Por Juliana S. de Lima e Victoria Tupini Pereira
Resumo: O presente artigo visa trazer uma reflexão teórica sobre a música e a paisagem sonora como fonte de pesquisas, produtora, geradora e mediadora de conhecimento. Por isso, a importância de dar enfoques a novas perspectivas da história, seja através da música, paisagem sonora, ou de outras manifestações que rompam com uma ótica universalista e eurocêntrica. Como metodologia interdisciplinar, serão utilizados métodos qualitativos para obtenção de informações a respeito da territorialidade da música e dos sons, em suas dimensões estruturantes, onde através das epistemologias críticas, a música e o som se tornam protagonistas da análise.
Palavras chave: Estudos Interdisciplinares – Paisagem Sonora – Música – Epistemologias críticas
“A música está no mundo, e falar sobre ela é falar sobre um tempo e lugar específicos. Além de carregar significados, também produz significado.” (TEPERMAN, Ricardo, 2015, p.9) O artigo vai de encontro com a perspectiva de uma História descolonial, entendendo que esta se encontra em seu processo de construção. Partimos da análise de que a História, baseada em preceitos modernos e, portanto, com suas teorias e métodos articulados a partir de contexto Europeu, por vezes ignora e não subsidia contextos fora do eixo Norte, onde o Sul é visto como lugar de trabalho e não de articulador de conhecimento. Contudo, quando observamos ao nosso redor e saímos dos muros acadêmicos, nos deparamos com diversas práticas e saberes não hegemônicos que confluem para lidarmos com o mundo, com a natureza, a sociabilidade e que nos fazem questionar sobre os saberes científicos não estarem no topo de uma pirâmide do conhecimento, mas sim, que dialoga com demais saberes de maneira interdisciplinar.
Um exemplo disso, é o caso que trataremos a seguir em relação à música e os sons. A interdisciplinaridade entra como base bibliográfica e metodológica importantes para compreender os processos que ainda serão trilhados. Com o desafio de construção de uma ciência que vivencia uma ecologia dos saberes (SOUZA SANTOS, 2009), onde a hierarquia científica é questionada, o artigo entra como proposta crítica a História evolucionista, eurocêntrica, positivista e cartesiana e que encontra na racionalidade e na cultura letrada instrumentos de manutenção de poder. Além disso, o conceito de “Escrevivência”, cunhado pela escritora e professora Conceição Evaristo (2016) nos auxiliou de maneira significativa na elaboração deste artigo. O conceito de paisagem sonora foi desenvolvido pelo pesquisador Murray Schafer entre as décadas de 1960-70. Para ele, a paisagem sonora é “qualquer campo de estudo acústico” (1997, p. 23), ou seja, ao pesquisar música, ondas sonoras, ou o ruído dos ventos chacoalhando as árvores, estamos refletindo sobre a paisagem sonora.
Isso abrange uma gama de produções teóricas que ao se articularem em rede, desenvolvem estudos interdisciplinares no campo da sonoridade. Seja no campo das ciências exatas, com a acústica e as propriedades físicas do som – ondas -; na sociedade e a relação som, sujeito, territorialidade, ou nas artes, com a música criadora de paisagem sonora, o som, ao se articular com o território, se torna capaz de representar o espaço, assim como a imagem. Como coloca o historiador Luiz Antônio Simas “As ruas são de Exu, o morador das encruzilhadas, lugar em que não há fixidez. Mas Exu não mora só na encruza: ele tem a artimanha também de morar no som de um assovio ou nos desenhos de um surdo de terceira no meio da bateria de uma escola de samba” (SIMAS, Luiz Antonio. p. 25, 2020) Percebendo a ausência de trabalhos nesse campo do conhecimento nasce nosso questionamento. Mesmo a História sempre passando por constantes mudanças na sua forma de perceber e analisar a relação do ser humano no tempo, a forma que esta mesma é escrita, continua centrada no modelo ocidental.
