Resumo: O presente artigo visa trazer uma reflexão teórica sobre a música e a paisagem sonora como fonte de pesquisas, produtora, geradora e mediadora de conhecimento. Por isso, a importância de dar enfoques a novas perspectivas da história, seja através da música, paisagem sonora, ou de outras manifestações que rompam com uma ótica universalista e eurocêntrica. Como metodologia interdisciplinar, serão utilizados métodos qualitativos para obtenção de informações a respeito da territorialidade da música e dos sons, em suas dimensões estruturantes, onde através das epistemologias críticas, a música e o som se tornam protagonistas da análise.
“A música está no mundo, e falar sobre ela é falar sobre um tempo e lugar específicos. Além de carregar significados, também produz significado.” (TEPERMAN, Ricardo, 2015, p.9) O artigo vai de encontro com a perspectiva de uma História descolonial, entendendo que esta se encontra em seu processo de construção. Partimos da análise de que a História, baseada em preceitos modernos e, portanto, com suas teorias e métodos articulados a partir de contexto Europeu, por vezes ignora e não subsidia contextos fora do eixo Norte, onde o Sul é visto como lugar de trabalho e não de articulador de conhecimento. Contudo, quando observamos ao nosso redor e saímos dos muros acadêmicos, nos deparamos com diversas práticas e saberes não hegemônicos que confluem para lidarmos com o mundo, com a natureza, a sociabilidade e que nos fazem questionar sobre os saberes científicos não estarem no topo de uma pirâmide do conhecimento, mas sim, que dialoga com demais saberes de maneira interdisciplinar.
Um exemplo disso, é o caso que trataremos a seguir em relação à música e os sons. A interdisciplinaridade entra como base bibliográfica e metodológica importantes para compreender os processos que ainda serão trilhados. Com o desafio de construção de uma ciência que vivencia uma ecologia dos saberes (SOUZA SANTOS, 2009), onde a hierarquia científica é questionada, o artigo entra como proposta crítica a História evolucionista, eurocêntrica, positivista e cartesiana e que encontra na racionalidade e na cultura letrada instrumentos de manutenção de poder. Além disso, o conceito de “Escrevivência”, cunhado pela escritora e professora Conceição Evaristo (2016) nos auxiliou de maneira significativa na elaboração deste artigo. O conceito de paisagem sonora foi desenvolvido pelo pesquisador Murray Schafer entre as décadas de 1960-70. Para ele, a paisagem sonora é “qualquer campo de estudo acústico” (1997, p. 23), ou seja, ao pesquisar música, ondas sonoras, ou o ruído dos ventos chacoalhando as árvores, estamos refletindo sobre a paisagem sonora.
Isso abrange uma gama de produções teóricas que ao se articularem em rede, desenvolvem estudos interdisciplinares no campo da sonoridade. Seja no campo das ciências exatas, com a acústica e as propriedades físicas do som – ondas -; na sociedade e a relação som, sujeito, territorialidade, ou nas artes, com a música criadora de paisagem sonora, o som, ao se articular com o território, se torna capaz de representar o espaço, assim como a imagem. Como coloca o historiador Luiz Antônio Simas “As ruas são de Exu, o morador das encruzilhadas, lugar em que não há fixidez. Mas Exu não mora só na encruza: ele tem a artimanha também de morar no som de um assovio ou nos desenhos de um surdo de terceira no meio da bateria de uma escola de samba” (SIMAS, Luiz Antonio. p. 25, 2020) Percebendo a ausência de trabalhos nesse campo do conhecimento nasce nosso questionamento. Mesmo a História sempre passando por constantes mudanças na sua forma de perceber e analisar a relação do ser humano no tempo, a forma que esta mesma é escrita, continua centrada no modelo ocidental.
O perigo de uma história única, contada apenas por vencedores, que, baseado em fontes estritamente escritas, por vezes apaga e ignora um campo da vida substancial, como a oralidade e a subjetividade. A música e os sons aqui são compreendidos como uma alternativa de formação de um discurso não hegemônico. Para compor ao debate trataremos de abordar o som e a música como um possível e sensível caminho metodológico que, ao se articular com epistemologias críticas, é capaz de trazer à tona experiências históricas e sociais sincrônicas e diacrônicas, de denúncia e subversão, que pelo movimento das ondas, chega até nós de forma a compelir uma gama de experiências e vivências coletivas.
Em Tambores, rádio e videoclipes: sobre paisagem sonora, territórios e multiculturalidade, o geógrafo Marcos Alberto Torres (2011) discute como as ondas sonoras atuam no espaço, articulando com conceitos como multiculturalidade, território e paisagem. Torres relata que o tambor, como produtor sonoro, foi utilizado de diferentes formas a depender da comunidade. No Japão rural, os taikós (tambores) e suas ondas tinham a função de demarcar o território e as fronteiras físicas, limitando-o de acordo com o espaço em que fosse audível o som dos tambores” (2011, p. 70). Enquanto em religiões de África e suas vertentes brasileiras, o tambor demarca o território do sagrado, reafirmando identidades (2011, p. 70-71). Com o avanço tecnológico, a possibilidade da escuta gravada auxilia nossa compreensão do som que se passou. Além das histórias contadas pelos mais velhos, guardiões de memória, soma-se os fonogramas, fitas cassete, CDs, na busca histórica de compreender o passado. Dito isso, vemos a importância das pesquisas que, através do som, ruído, da música, entre outras formas de paisagem sonora orgânica – do cotidiano, sem necessidade de mediações técnicas -, um forte elemento de construção do lugar social, de territorialidades, identidades e sujeitos.
Para Mehdi Eugene Ahmed Zaoug, em sua tese El Espacio desde el Paisaje Sonoro: Caso de la Plaza Grande de Quito (2016), “todo lugar ocupado por seres vivos leva a práticas sonoras e que, em certos casos, estas práticas são condicionantes para a existência de território” (p. 7). Desta forma, a música, entendida como uma produção técnica, oferece uma rica perspectiva multidimensional e multiescalar que revela importantes elementos da relação de produção, apropriação e poder no espaço, nos fornece dados da realidade em uma narrativa artística impregnada de ideologia, representações ideológicas e experiências sócio-espaciais que acompanham o seu espaço-tempo específicos. O espaço sonoro, como um espaço inteiro, é vivido, produzido e reproduzido cotidianamente, um lugar de conhecimento e múltiplo em suas dinâmicas. Mayra Patricia Estévez Trujillo, em sua tese Estudos sonoros en y desde América Latina (2016), ao pesquisar estudos sonoros na região andina, busca conhecer práticas de experiências com som que estão para além da reprodutibilidade sonora moderna/coloniais. Para Trujillo, a dimensão sonora é um campo de tensões pela luta dos significados, tece espaços e sociabilidades. A autora propõe o som marginal driblando o antropocentrismo e a linearidade como lógica organizadora, em oposição ao som de produção hegemônica.
