrias, sonhos; em que tramas da vida se envolveu? Não são possíveis apenas pela imagem fotográfica responder a estas e outras perguntas que podem ser relacionadas. Mas há uma questão que perpassa por esta e outras fotografias que registram a presença de pessoas, personagens de outros tempos, familiares ou não: a da morte. A memória dos mortos, a morte de si e do outro, as lembranças, os vivos e a lembrança dos mortos na memória dos vivos. (meu destaque)

Após finalizar a pesquisa de mestrado, comecei a estudar as diversas maneiras como o tema da vida e da morte percorrem as impressionabilidades contemporâneas, e como estas foram sendo tecidas e (re)apropriadas durante o período do final do século XIX até os nossos dias, incluindo nesta relação as imposições culturais das religiões da nossa civilização cristã ocidental.

Philippe Ariès (2012) quando escreveu que as transformações do homem diante da morte [as atitudes diante da morte em nossa cultura cristã ocidental] são extremamente lentas por sua própria natureza ou se situam entre longos períodos de imobilidade, atesta a dificuldade que o ser humano tem em lidarmos com esta realidade, e o quanto a memória da morte, fatos de mentalidade, ainda definem o sentido que damos a nossa destinação individual.

Apesar da consciência intima da vida após a vida, a diversificação das crenças e as “opções” relacionadas à anterioridade da vida e sobrevivência do ser após a morte, não foram até o momento, capazes de sanar as dúvidas e eliminar o medo da morte e da vida futura. A nossa sociedade cristã ocidental, constituiu um sistema de ação regido por símbolos, uma estrutura de castas sociais e de papeis, de culturas e regras de comportamento, destinada a servir de veículo a valoração da vida, mas de uma vida em que a decadência, a velhice e a morte, devem ser ignoradas.

Imagem 2: Edvard Munch – “Morte no Quarto da Doente” (1895)), disponível no site: https://followthecolours.com.br/art-attack/edvard-munch/.

Alguns artistas definem os caminhos de sua arte pelas experiências da vida e da morte, pelas dores, pelas dúvidas, por seus sentimentos diante dos sistemas e culturas, símbolos e ideias sociais da morte. Entre estes relaciono Edvard Munch, que conforme afirma Carol T. Moré “foi perseguido pela tragédia familiar, Munch foi um artista determinado a criar obras que traziam “pessoas vivas, que respiram e sentem, sofrem e amam”. Ele recusou pintar o banal, as cenas pacíficas, comuns na sua época. A dor e o trágico permeavam seus quadros. Por conta disso, os seus sentimentos sobre doença e morte assumem um significado mais vasto, transformados em imagens que deixam transparecer a da fragilidade e a transitoriedade da vida”. A morte é um ato de decisão do artista. Ela ocorre em seu intimo, como reflexo do seu olhar para a vida.

Imagem 3: Edvard Much – “No Leito da Morte” (Febre) (1893), disponível no site: https://followthecolours.com.br/art-attack/edvard-munch/.

A sobrevivência do ser para além da fronteira da morte, seu estado consciente, a sujeição aos sentimentos, pensamentos e atos experimentados enquanto vivos no mundo corporal, que definem o estado da alma após a morte; harmonia e felicidade, “choro e ranger de dentes”, os lugares – as muitas moradas da Casa do Pai -; são realidades que de alguma forma aceitamos e representamos em imagens, artes e esperanças (as imagens e feições da morte, do outro e de si, ossos, o retrato mortuário, catacumbas, mausoléus, mascaras mortuárias, a decomposição dos corpos, a doença), conforme os preceitos religiosos ou filosóficos que abraçamos.

A esperança e a fé estão em que as coisas que o homem cria em sociedade tenham um valor e um significado duradouros, que sobrevivam ou se sobreponham à morte e à decadência, enfim, que o homem e seus produtos tenham importância. (BECKER. 2017, p. 24)

Imagem 4: Retrato mortuário: Alphone Le Blondel, deguerrótipo 9 x 12 cm. Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA. Nesta composição “um pai e sua filha morta, faz alusão a vida após a morte. Enquanto o pai vela o corpo nas sobras, a criança morta é banhada por uma luz etérea, cercada por cortinas pregueadas que conduzem o olhar para os céus.” Disponível no site: <https://www.metmuseum.org/art/collection/search/283105.

Neste contexto, diferentemente de outras expressões, entendo que a relação da fotografia com a morte está vinculada no imaginário popular as questões da memória, ao desejo de que a(as) pessoa(s) e o(s) momento(s) sejam preservados e permaneçam “vivos” na expressão material da imagem registrada, e que o tempo, inexorável inimigo da vida, pois nos conduz invariavelmente a morte, seja vencido. E assim também se transporta aos outros (já mortos) a nossa aspiração de viver, no que ela tem de invulnerável, de mais forte que a morte; a memória, este lugar de lembrança e de esquecimento.