O perigo de uma história única, contada apenas por vencedores, que, baseado em fontes estritamente escritas, por vezes apaga e ignora um campo da vida substancial, como a oralidade e a subjetividade. A música e os sons aqui são compreendidos como uma alternativa de formação de um discurso não hegemônico. Para compor ao debate trataremos de abordar o som e a música como um possível e sensível caminho metodológico que, ao se articular com epistemologias críticas, é capaz de trazer à tona experiências históricas e sociais sincrônicas e diacrônicas, de denúncia e subversão, que pelo movimento das ondas, chega até nós de forma a compelir uma gama de experiências e vivências coletivas.
Em Tambores, rádio e videoclipes: sobre paisagem sonora, territórios e multiculturalidade, o geógrafo Marcos Alberto Torres (2011) discute como as ondas sonoras atuam no espaço, articulando com conceitos como multiculturalidade, território e paisagem. Torres relata que o tambor, como produtor sonoro, foi utilizado de diferentes formas a depender da comunidade. No Japão rural, os taikós (tambores) e suas ondas tinham a função de demarcar o território e as fronteiras físicas, limitando-o de acordo com o espaço em que fosse audível o som dos tambores” (2011, p. 70). Enquanto em religiões de África e suas vertentes brasileiras, o tambor demarca o território do sagrado, reafirmando identidades (2011, p. 70-71). Com o avanço tecnológico, a possibilidade da escuta gravada auxilia nossa compreensão do som que se passou. Além das histórias contadas pelos mais velhos, guardiões de memória, soma-se os fonogramas, fitas cassete, CDs, na busca histórica de compreender o passado. Dito isso, vemos a importância das pesquisas que, através do som, ruído, da música, entre outras formas de paisagem sonora orgânica – do cotidiano, sem necessidade de mediações técnicas -, um forte elemento de construção do lugar social, de territorialidades, identidades e sujeitos.
Para Mehdi Eugene Ahmed Zaoug, em sua tese El Espacio desde el Paisaje Sonoro: Caso de la Plaza Grande de Quito (2016), “todo lugar ocupado por seres vivos leva a práticas sonoras e que, em certos casos, estas práticas são condicionantes para a existência de território” (p. 7). Desta forma, a música, entendida como uma produção técnica, oferece uma rica perspectiva multidimensional e multiescalar que revela importantes elementos da relação de produção, apropriação e poder no espaço, nos fornece dados da realidade em uma narrativa artística impregnada de ideologia, representações ideológicas e experiências sócio-espaciais que acompanham o seu espaço-tempo específicos. O espaço sonoro, como um espaço inteiro, é vivido, produzido e reproduzido cotidianamente, um lugar de conhecimento e múltiplo em suas dinâmicas. Mayra Patricia Estévez Trujillo, em sua tese Estudos sonoros en y desde América Latina (2016), ao pesquisar estudos sonoros na região andina, busca conhecer práticas de experiências com som que estão para além da reprodutibilidade sonora moderna/coloniais. Para Trujillo, a dimensão sonora é um campo de tensões pela luta dos significados, tece espaços e sociabilidades. A autora propõe o som marginal driblando o antropocentrismo e a linearidade como lógica organizadora, em oposição ao som de produção hegemônica.