Um caso importante que podemos aqui tratar é o do Rap, como um fenômeno cultural diaspórico majoritariamente urbano, que vem cada vez mais se mostrando uma ferramenta de leitura da realidade, e que se caracteriza como um veículo da insatisfação dos que compartilham e se identificam com o movimento, com base em questões políticas conscientes que denunciam as injúrias sociais. Afinal, toda música/obra pode ser vista como um produto do próprio sujeito que a elaborou, e das condições que os permeiam. Vejamos o exemplo da rapper Kaê Guajajara, que traz em sua letra aqui exemplificada, uma série de provocações e denúncias, recorrendo ao contato com sua ancestralidade, a história de seu povo e as práticas capitalistas de apropriação da natureza, abordagens como preconceito, e problemas sofridos pelo povo indígena, e suas resistências. Que comida você come, senão a que eu dou? Abra a sua mente antes da sua boca É o Brasil que ninguém vê O Agro não é tech, não é pop e também mata Vestem rosa ou azul com as mãos manchadas de vermelho Vejo meus filhos se perguntando se você os mata ou se Eles se matam, se você os mata ou se eles matam primeiro. Você não sabe, ninguém viu. Mas ficou cravado na minha memória Pega no laço e você sabe a história: legalizam o genocídio. Chamam de pardos para embranquecer, enfraquecer e desestruturar você, pra não saber de onde veio. (GUAJAJARA, Kaê. Mãos Vermelhas. Gravadora – 2020 – 3min16seg)
O contexto que Kaê Guajajara apresenta é um desdobramento de práticas históricas. Analisando em partes observamos diversas críticas que se encontram na denúncia a uma exploração da terra e legalização de genocídios, além do processo eugenista de embranquecimento. Também está presente no trecho da música a crítica ao agronegócio, que vem devastando diversas comunidades indígenas e a natureza. Quando a rapper coloca “Pega no laço e você sabe a história” traz o recorte de gênero das mulheres que foram pegas no laço, no sentido mais cruel e brutal da frase, forçadas a viver culturas que não são suas, forçadas a viverem uma vida que não escolheram, tendo como base as estruturas patriarcais, brancas, eurocêntricas, falocêntricas e capitalista. Conclusão Como coloca Viviane Vedana, em seu texto Paisagem sonora e antropologia urbana: um ensaio sobre as sonoridades da cidade (2010), a cidade é um objeto temporal, palco e resultado de práticas.
O som então, também é território, pois nele percebe-se características e marcos sonoros capazes de singularizar o ambiente. O contrário também acontece, sons tão comuns que nossos ouvidos adormecem. Neste artigo, trouxemos a ideia de se compreender o som a partir do eixo Sul-Sul, onde as histórias se interconectam. Com esta perspectiva, o som pode ser visto como um subversor de lógicas dominantes, desmontando a linha cartesiana de pensamento e questionando a exportação de teorias e práticas. São reflexões que não se findam aqui, mas esperamos ter contribuído para elucidar essa interação entre histórias, músicas e sons, compreendendo esses elementos como narradores do tempo e espaço em que são produzidas, colaborando para o entendimento das dinâmicas e transformações e das vivências inseridas no espaço. Ao analisar e propor pesquisas vinculadas ao som marginal ou a paisagem sonora orgânica, adentramos um giro descolonial, interdisciplinar e epistemológico, não apenas nas fontes e referências que trazem a investigação, mas como a investigação se propõe a ser construída.
Referências:
GUAJAJARA, Kaê. Mãos Vermelhas. 2020 – 3min16seg.
PERMAN, Ricardo. Se liga no som: as transformações do rap no Brasil – 1ªed. São Paulo : Claro Enigma. 2015.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. In.: Epistemologias do Sul. 2009.
SCHAFER, Murray. A Afinação do Mundo: Uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. Trad. Marisa Fonterrada. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
TORRES, Marcos Aurélio. Tambores, rádios e videoclipes: Sobre paisagens sonoras, territórios e multiterritorialidades. 2011.
TRUJILLO, Mayra Patricia Estévez. Estudios sonoros en y desde Latinoamérica: del régimen colonial de la sonoridad a las sonoridades de la sanación. Tese de doutorado em Estudos Culturais Latinoamericanos. Universidade Andina Simón Bolívar. Quito, 2016.
VALERO, Francisco Rodriguez. Construcción de las identidades latino-americanas. Una aproximación desde el entorno sonoro. Temas de nuestra América. Vol. 33 nº 61. Universidad Nacional de Costa Rica. 2016.
ZAOUG, Mehdi Eugene Ahmed. El espacio desde el paisaje sonoro: Caso de la Plaza Grande de Quito. Dissertação em Estudos Urbanos. Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, Guatemala: FLACSO. Abril, 2016.
A partir do campo da história intelectual, a intelectualidade nessa discussão é compreendida no percurso historiográfico pelo tema e contexto da atuação de Godofredo Tinoco. Esta perpassa produções literárias e atuações políticas significativas, da cidade de Campos dos Goytacazes ao cenário político nacional que movimentou a chamada “Revolução de 30”, num trajeto entre trocas de correspondências das quais foi mensageiro. Nesse sentido, a história intelectual, enquanto suporte para análise das relações de forças sociais, assim servindo dialeticamente ao tempo e ao contexto em que as ideias são produzidas, contribui para a compreensão, além das relações de força, das redes de sociabilidade enquanto ação recíproca. Dessa maneira, a intelectualidade pode transpor direta ou indiretamente os campos da cultura e da política já que, desde as revoluções do século XVIII, ela articula-se como aparato para o arranjo desses eixos sociais. Contudo, é no século XX que esta função sobre as ideias parece tomar proporções de mediação mais esclarecidas ao compor indispensavelmente os meios de opinião pública, informação e conhecimento, adentrando nos amplos dispositivos de cultura e organização social então emergentes.
