Queremos o que desejamos?

Nós queremos, realmente, o que desejamos? Se recorrermos à etimologia, buscando a origem e a evolução das palavras, encontraremos que o verbo “querer” advém do latim QUÆRERE, que significava “buscar, procurar; perguntar; inquirir”. “Desejar” é oriundo, por sua vez, do vocábulo DESIDERARE, composto por DE-, prefixo intensificador, mais SIDERARE, de SIDUS, “astro, estrela”, ou seja, significava algo como “fixar atentamente as estrelas”. Quantas vezes, pelas redes, nos campos de comentários ou numa conversa de bar, entre amigos, familiares ou estranhos,  visualizamos, de maneira fixa, as “estrelas norteadoras”, desejando um planeta mais verde, saudável e harmônico; menos violência nas ruas, nas casas e nas relações; mais amor para com o próximo, menos julgamento e mais acolhida, e sonhamos, apaixonados, com o desenvolvimento da empatia nas crianças, do respeito e da autonomia baseada na interdependência, com o direito à liberdade de ir e vir, de amar e ser amado, à equidade, à expressão livre, à fala, à escuta, com o direito de ser visto, tocado e sentido, o direito de ter direitos, o direito de desobedecer… e almejamos o fim dos preconceitos, da corrupção, da fome, do abandono… quantas vezes?

No entanto, quando saímos do bar, quando viramos a esquina – ou antes disso, muito antes -, quando trocamos de conversa, quando saímos para buscar o pão, no caminho para casa ou para o trabalho, conversando com alguém ou com a nossa consciência – em voz baixa, em voz alta, em voz nenhuma –, na manhã de todo dia, com os filhos ou netos, afilhados, vizinhos ou colegas de classe, buscamos, verdadeiramente, o caminho que conduz às estrelas? Ou será que caminhamos com os olhos voltados para cima pisoteando todos e tudo sem dar por isso? Deslumbrados com o brilho distante das esferas, com o luzir ofuscante das ideias, seguimos a trote, de maneira imprudente, arrebentando a realidade no peito e fazendo da prática um eterno conflito? Desejamos que a violência termine, mas queremos que os violentos morram da maneira mais violenta possível. Desejamos justiça, mas queremos vingança. Desejamos que todos tenham o direito de se pronunciar sobre os assuntos mais variados, mas não queremos ouvir quando um ponto de vista nos contraria. Criamos mil artifícios para não ver em nós o que vemos em outrem e para não admitir que somos produtos de uma sociedade que, mesmo ao criticar, mesmo nas revoluções, continuamos reproduzindo de maneira inconsequente. Inventamos mitos modernos, estruturas complexas, narrativas bem elaboradas e histórias complementares para não admitir que mudamos a maneira de cultivar e a forma de tratar o terreno cultivado, mas que ainda semeamos os mesmos grãos.

Um homem, certa vez,

escreveu que um homem, certa vez,

havia dito: “tira primeiro o espinho dos seus olhos e será capaz, então, de retirar o cisco dos olhos do seu irmão”. Muitos aplaudiram e aplaudem o homem que disse o dito através do homem que deixou escrito aquelas palavras. Muitos adotaram esses dizeres como estrelas, olhando para o céu a fim de apagar ou esquecer onde pisam os pés, tentando ignorar a sebe melindrosa que acompanha o caminho. Mais de dois mil anos depois, a maioria de nós segue apontando, com as vistas mareadas de sangue, as farpas nos olhos alheios. Nós queremos, realmente, o que desejamos?

Questões filosóficas acerca da liberdade humana

‘Liberdade’ é mais um desses valores humanos que só existem plenamente no dicionário, diferentemente da ideia de liberdade que povoa as cabeças humanas. Rigorosamente, ninguém sabe se Deus existe, mas a ideia de Deus fez e continua fazendo história. A ideia não precisa ser verdadeira, basta que tenha adeptos para alterar a realidade.
A ideia de liberdade provém de nossa condição de indeterminação. Não temos instintos, mas pulsões, como disse Freud. Animais sabem o que fazer logo quando nascem, os humanos não. Precisamos ser educados. Instintos são respostas rígidas aos estímulos. Mas, os humanos não têm respostas rígidas aos afetos. Logo, a indeterminação, vista como possibilidade de nos diferenciarmos, conduz à ideia de liberdade. Embora os outros animais sejam harmônicos com a natureza, a humanidade precisou criar a cultura para acomodar sua condição indeterminada.
Instintivos, os outros animais já sabem o que fazer ao nascer. Nós, humanos, sem saber o que fazer, tivemos de inventar regras para conviver entre nós. As primeiras regras foram os mitos. O mito é uma narrativa de construção de valores, que podem nos dizer sobre o que o certo e o errado, o bom e o mau, o verdadeiro e o falso para a comunidade em que estamos inseridos.
Juntamente com os mitos, vieram os ritos ou rituais.
‘Rito’ em sânscrito quer dizer “ordem”. A sucessão de rituais dentro de uma comunidade auxilia seus membros a saber o que devem ou não fazer, como agir, que lugar ocupar. Tribos ainda existentes em várias partes do mundo dão exemplos claros do modo ritual de comportamento. Quando qualquer membro é culpado de violar um ritual é expulso da comunidade para morrer na selva, pois sua noção de pertencimento é tamanha, que não sabe como viver fora da tribo.
Nas sociedades mais complexas, os ritos e rituais se transformam em instituições sociais. Elas cumprem o papel de nos informar sobre o que fazer, como agir e quem ser diante da sociedade. Nossa falta de instintos demandou a invenção de forças externas (instituições sociais) que visam manter e ensinar códigos de comportamentos. A humanidade se autocodifica através das instituições.
Segundo Platão, quando os deuses abandonaram a humanidade à própria sorte, obrigou-nos ao autogoverno e para isso inventamos a política – a arte de governar a pólis.