Para Barthes os fotógrafos são agentes da Morte: “É o modo como nosso tempo assume a Morte: sob o álibi denegador do perdidamente vivo (…) Pois é preciso que a Morte, em uma sociedade esteja em algum lugar; se não está mais (ou está menos) no religioso, deve estar em outra parte: talvez nessa imagem que produz a Morte ao querer conservar a vida.”

Imagem 5: As rastejadoras, 1877 – fotógrafo John Thomson. “Desnutridas e por demais fragilizadas, sem energia sequer para mendigar. Em vez disso, essas mulheres rastejavam para apanhar água quente e fazer o chá ralo que as sustentava. Ela não é a mãe da criança: está apenas cuidando dela enquanto a mãe trabalhava nas redondezas de Londres, Inglaterra.” A morte é realidade próxima, futura e ao mesmo tempo passado, nesta fotografia.

A fotografia nos permite perceber claramente, que são dois tempos, o da obra e o da vida. A imagem afirma a transitoriedade da existência física e a inexorabilidade da morte (quando não mais vivem no tempo mortal o fotografo e todos os que nela estão representados), pois a fotografia é parte da obra dos indivíduos nela registrados, que revisitada num espaço temporal pós-morte, são testemunhos que reafirmam a morte de todos nós.

O que perturba o homem, é que ele se insere no tempo mortal da vida e sua obra, o lugar de lembrança de sua vida na vida do outro, de fato, aquilo que nos representa (somos os artífices de nossas vidas), que reflete o que fomos ou somos, permanece numa imortalidade desejada e não possível ao seu autor. A imagem fotográfica nos afirma esta realidade: é a obra do outro que, morto, permanece por nós sendo revisitada; e desta maneira somos como que pegos pelo contágio de uma morte que mata.

 

Referências:

ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

BARTHES, Roland. A Câmara Clara. 12ª Impressão. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro/RJ, 2008.

BECKER, Ernest. A negação da morte. 9ª Ed. Editora Record. Rio de Janeiro/RJ. 2017.

MORÉ, Carol T. “Eu não pinto o que vejo, mas o que vi” – Edvard Much. Disponível no site:< https://followthecolours.com.br/art-attack/edvard-munch/>. Acesso em agost. 2019.

Narciso diante do Espelho

“Ah, se houvesse apenas um olhar, o olhar de um sujeito”. Barthes.

O olhar de um fotógrafo determina o “destino” de uma fotografia? Ou qualquer destino como lembrança, como arte, como vida, como memória e história, depende das respostas que concedo a qualquer obra de arte ao indagar o que está simulado, como aconteceu, de que forma percebo, e principalmente, como reajo e o que muda em mim?

“Com a fotografia, não nos é mais possível pensar a imagem fora do ato que a faz ser” (Dubois) e da ação e realidade que representa, pois sou por ela levado a instantes de contemplação, de indagações, de lembranças, enfim, de emoções.

O “destino” da Fotografia segundo Barthes, é que ao fazer crer ela efetiva a desordem entre a realidade (“Isso foi”) e a verdade (É isso!), e provoca movimentos de memória, me aproximando do que sou.

Dubois em seu livro O Ato Fotográfico, assinala um escrito de Leone-Battista Alberti em Della Pittura, onde “convoca a figura (e toda a fábula) de Narciso”, transcrevendo a seguinte passagem:

Sendo assim, tenho o hábito de dizer a meus amigos, de acordo com a fórmula dos poetas, que é Narciso, aquele que foi transformado em flor, que teria sido o inventor da pintura (inventore della pittura). E, aliás, se a pintura é a flor de qualquer arte (la pittura fiori d’ogni arte), toda a história de Narciso (tutta la storia di N.) cabe bem aqui. Dirás com efeito que pintar seja algo além de abraçar (abbracciare) desse modo, com arte, essa superfície, aqui, da fonte (quella ivi superfície de fonte)? (Alberti)

Narciso tem o seu momento de “mito” quando, ao se dobrar sobre uma límpida fonte de água, percebe seu rosto refletido como num “espelho”, encantando-se com a imagem; fascinado, percorreu com o olhar todos os detalhes do reflexo, contemplando e se apaixonando pelos belos delineies da figura, sem ter conhecimento que era a sua própria imagem refletida. Para alguns sofistas, Narciso se deitou no leito do rio e absorto com o que via, assim permaneceu até a morte, para outro cometeu suicídio, e para Flávio Filostráto, ele tentou abraçar a imagem, caindo na água e, se afogando.

É pelo ato de abraçar com o olhar, envolvendo-me por completo, refletindo sobre o que vejo nos instantes desertos de contemplação de uma imagem fotográfica (“a vida é, assim, feita de golpes de pequenas solidões” – Barthes), que pretendo percorrer o campo da Fotografia como a Arte que afeta a individualidade: história, memória, vida, morte e humanidades.

Narciso não pode ser entendido apenas como o símbolo da vaidade, segundo L. C. Galahad, seu gesto demonstra “o quão dramática é a individualidade e como é profundo quando um indivíduo toma consciência de si mesmo, experimentando seus próprios dramas humanos”.