O momento histórico do Brasil neste século, recém republicano e, portanto, ainda sob a égide das elites centrais, nos leva a olhar a conjuntura nacional apenas do eixo dominante que disputava as frentes oligárquicas, ignorando articulações diretas com territórios regionalizados de segunda grandeza e sua produção ideológica também em prol da política nacional. Não obstante, por meio dos elos declarados nos documentos do acervo do Godofredo, podemos considerar que a linguagem política vigente não somente chegava ao território de Campos dos Goytacazes e o influenciava, mas também se construía-se dentro e a partir dele por meio de personagens representantes da elite local nas relações interestaduais.
A cidade de Campos dos Goytacazes enquadrava-se em uma geografia privilegiada em relação às demais da época, pois dotada de um extenso território foi espaço de produção intensiva da cana de açúcar desde o século XVIII, tornando-se um importante centro econômico e distribuidor de mercadorias no Norte Fluminense. A potencialidade produtiva foi condição principal para a transformação urbanística da cidade a partir das políticas de ocupação e promoção do território que deram espaço a uma maior circulação de mercado, e consequentemente da cultura. Essa valorização por parte da Coroa corroborou para a mudança gradativa do imaginário que caracterizava uma identidade de selvagem e rebelde ao campista, transformando-se em um reconhecimento que beirou o ufanismo ao valorizar politicamente os bens materiais, naturais, e simbólicos da cidade e de sua população. Este trabalho, contudo, não tem como objetivo debruçar-se na complexa formação econômica/social do processo colonial e imperial da então Villa de São Salvador, já sendo ela tema de trabalhos que elevam suas questões. Cabe aqui elucidar somente as propriedades pontuais sobre sua adequação pela elite política aos moldes cosmopolitas no que tange, posteriormente, a formação de uma classe intelectual ativa politicamente nos traves republicanos e, especificamente, nos trâmites que inauguram a Segunda República.
Portanto, esse exame documental e contextual busca expandir o escopo analítico do começo do século XX a partir de algumas das características de um centro político e cultural de relevância no interior do Rio de Janeiro. Dessa forma, a pesquisa sobre a intelectualidade exercida por Godofredo objetiva não somente apontar as práticas discursivas que colocaram Campos dos Goytacazes nos moldes de uma metrópole cultural, mas historicizá-las, a fim de localizar as classes que as representaram em prol de seus próprios projetos. Nesse intuito, considera-se o movimento que reverberou na cidade entre o século XIX e meados do XX e que nessa pesquisa é conceituado enquanto um espectro de capitalidade, indicando a elaboração contínua de uma identidade local que foi base da disputa pela capital do Estado. Mas o impacto dessa manifestação constante nos discursos da elite política local deve ser entendido no contexto específico do século XX, sobretudo pela contribuição deste na circularidade das ideias em decorrência dos novos dispositivos de difusão e do movimento político que essa classe integrou. Isso significou enxergar a participação efetiva de Campos nas demandas nacionais do começo do século, no qual a elite da cidade absorve quase o mesmo processo da ordem oligárquica e suas dissidências do país, porém com especificidades históricas que lhe conferem maior necessidade de análise pelo potencial organizativo e as redes de força do território regionalizado.
Sendo parte dos resultados de pesquisa de caráter arquivístico e histórico, é correto afirmar que esse trabalho se baseia principalmente sobre as fontes documentais tratadas no acervo Godofredo Tinoco da Casa de Cultura Villa Maria – UENF. É, portanto, a partir da análise documental desse acervo pessoal institucionalizado, que são examinadas as condições de produção materiais e simbólicas que sustentaram a atividade intelectual articulada por Godofredo no decorrer de sua trajetória na cena cultural campista dos novecentos.
Para além do averiguar historiográfico, compreender essa dupla propriedade dos documentos do Godofredo Tinoco, como constituinte de um arquivo pessoal e que é institucionalizado postumamente, mostra-se essencial para a realização de sua análise que considere o campo simbólico em que o acervo está inserido e para que assim se desvie de seus ardis. É na imersão nesse campo simbólico materializado nos documentos em pesquisa, que podemos encontrar e/ou perpetuar, ou não, a memória que também institucionaliza-se. Não trata-se, contudo, de tirar a imparcialidade dos documentos em si, mas dos atributos que neles são passíveis “de outros interesses que não os ditados por sua estrita e imediata funcionalidade”[i].
Mesmo que a produção de lembranças e esquecimentos não seja o objetivo principal de determinada ação das instituições na sua relação entre passado e presente, as operações por elas realizadas acabam por influenciar nesse sentido. A permanência de determinado costume, de determinado hábito, de tradições de pensamentos e de práticas, mesmo que não considerado declaradamente como um elemento de determinação de memória ou de esquecimento, resulta em sê-lo[ii].
No que diz respeito ao acervo de Tinoco, seu caráter simbólico consiste no próprio valor que sua produção e rede intelectual corroboraram à cidade de Campos. Ainda que nascido em Macaé, é em Campos dos Goytacazes que Godofredo Nascentes Tinoco (1897 – 1983) se constrói como douto articulador da cultura e, consequentemente, da política campista. Esta posição certifica-se com base na parte de seu acervo pessoal composto por uma expressiva quantidade de documentos de cunho pessoal – como correspondências, postais, fotografias e recortes – e também os de caráter público – como seus livros, artigos, contos, peças – grande parte em diferentes versões e também os não publicados. A frente de instituições como a Associação da Imprensa Campista (AIC), Academia Campista de Letras (ACL) e das primeiras faculdades a se instalarem na cidade – Faculdade de Direito de Campos (FDC) e Faculdade de Filosofia de Campos (FAFIC) – além de membro ativo de sociedades de atuações específicas como a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), Godofredo escreveu por elas e sobre elas de forma a declarar um projeto ético-político, de sua classe.
O momento histórico no qual Tinoco é contemporâneo representa uma guinada nos aparatos de disseminação de informação e cultura, assim como em toda cadeia produtiva desempenhada pela ampla industrialização do capitalismo vigente. Esse movimento de modernização já permeava a cidade de Campos desde as últimas décadas do XIX por meio das indústrias e companhias de transporte ferroviário e dos novos serviços públicos, assim conformando uma nova elite na organização desse espaço cada vez mais urbano. Nesse cenário em construção, o intelectual já fazia-se dirigente na produção do saber e na enunciação da verdade[iii].