A ideia de liberdade, como um efeito colateral da condição de indeterminação, nos ofereceu uma plasticidade sociocultural, devido nossa natureza carente: carecemos de instintos. Os gregos entenderam isso rapidamente e viram que a liberdade não é exatamente uma qualidade humana, mas uma necessidade. Para aqueles antigos gregos, o mundo é regulado pela categoria da necessidade, que governa a natureza, vista como um fundo perene, que nenhum deus criou. Para eles, tanto os deuses como os humanos vivem dentro da natureza.
Por esses motivos, os antigos gregos formaram uma sociedade e uma cultura fundada pela condição de finitude humana, porque sempre acreditaram que as pessoas são mortais, têm seu limite derradeiro no fim de sua vida. A ideia dos gregos para definir o humano é “aquele que está destinado a morrer”.
Sobre essa verdade insofismável, os antigos gregos construíram uma ética da finitude. Por aquele código não devíamos ultrapassar nossos limites, de modo que não nos tornássemos soberbos, a ponto de imitar os deuses. Os que tentam ultrapassar os limites de sua humanidade preparam a própria ruína. Boa parte do teatro clássico grego representou tragédias e dramas sobre a ascensão e a queda de heróis tomados pela soberba.
Muitos séculos depois, quando emerge para a história o movimento judaico-cristão, a ética grega da finitude humana é abandonada em favor da crença cristã na eternidade da alma. Se no mundo grego, a natureza hospedava tanto deuses como homens, no mundo judaico-cristão a natureza é criatura de Deus e deixa de ser um fundamento neutro, para reproduzir a vontade divina.
Segundo o Genesis, ao fim de cada dia da criação, Deus se cumprimentou por suas obras, afirmando que elas são boas. Deus as cria e recomenda a Adão que o homem as torne em seu domínio. Mas, a dominação do homem sobre o mundo implicou em conhecimento das coisas, por isso a necessidade das tecnologias e das ciências.
Por causa desse ímpeto cristão pelo domínio da natureza, a ciência e a tecnologia tiveram grande avanço. Francis Bacon escreve em seu livro Novum Organun, que “scientia est potentia”. Ali ele escreve com todas as letras que a ciência surge para aliviar o homem das condenações que Deus lhe impôs, quando o expulsou do paraíso: a dor, o conhecimento da morte, a fadiga do trabalho. A ciência nasce como o cumprimento de uma profecia judaico-cristã.
Por isso, no ocidente, é bem difícil não pensar como cristão. Os crentes pensam que o passado é pecado, o presente é penitência e o futuro é salvação. Os cientistas ocidentais pensam que o passado é ignorância, o presente é pesquisa e o futuro, progresso. Os socialistas pensam que o passado é injustiça, o presente é revolução e o futuro é justiça social. Os psicanalistas pensam que o passado é trauma, o presente é análise e o futuro é cura.
Essas relações temporais positivas fazem dos cristãos, melhor dizendo, dos ocidentais, pessoas otimistas. O otimismo também pode ser arrolado como mais uma invenção cristã, já que ao final de tudo o bem irá triunfar. Ao contrário dos antigos gregos, que eram trágicos porque conheciam sua finitude, os cristãos se regozijam, porque jamais conhecerão a morte.
Na modernidade, uma das grandes influências do cristianismo pode ser observada no constituição do iluminismo. O cristianismo está na revolução francesa, carregando as bandeiras da liberdade, igualdade e fraternidade. A liberdade, para os cristãos, é seu destino nos céus. A igualdade provém da crença de que todos somos filhos de deus. Enquanto a fraternidade, o cristão promove em função de seu dever de amar ao próximo.
Para o cristianismo, é muito importante que os homens sejam livres, de modo que possuam o livre-arbítrio, pois do contrário não poderiam ser responsabilizados pelos seus atos, não poderiam ser punidos pelos pecados. A salvação cristã depende da punição dos pecados, caso contrário não haveria a eleição dos justos – todos estariam salvos! Logo, é preciso ser livre para cometer ou não uma ação boa ou má.
A ideia de que o homem é livre, portanto, responsável pelos seus atos, baseia toda a ordem jurídica ocidental, que julga a partir da intensão de agir – ato culposo ou doloso. Curiosidade: quando Oppenheimer inventou a bomba atômica, seria possível responsabilizá-lo por Hiroshima e Nagazaki?
Hoje, no início da era pós-cristã, não se julga mais pela intensão de agir, mas pelo efeito de sua ação, como diz Max Webber. Ética da responsabilidade – a ação é julgada pelo efeito que produz, não mais pela intensão, que ninguém pode julgar corretamente.
No futuro haverá mais liberdade esperando por nós? Difícil dizer: se tivermos como exemplo o otimismo cristão, a resposta é sim. Se os antigos gregos estavam certos em seu modo trágico de pensar, a resposta é não. Há meio termo?