É este o destino da fotografia;(?) o de conduzir-me a consciência de meus próprios dramas ao olhar no espelho a imagem da vida do outro? “POIS A FOTOGRAFIA É O ADVENTO DE MIM MESMO COMO OUTRO [ou o outro]: UMA DISSOCIAÇÃO ASTUCIOSA DA CONSCIÊNCIA DE IDENTIDADE”. (Barthes)

Imagem 1: Pai e filha morrem antes de chegar ao território americano – 24/06/2019 (Julia Le Duc/AP). Disponível no site:< https://veja.abril.com.br/mundo/foto-de-pai-e-filha-afogados-expoe-drama-da-imigracao-para-os-eua/> Acesso em jun de 2019.

Óscar Alberto Martínez Ramírez e Angie Valeria Martínez Ávalos, de El Salvador, pereceram afogados ao buscar cruzar o Rio Grande, na divisa do México com os EUA. A tragédia fim desta ação aparece na imagem fotográfica que há pouco mais de um mês percorreu o mundo causando diferentes reações, e assinalando o drama de migrantes que procuram refugio nos EUA fugindo da pobreza e da violência de países como Guatemala, Honduras e El Salvador.

Pai e filha, o braço direito da menina sobre a cabeça do pai e sua camisa servindo de sudário para os dois. O que eu vejo? Solidão, tristeza, indignação; o que submerge do meu olhar (?), angústias, culpa de outros, vida e morte, direito negado e deveres infringidos, revolta.

Não é apenas um olhar, o olhar de um sujeito. É assim: “há Narciso diante da fonte; há o espectador diante do quadro; e é a mesma relação que, em cada caso, une um ao outro.” (Dubois)

Reflexo de outra crise migratória, esta ocorrendo entre o norte da África e o sul da Europa, a fotografia seguinte registra uma realidade que se perpetua, pois de acordo com a ONG Save the Childen, um ano após a morte de Alan Kurdi, 423 menores de idade pereceram na tentativa de suas famílias de atravessar o Mediterrâneo. Na época olhares “pertubados” – a imagem observada na fonte por Narciso é o seu próprio reflexo -, reagiram de diversas formas, mas em algumas, a arte foi o mecanismo encontrado para a expressão dos sentimentos de seus autores.

Imagem 2: Fotografia do menino sírio Aylan Kurdi, encontrado morto em uma praia da Turquia, registrado em 02/09/2015 pela fotógrafa Nilüfer Demir, que cobria a crise migratória em Bodrum para a agência de notícias Dogan. Disponível no site:<https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2016/09/05/europa-um-ano-apos-foto-iconica-423-criancas-morreram-no-mar/> Acesso em jun. de 2019.

É o que se vê na reportagem publicada no site G1 Sorocaba/Jundiaí, da Globo.com em 04/09/2015, sem autor definido, intitulada Grafite em Sorocaba faz homenagem a menino sírio morto após naufrágio.

“Um grafite do menino sírio Aylan Kurdi, encontrado morto em uma praia da Turquia, surpreendeu moradores da zona industrial de Sorocaba (SP) na manhã desta sexta-feira (4). O registro do desenho foi feito por uma motorista que passava pela Rua Paulo Varchavtchik, no bairro de Aparecidinha. A arte foi feita pelo grafiteiro sorocabano Rafael Sudário em um painel próximo a uma área de chácara ocupada com algumas casas construídas de forma improvisada. O grafite mostra a criança deitada de bruços, da mesma forma como foi encontrada na praia da cidade turca de Bodrum. Em volta do desenho do menino a palavra “paz” foi escrita diversas vezes, ao lado de “abandonados”.

Imagem 3: Fotografia disponível no site: <http://g1.globo.com/sao-paulo/sorocaba-jundiai/noticia/2015/09/grafite-em-sorocaba-faz-homenagem-menino-sirio-morto-apos-naufragio.html.> Acesso em jul. de 2019.

O grafite refletiu os sentimentos do espectador, o grafiteiro Rafael Sudário, que observou a fotografia e nela se observou… e reagiu, assim, pela arte.

“Sou, (como) Narciso: acredito ver um outro, mas é sempre uma imagem de mim mesmo (…) A relação narcísica opera aqui na enunciação, no discurso pictural; e não estamos mais cortados dessa relação; ao contrário, nela estamos plena e realmente implicados; o face a face com o quadro [e a imagem fotográfica] posiciona-nos como protagonistas por inteiro (“eu” diante de nosso “tu”)”. (Dubois)

É sempre, então, o NARCISO DIANTE DO ESPELHO.

Referencias:

DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. 12ª Edição, Papirus Editora, Campinas/SP, 2009.

BARTHES, Roland. A Câmara Clara. 12ª Impressão. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro/RJ, 2008.

GALAHAD, L. C. Narciso, o espelho e ele mesmo. Disponível no site:<https://mitologiagrega.net.br/narciso-o-espelho-e-ele-mesmo/>. Acesso jul de 2019.