Os intelectuais indubitavelmente eram o grupo mais marcante nesta paisagem urbana em mutação, renovada pelas intervenções inéditas que conduziam a novos modos de funcionamento do espaço social, fazendo emergir novos valores e de comportamento que levaram, finalmente, à constituição de novas práticas e relações sociais[iv].
Nesse momento, Campos dos Goytacazes já destacava-se como uma metrópole cultural do interior, mas é no século XX que as práticas culturais, derivadas dos moldes modernizadores importados para o Brasil, tomam maior força na cidade. Além das diversas casas de teatro e jornais que nela constituíram-se ao longo do século XIX, o novecento ainda atribui à planície campista a relação direta com a radiodifusão, aparatos que conjuntamente favoreceram maior interação entre diferentes públicos, artistas e intelectuais de múltiplos lugares. A cidade teve, contudo, seus próprios personagens de relevância na organização e gerência desses aparatos culturais, sendo em sua maioria pertencentes às classes médias e altas oriundas das oligarquias locais. Essa prevalência das elites políticas da cidade implica uma correlação entre cultura e classe, principalmente por tratar-se de uma cidade entre o campo e o mundo citadino, guiada por um espectro de capitalidade pronunciado por essas mesmas elites.
O espectro em questão refere-se à produção e circulação de uma identidade regional que é evocada ao longo de dois séculos nos projetos que buscaram tornar a então Vila de São Salvador uma província e, quando cidade, capital do Estado. De acordo com Chrisóstomo (2011), esse manejo pela capitalidade desenvolve-se em três movimentos distintos. A começar com a localização estratégica da cidade, que a favorecia como um importante eixo de conexão comercial com o que é hoje o Norte Fluminense, a Vila de São Salvador começa a ser reconhecida politicamente, principalmente por sua estabilidade econômica com a cultura da cana de açúcar. Ainda no século XVIII, os diversos incentivos e investimentos da Coroa na Vila resultaram num plano de ocupação que sustentou uma rede de instituições judiciárias e religiosas. A partir desse olhar econômico para a região, sua imagem começa a se deslocar da alcunha de ‘selvagens e rebeldes’ à uma valorização de suas características ambientais e à docilidade de seus habitantes[v].
Com essa nova identidade regional que se forja e reproduz no XIX a partir de seus recursos naturais e da riqueza econômica e cultural, as elites políticas locais estabeleceram[vi] o potencial da Vila para competir com Niterói e Itaboraí a nova província do Império. Embora tenha perdido para Niterói nesse primeiro projeto de capitalidade, Campos recebe em 1835 o status de cidade, juntamente com um movimento de propaganda mais comedido em defesa do papel da cidade para o desenvolvimento do norte fluminense.
Ressaltar a importância da região, ora representando-a como uma área de grande potencialidade, ora como local degradado por falta de investimento e patriotismo dos cidadãos foram estratégias utilizadas pelas lideranças políticas para tanto incentivarem o que era considerado “a defesa do bem público” como para obterem recursos adicionais do governo central e provincial. De certa forma, as propostas das elites locais em transformar Campos num centro econômico foram lapidadas a partir da sistemática projeção da cidade como modelo de progresso e desenvolvimento regional[vii].
Mesmo com a crise provocada pela baixa da cana de açúcar e escassez da mão de obra, um segundo movimento pela capitalidade teve início em 1850. Nesse momento, a disputa pelo status de capital penetrava as várias cidades da província na expectativa de solucionar seus problemas econômicos e políticos. Contudo, Campos permaneceu no controle de ambos problemas, sendo o município mais abundante de toda província. Em 1855, um projeto foi submetido com as características que legitimavam a antiga Vila a tornar-se a Província de Goytacazes: “uma rede urbana, um espaço integrado, por meio do qual a capital exerce o seu papel de atrair e difundir os fluxos administrativos, comerciais, políticos e culturais”[viii]. No entanto, a fatalidade da epidemia de cólera rompeu a execução de mais esse movimento.
Contudo, a crise política no final do regime monárquico brasileiro reviveu o debate em torno da mudança da capital ainda no fim do século XIX, quando Campos demandou mais uma vez o título durante a década de 70 e, novamente, em 1893. Nesses dois momentos, mesmo com as constantes derrotas no desejo pela a capital, o apoio da Associação Comercial foi de suma importância em decorrência de sua estrita relação com essa recente conjunção de atividades citadinas. Todavia, esse espectro que circundou a planície parece não findar no século XIX, como pode-se observar no opúsculo “Campos capital” de Lamego Filho em novembro de 1930:
E pois em nome do passado, do presente e do futuro fluminense, que os grandes municípios do norte, sustentáculos do Estado do Rio de Janeiro, veem sob a chefia de Campos, Itaperuna e Padua – colossos expoliados da economia nacional – requerer a transferência de sua capital para a cidade de S.Salvador dos Campos dos Goytacás, afim de que, conflitantes nas suas fecundas administrações, possam estender as mesmas realizações pragmáticas, por todo o territorio estadual[ix].
Tendo em vista o rastro discursivo em torno da capitalidade, a apropriação de Campos dos Goytacazes enquanto núcleo do circuito econômico e cultural, direciona o debate na compreensão da produção dos discursos por suas frações de classe que corroboraram com as narrativas desse espectro ainda no século XX. De acordo com Albuquerque (2008), um recorte histórico e espacial sobre uma região explica-se pelas práticas e discursos, sendo ela, portanto, “fruto dos saberes, dos discursos que a constituíram e que a sustentam”[x]. Guiado por esta identidade regional remanescente que demarcava a cidade, Lamego (1930) indaga a legitimidade de Niterói, então capital administrativa do Estado, por sua condição intensamente metropolitana não representar todo o espírito fluminense. Ele ainda enfatiza que é a região do norte fluminense a responsável por grande parte das receitas federais e estaduais, onde “em Campos se concentra a enorme produção dos municípios do norte e grande parte da dos limítrofes que os avizinham”[xi]. Em uma linha argumentativa bem semelhante, Godofredo Tinoco convoca, 37 anos depois, a mesma identidade que forjou a cidade sobre atributos beneméritos de capitalidade e representação estadual e nacional.
Se essa afirmativa constitui regra, o município de Campos, no Estado do Rio de Janeiro, constitui brilhante exceção. E constitui porque – revelam-nos recentes recenseamentos – é o município mais populoso do Brasil, porque tem nos seus 4.681 quilômetros quadrados, 350.000 habitantes: é, de acordo com as estatísticas, o município onde o brasileiro mais produz per capita. No entanto, é o município, talvez, mais brasileiro do Brasil, por isso que o elemento estrangeiro no seu meio – embora sempre bem recebido – é quase nulo. E, se procurassemos êsse número em 1918, o teríamos nulo, efetivamente, porque, àquela época, estavam ainda tôdas as usinas em mãos de campistas natos[xii].