Um caso importante que podemos aqui tratar é o do Rap, como um fenômeno cultural diaspórico majoritariamente urbano, que vem cada vez mais se mostrando uma ferramenta de leitura da realidade, e que se caracteriza como um veículo da insatisfação dos que compartilham e se identificam com o movimento, com base em questões políticas conscientes que denunciam as injúrias sociais. Afinal, toda música/obra pode ser vista como um produto do próprio sujeito que a elaborou, e das condições que os permeiam. Vejamos o exemplo da rapper Kaê Guajajara, que traz em sua letra aqui exemplificada, uma série de provocações e denúncias, recorrendo ao contato com sua ancestralidade, a história de seu povo e as práticas capitalistas de apropriação da natureza, abordagens como preconceito, e problemas sofridos pelo povo indígena, e suas resistências. Que comida você come, senão a que eu dou? Abra a sua mente antes da sua boca É o Brasil que ninguém vê O Agro não é tech, não é pop e também mata Vestem rosa ou azul com as mãos manchadas de vermelho Vejo meus filhos se perguntando se você os mata ou se Eles se matam, se você os mata ou se eles matam primeiro. Você não sabe, ninguém viu. Mas ficou cravado na minha memória Pega no laço e você sabe a história: legalizam o genocídio. Chamam de pardos para embranquecer, enfraquecer e desestruturar você, pra não saber de onde veio. (GUAJAJARA, Kaê. Mãos Vermelhas. Gravadora – 2020 – 3min16seg)
O contexto que Kaê Guajajara apresenta é um desdobramento de práticas históricas. Analisando em partes observamos diversas críticas que se encontram na denúncia a uma exploração da terra e legalização de genocídios, além do processo eugenista de embranquecimento. Também está presente no trecho da música a crítica ao agronegócio, que vem devastando diversas comunidades indígenas e a natureza. Quando a rapper coloca “Pega no laço e você sabe a história” traz o recorte de gênero das mulheres que foram pegas no laço, no sentido mais cruel e brutal da frase, forçadas a viver culturas que não são suas, forçadas a viverem uma vida que não escolheram, tendo como base as estruturas patriarcais, brancas, eurocêntricas, falocêntricas e capitalista. Conclusão Como coloca Viviane Vedana, em seu texto Paisagem sonora e antropologia urbana: um ensaio sobre as sonoridades da cidade (2010), a cidade é um objeto temporal, palco e resultado de práticas.
O som então, também é território, pois nele percebe-se características e marcos sonoros capazes de singularizar o ambiente. O contrário também acontece, sons tão comuns que nossos ouvidos adormecem. Neste artigo, trouxemos a ideia de se compreender o som a partir do eixo Sul-Sul, onde as histórias se interconectam. Com esta perspectiva, o som pode ser visto como um subversor de lógicas dominantes, desmontando a linha cartesiana de pensamento e questionando a exportação de teorias e práticas. São reflexões que não se findam aqui, mas esperamos ter contribuído para elucidar essa interação entre histórias, músicas e sons, compreendendo esses elementos como narradores do tempo e espaço em que são produzidas, colaborando para o entendimento das dinâmicas e transformações e das vivências inseridas no espaço. Ao analisar e propor pesquisas vinculadas ao som marginal ou a paisagem sonora orgânica, adentramos um giro descolonial, interdisciplinar e epistemológico, não apenas nas fontes e referências que trazem a investigação, mas como a investigação se propõe a ser construída.
Referências:
GUAJAJARA, Kaê. Mãos Vermelhas. 2020 – 3min16seg.
PERMAN, Ricardo. Se liga no som: as transformações do rap no Brasil – 1ªed. São Paulo : Claro Enigma. 2015.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. In.: Epistemologias do Sul. 2009.
SCHAFER, Murray. A Afinação do Mundo: Uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. Trad. Marisa Fonterrada. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
TORRES, Marcos Aurélio. Tambores, rádios e videoclipes: Sobre paisagens sonoras, territórios e multiterritorialidades. 2011.
TRUJILLO, Mayra Patricia Estévez. Estudios sonoros en y desde Latinoamérica: del régimen colonial de la sonoridad a las sonoridades de la sanación. Tese de doutorado em Estudos Culturais Latinoamericanos. Universidade Andina Simón Bolívar. Quito, 2016.
VALERO, Francisco Rodriguez. Construcción de las identidades latino-americanas. Una aproximación desde el entorno sonoro. Temas de nuestra América. Vol. 33 nº 61. Universidad Nacional de Costa Rica. 2016.
ZAOUG, Mehdi Eugene Ahmed. El espacio desde el paisaje sonoro: Caso de la Plaza Grande de Quito. Dissertação em Estudos Urbanos. Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, Guatemala: FLACSO. Abril, 2016.