Como já mencionado, a constante formulação de epítetos de valor à cidade de Campos, está diretamente ligada ao projeto de enobrecimento e adequação da cidade a partir do padrão de modernização em voga. Mais esculpido do que nunca no século XX, esse projeto terá Tinoco como importante organizador e dirigente de suas demandas na cidade.
É necessário sublinhar o impacto dos intelectuais – produtos e agentes da nova configuração social e política – no movimento de abolição da escravidão, na instituição da República, na expansão da produção industrial e agrícola e nas reformas urbanas. Eles eram os agentes responsáveis pela instituição de novas formas e espaços de sociabilidade. Sobretudo, através de seus escritos, eles participavam ativamente na concepção e na divulgação da cidade moderna que se buscava criar[xiii].
Godofredo respondeu tanto ao projeto modernizador e identitário quanto aos anseios de uma reconfiguração republicana, ambas características que reverberaram na elite nilista de Campos. Da contribuição na criação da Campos moderna, com aparatos que se materializaram numa paisagem cosmopolita em meados do século XX, à participação nos movimentos políticos que abriram espaço à Segunda República brasileira, o intelectual denunciou esses atributos de sua intelectualidade de maneira um tanto quanto explícita em seus diversificados escritos públicos.
A sua filiação ao movimento que apoiava o conterrâneo Nilo Peçanha nos entraves republicanos, pode ser melhor apanhada em seu livro Nilo, o redivivo sob pseudônimo de Um Goitacá[xiv]. Nesse trabalho Godofredo demonstra o valor dado ao vulto nilista como um ato “deliberadamente partidário de um regime contrário à opressão e favorável à justiça”[xv]. É uma afirmativa que, aliás, está baseada na preocupação do próprio Godofredo com uma escrita da “História sob um aspecto puramente objetivo”, vista por ele como impossível de ser realizada e que, por isso, ele aparenta querer deixar claro de qual prisma filosófico parte a produção dessa biografia. Nesse sentido, afirma:
Não vamos mostrar, para exaltar, a vida de um poderoso, detentor de cornucópia das graças, das chaves do Tesouro – mas de um homem que nasceu pobre e que pobre perlustrou todos os cargos eletivos dêste país – desde a deputação federal até à Presidência da República, passando, de permeio, duas vezes pela Presidência do seu Estado natal e uma pelo Ministério do Exterior, numa época em que o orçamento dêsse ministério era limitado – e que legou ao jazigo do Cemitério de São João Batista um corpo consumido ao serviço da Pátria e à esposa a casa que recebera como presente de seus amigos.[xvi]
O legado de Nilo Peçanha foi motor e atalho para a participação de parte da elite campista e fluminense na coisa pública em nível nacional, na qual Godofredo foi expoente. Esse legado associa-se sobretudo, ao espaço dado à região nas oportunidades políticas enquanto estadista, que poderia “mais uma vez, restaurar a economia, as finanças, a moralidade e a paz novamente desaparecidas das terras fluminenses”[xvii]. Sobre essa influência, Alves denomina:
[…] uma linhagem de lideranças políticas que permaneceram atuantes nos anos 1890-1930 e também no pós 30. Um grupo minoritário, uma elite política caracterizada pela homogeneidade fornecida pela socialização, ocupação e carreira política (CARVALHO, 1981), composto por comerciantes e fazendeiros, empresários locais, médicos, engenheiros, advogados e jornalistas. […] Nomes como Luiz Chrysóstomo de Oliveira, Manuel Gesteira Passos, Benedito Gonçalves Pereira Nunes, João Guimarães, Cesar Tinoco, Godofredo Tinoco, Luiz Sobral, Ramiro Braga, Bruno de Azevedo, Alberto Lamego, Izimbardo Peixoto, João Barreto, Obertal Chaves, Cardoso de Melo, sendo vereadores, deputados estaduais, deputados federais, senadores, prefeitos. Tais indivíduos são a expressão da elite campista, constroem a carreira política em torno do nilismo[xviii].
No caso de Godofredo, a influência nilista ainda mais direta estava representada por seu irmão César Tinoco (1884 – 1960), importante aliado de Nilo desde quando era redator no Gazeta do Povo, jornal do Partido Republicano Fluminense.[xix] Levando isso em consideração, cabe ainda salientar que a participação de Godofredo na coisa pública está ligada, sobretudo, a uma ampla herança da família Tinoco em Campos, esta que se acomodou em dois importantes veículos de representação elitista da cidade: a cana de açúcar[xx] e a imprensa[xxi]. Este último foi de grande valia para a rede intelectual de Godofredo e sua organicidade, principalmente se considerado que “toda a vida intelectual era dominada pela grande imprensa, que constituía a principal instância de produção cultural da época e que fornecia a maioria das gratificações e posições intelectuais”[xxii].
As especialidades que são atribuídas em seu trabalho intelectual serão, certamente, fator de maior circularidade das suas ideias. Embora formado em Direito pela Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro, Godofredo integrou as áreas da literatura, história, jornalismo, economia, política e teatro em sua produção. Suas ações práticas serão mencionadas sempre que oportuno nestes trabalhos, principalmente no que refere-se ao movimento tenentista e seu seguimento em 1930, em que teve participação efetiva como articulador entre estados. Dessa forma, Godofredo evidenciou uma movimentação intelectual que se organizava não somente na prática discursiva, mas também na ação política coletiva.
Há de se notar que, o movimento de 30 contou com ampla participação de Campos em razão dos nilistas (partidários de Nilo Peçanha) terem simpatia ao tenentismo e apoiarem a Aliança Liberal. Figuras como Juarez Távora e o brigadeiro Eduardo Gomes tiveram o apoio dos adesistas do movimento, como César Tinoco, Dr. Cardoso de Melo, Godofredo Tinoco, Gilberto Siqueira, além do usineiro Francisco Ribeiro da Motta Vasconcellos – o Cel. Chico Motta. A participação do Godofredo Tinoco foi expressiva por suas ações. Tinoco juntou-se à “Coluna Gwyer”41 em Palmas (MG). A coluna invadiu o Norte Fluminense, dominando as cidades de Miracema, Pádua, Cambuci e S. Fidélis. Em Campos, os conflitos entre os defensores da revolução e os adeptos do governo foram intensos, uma vez que o prefeito em exercício, Luiz Sobral, apoiava Washington Luís. Jornais que se colocaram a favor do governo foram empastelados. O jornal O Dia de propriedade de Godofredo Tinoco é fechado e, ele mesmo foi detido, juntamente com o médico Cardoso de Mello, ambos foram remetidos ao Rio de Janeiro. A Associação Comercial logo aderiu ao movimento e os discursos inflamados expressavam o seu apoio[xxiii].
Em um de seus livros de título O Teatro em Campos 1735 – 1963, uma intervenção de característica particular atravessa o histórico do movimento teatral campista no ano de 1932. Godofredo explana em terceira pessoa sua participação contra a Revolução Constitucionalista, declarada pelos paulistas com fins a derrubar o governo provisório instaurado por Getúlio Vargas em 1930.
1932 só teve teatro no seu primeiro semestre, pois, a Revolução de São Paulo tumultuou de certo modo a vida social da cidade: – Godofredo Tinoco, depois de contacto pelo telefone com Eduardo Gomes, Cordeiro de Faria e Juarez Távora – seus companheiros de revolução de 1922 a 1930, depois de fazer um ‘meeting’ convocando os moços a defenderem e consolidarem a situação criada pelos revolucionários daquele período, embarcou no dia seguinte com um contingente de 384 voluntários campistas que se bateram bravamente desde o alto da Mantiqueira, até Espírito Santo do Pinhal, onde foram surpreendidos com a terminação da luta[xxiv].
Além de declarações informais em escritos de cunho outro que não político, Godofredo dedicou uma importante obra a esse conhecimento interno que teve na experiência entre os movimentos da década de 20 e 30. Seu reconhecido trabalho de 1931 Tempo bom… no setor leste, voltado à Revolução de 30 e seus pródromos, tem conteúdo dedicado à descrição e exame dos tratos internos em que fez parte. Em outro exame, mais curto e informal, com intuito de esclarecer algumas prerrogativas que atrelaram esse acontecimento político somente a morte de João Pessoa, o intelectual pontuou intimamente seu roteiro na coluna Gwyer dentre as condições pilares para o que culminou em 1930:
I – Tem sido repetido com alguma frequência que sem a morte de João Pessoa, não teria existido a Revolução de 30.
Não é exato, pois, antes da morte de João Pessoa:
[…]
d) – fui feito agente de ligação entre o Nordeste e o Sul, levando instruções de Eduardo, Cordeiro e Tasso para o Rio Grande e para São Paulo, de todos êsses lugares trazendo palavras de ordem para Minas e Paraíba;
e) – da Paraíba, trouce instruções de Juarez para que oficiais prêsos no Rio de Janeiro – um dêles Asdrúbal de Azevedo – prêso no Regimento de Cavalaria, à Avenida Ivo – fugissem para determinados pontos.
A morte de João Pessoa teria sido, simplesmente, a gota d’água que fez transbordar o copo com antecedência de horas ou dias […][xxv].
Como movimento que decorre e se firma nas aspirações que procuram forjar uma nova identidade e consciência nacional ao país a partir de uma “republicanização da República”, encontrar os laços entre Godofredo e o direcionamento político do tenentismo mostra-se devido. Estes laços, em grande medida, dizem respeito a defesa da modernização e das reformas sociais, demandas proeminentes nas camadas médias urbanas, onde nelas também se encontra a situação institucional dos tenentes como membros do aparelho do Estado e que se pronunciavam em nome da coletividade nacional, numa alternativa democrática. Nesse quadro, a vinculação de Godofredo à Reação Republicana diz respeito, não somente à influência da candidatura de Nilo Peçanha em 1921, mas da contribuição geral das tensões regionais por suas oligarquias não vinculadas ao café. Assim, as dissidências oligárquicas “utilizam em sua luta pelo poder uma insatisfação militar de caráter corporativo, aguçada por uma grande coesão grupal”[xxvi]. A ênfase dos revolucionários nas reformas jurídico-políticas, como a ‘verdade de representação política’, ‘liberdade de imprensa e pensamento’ e ‘obrigatoriedade do ensino médio’ (etc.), confere a participação das demandas das camadas urbanas na base social do tenentismo, bem como está a par com as prerrogativas defendidas por Tinoco.
Os tenentes não se vêem como representantes de determinada categoria social, tentando impor à sociedade seus interesses específicos, mas falam em nome de interesses nacionais, supondo representar uma consciência nacional. Agora não falam mais, como em 1922, apenas em nome de uma corporação ofendida, mas se pronunciam em nome da coletividade nacional, propondo para ela uma sociedade verdadeiramente democrática[xxvii].
É nesse momento de estreitamentos dos personagens campistas com os dos demais estados em reação, que suscitou “um amplo debate sobre a importância de Campos no cenário fluminense, propiciando a retomada da idéia “Campos-capital”[xxviii], como já mencionado no documento de Lamego. As condições políticas que determinaram a desarticulação dos estados fora do eixo oligárquico dominante com o fim do domínio nilista, determinou uma profunda “fragmentação política das elites políticas do estado do Rio de tal maneira que mesmo as facções identificadas com a revolução não tiveram condição de impor um elemento fluminense para a direção estadual ao longo dos anos 30.[xxix] A caráter da interferência do golpe na cidade, Lamego manifestou:
Mau grado as perspectivas da nova política, ensaiada pela Revolução, o povo fluminense nunca será livre emquanto lhe cair sobre a capital a sombra do palácio carioca. Qualquer arruaça, qualquer distúrbio, qualquer levante, na capital da República, reflecte-os immediatamente a nossa, em symetria fidelissima de espelho[xxx].
A condição geral do país no final da década de 20, a crise política, mais a crise econômica de 29, sufocou a agroindústria açucareira de Campos e região na década de 30. Diante dos prejuízos e reclamações dos produtores, o governo provisório de Vargas ainda criou em 1933 o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) “com o objetivo de desenvolver uma política nacional de planejamento, controle e fomento da produção de açúcar e álcool”[xxxi]. Essas reivindicações, em decorrência do tumulto gerado pela as novas condições políticas, marcaram o pós 30 produzindo um eco do anseio pela capitalidade e da busca pela ‘idade de ouro’, por meio de “um consenso político que lhe possibilitasse resgatar, no novo regime republicano, seu antigo status econômico e político”[xxxii].
Os anos 1930 representam assim um novo momento político- econômico para as elites de Campos no desdobramento do processo de remodelação urbana como projeto político. Dotar Campos de condições de sediar a capital do estado e, assim se constituir num importante centro da política fluminense era condição sine quo na nova conjugação de forças que se instituía no país com o governo de Getúlio Vargas e notadamente com a interventoria de Amaral Peixoto no governo do Estado do Rio de Janeiro, de 1937-45[xxxiii].
Embora não se possa afirmar Godofredo como agregado a esse manifesto pela capitalidade, é efetivo em suas ideias o compromisso que estabeleceu com as afirmativas e projetos que buscaram elevar a imagem moderna e ‘civilizada’ da cidade. Em uma de suas crônicas, enobrecerá alguns resultados desse projeto pela relação que a cidade ora cravava com a cultura em circulação na capital:
O simples fato de grandes pintores da França Nova, depois das mostras feitas nas maiores capitais dos nossos maiores Estados – Rio de Janeiro inclusive – lembrarem-se de Campos, já representa um inequívoco privilégio da nossa cultura. Vamos travar conhecimento com a cultura clássica através dos pincéis modernos, até o impressionismo tão discutido[xxxiv].
Quando Salo Brand, então prefeito de Campos (1942 – 1945) e parte da base corporativista estadual de Amaral Peixoto, decreta a posse do prédio pela Academia Campista de Letras, instituição na qual Godofredo estava presidente, o intelectual promove uma carta aberta de honra a tal ato. Nesse intuito, Tinoco fundamentou em linha humanística sua diligência na promoção da cultura na cidade, pontuando sua convicção na educação como agente primordial para a consciência da sociedade civil nas questões nacionais.
O mundo, desde a sua mais remota história, mostra não haver medicina de efeitos mais heróicos que a cultura, porque a inteligência e a educação sempre foram o mais alto de todos os valores, a fonte mais rica de todas as riquezas.
O ser humano já traz em si, indelével, indeclinável, a capacidade superior sentir, a faculdade – que é privilégio seu – de admirar e gozar o belo. Urge, pois, cultivá-la, aperfeiçoá-la, aumentá-la, porque as leis do belo ajuntam a todos os gráus de fortuna. Essa aristocracia do espírito que o gosto pressupõe, assinalava Rui, não depende absolutamente da riqueza, mas da elevação das impressões, da nobilitação do sentimento, na inteligência que dignifica as necessidades mais habituais da nossa passagem pela Terra![xxxv]
Mais tarde, em 1957, foi nomeado dentro do movimento que deu cabo ao déficit da cidade em relação aos cursos superiores. Num levantamento concedido em entrevista e publicado no Monitor Campista de 18 de abril do mesmo ano, Godofredo exibiu os estatísticos que comprovavam que Campos “sofria uma sangria de 80 mil cruzeiros por dia – ou seja de 2 milhões e 400 mil cruzeiros por mês – com os estudantes que estudam no Rio de Janeiro, pelo fato de não haver em Campos nenhum Curso Superior”[xxxvi]. Nessa causa, fundou e dirigiu os dois cursos inaugurados em 1958.
Já com os cursos superiores montados e prestes ao funcionamento, com as suas inscrições a serem abertas em 1º de janeiro funcionando os cursos de Direito e Filosofia, graças ao dinamismo inexcedível de Godofredo Tinoco, vimos chegar assim ao fim uma campanha árdua, dura, mas graças a Deus vitoriosa[xxxvii].
A partir da segunda metade do século XX, a cidade já contava com uma ampla estrutura cultural e política. A política de cooptação promovida por Brand entre 1942 e 1945 beneficiou o norte fluminense com o fomento de atividades econômicas e vultosas obras de infraestrutura. Nesse contexto, esculpia-se a política urbanizadora do Estado Novo – formulado dentro do ‘Plano Agache’ proposto por Salo Brand – que estabeleceu o gosto, a atitude cosmopolita na paisagem e assim significou e organizou novos espaços de fortalecimento de redes políticas.
Com efeito, a cidade de Campos atinge a década de 1940 sendo portadora de uma imagem cosmopolita, usufruindo de equipamentos urbanos modernos, possuía 8 praças públicas, 134 ruas, 7.812 prédios entre residenciais e comerciais, 05 jornais diários (Folha do Comércio, A Gazeta, A Cidade, A Notícia, o Monitor Campista, sendo o terceiro mais antigo do país), a Associação de Imprensa, fundada em 17-06-1928, o Conservatório de Música, inaugurado em 1936, usufruía dos serviços de correio aéreo, desde 1937. Em 1939 é inaugurada a Livraria Acadêmica e nesse mesmo ano é fundada a Academia Campista de Letras por um grupo de intelectuais, como Nelson Pereira Rebel, Barbosa Guerra, Godofredo Tinoco, Gastão Machado, Mario Barroso, Silvio Fontoura, Izimbardo Peixoto, Alcides Maciel. […] A cidade afirma-se como capital intelectual- cultural do norte fluminense notadamente pelo intenso movimento teatral não só pela produção/encenação de peças de teatro e de revista, destacando-se Múcio da Paixão. […] O dinamismo cultural é marcante, é inaugurada a Rádio Cultura de Campos (11-11-1934) graças ao entusiasmo de um grupo formado por Amador Pinheiro da Silva, Alcides Carlos Maciel, engenheiro- eletricista Avelino Silva, Antonio Pereira Amares, organizadores da Sociedade Rádio Cultura de Campos[…][xxxviii]
Percebe-se, portanto, que Godofredo buscou nos movimentos ditos revolucionários do século XX aliar e defender seu projeto de modernização da cidade encaminhando projetos de construção de aparatos de difusão de informação, conhecimento e cultura. Sua participação direta na criação e administração desses aparelhos assegura a afirmativa. O intelectual entendia o compromisso de sua função, e atrelava a ela o valor moral e ético da classe que representava e que acreditava dispor em suas ações políticas. Em uma carta de 1961 à Mário Ferraz Sampaio, – atuante nos primórdios da radiodifusão brasileira bem como na instalação da Rádio Cultura de Campos – PRF 7 – Godofredo alude esse princípio circunscrito em sua função:
Os homens da nossa geração têm que mostrar aos da geração que nos vai suceder que aquêles que se fazem profissionais da divulgação das idéias – pela tribuna escrita ou falada – devem ser verdadeiros sacerdotes de uma causa imediatamente representada pela sadia liberdade do pensamento – único clima compatível com a dignidade humana[xxxix].
Esse paradigma ideológico guiou a intelectualidade de Tinoco tanto na defesa do golpe de 30 quanto no de 64, nos quais fez questão de sempre sustentar a alcunha de ‘revolução’[xl], como declarado nas fontes apresentadas. Trata-se da defesa do que melhor sustentava a classe intelectual nacional, mas principalmente a que ele pertencia em Campos. Dessa forma, o fator progressista em seu discurso atento ao republicanismo, contemplava tanto o polo de valor universalista – da assimilação desses novos princípios liberais em circulação – quanto, e sobretudo, o de valor nacionalista – que no Brasil correspondia, como detectava Gramsci, a uma conservação “dos interesses e da influência clerical e militarista”[xli], mas sobretudo guiada por um ‘civismo’, uma pedagogia de Estado que forjasse a identidade nacional. Em um discurso de Tinoco na Associação da Imprensa Campista (AIC) em 1943, pode-se observar uma melhor aglutinação desses valores com que ‘o cidadão cumpre devotamente os seus direitos de membros de uma sociedade política”[xlii]:
Auxiliar, pois, Meus Senhores, a feitura da “Casa do Jornalista”, é pugnar pela alma indômita da Vossa própria nacionalidade, amparando com o Vosso apoio, aquêles que nunca Vos faltaram, e que se deram em holocausto sem Vós, aos Vossos e Vossa Terra, defendendendo com denodo e com tanecidade, a Moral, o Direito, a Propriedade, a Cultura – em uma palavra: – a Civilização![xliii]
Sua atuação correspondeu a um padrão, de pelo menos primeiros 60 anos de República, em que as elites intelectuais brasileiras estabeleceram intervenção cívica e política particularmente efetiva, no ímpeto de diagnosticar as mazelas nacionais e locais e no esforço de tornar concreto a demanda modernizadora, estabelecida a partir da adesão do republicanismo. No caso fluminense, o consenso que seus intelectuais buscaram organizar no começo do século XX, era sobretudo com fins na ruptura da política empregada pelo eixo dominante Minas – São Paulo. Entretanto, esse projeto em torno da hegemonia federal em disputa acomodou-se no mesmo plano de busca por uma constante qualificação e fortalecimento da cidade de Campos frente a região norte fluminense. Contrastava um embate intra-oligárquico que colocava em voga a interiorização da política fluminense ou a sua nacionalização como formas de melhor participação política da região. Contudo, como discutido por Ferreira, o conflito das frações da elite campista mostrou que, embora as tentativas pela capitalidade não tenham sido sucedidas, as iniciativas do grupo nilista em estabelecer uma rede de alianças no escopo do Distrito Federal e entre estados que viria a emergir na Reação, deu seus frutos na elevação da figura de Nilo e dos nomes que com ele se organizaram. Contudo, passado a derrota do movimento, pode-se dizer que o sucesso obtido diz respeito às trajetórias políticas individuais que ao longo do século continuaram articulando a imagem campista nas esferas em que tiveram espaço.
O passado de opulência da cidade de Campos, que permanecia em voga em ambos projetos de interiorização e nacionalização da política local, tratou da construção de um passado moldado em atributos de grandeza. Estes correspondem ao reconhecimento de uma época que se configurou no tempo, na realidade concreta que, embora nostálgica, e por isso exacerbada, não era mítica. Representava, sobretudo, a decadência da realidade presente que precisava ser expurgada frente à necessidade de acomodar a cidade nos padrões de modernidade e na disputa política regional e estadual na qual sua elite queria lugar.
Conclui-se que nesse objetivo, Godofredo exerceu papel de “enunciador e organizador de uma reforma intelectual e moral”[xliv] que armou campo para o desenvolvimento da vontade de sua classe em busca de uma forma superior de civilização moderna. Deve-se, portanto, o reconhecimento desse aspecto de classe a fim de não deixar seus feitos fora dos interesses particulares do bloco histórico a que serviu enquanto elemento superestrutural.
* Taiany Felipe é bacharel em História pela Universidade Federal Fluminense – Instituto de ciências da sociedade e desenvolvimento regional / PUCG com permanência de vínculo cursando licenciatura. Exerce atualmente pesquisa de teor arquivístico e histórico sobre acervo artístico/político do intelectual Godofredo Tinoco na Casa de Cultura Villa Maria – UENF e compõe os grupos de pesquisa Officina de Estudos do Patrimônio (UENF), Laboratório de Estudos da Imanência e da Transcendência (UFF) e História das Direitas e do Autoritarismo (UFF) nas linhas Políticas Culturais, Patrimônio e Arte; Intelectuais, História Política e História Pública e História Política e Discursos, respectivamente.
[v]Segundo Soffiati (1997), este gênero narrativo de valorização dos aspectos ambientais e culturais da região que será desenvolvido ao longo dos próximos séculos, parece encontrar suas bases nos relatos e memória do capitão Manoel Couto Reys no século XVIII.
[vi] Cabe salientar que, “o desejo de ser uma nova capital sinalizava a posição de destaque ocupada pelas lideranças do norte fluminense frente às decisões tomadas pelo executivo e legislativo provincial”. (CHRISÓSTOMO, 2011, p. 68).
[xiv] Pseudônimo que evoca uma identidade nacional firmada, neste momento, sobre o que seria de mais brasileiro. Portanto, atrelar o papel de seu povo originário, o Goitacá, na construção da identidade do campista, também mostra-se recorrente na literatura de auto enobrecimento regional e local.
[xxi] Em seus livros “Imprensa Fluminense” (1963) e “Grandezas e Misérias da imprensa campista” (1965), Godofredo apresenta os 127 anos que a família Tinoco ocupava na estirpe de jornalista do Estado.
[xxv] Exame da Revolução de 30 sem datação feito por Godofredo Tinoco e componente de seu acervo. Documento completo digitalizado e disponibilizado no site da CCVM.
[xxxv] Retirada da carta aberta de Godofredo Tinoco, quando presidente da Academia Campista de Letras (1944 – 1983), à Salo Brand, em agradecimento pela instalação do prédio da ACI durante sua ocupação como prefeito (1942 – 1945). Disponível em seu acervo digital no site da CCVM.
[xxxvi] Monitor Campista, 18 de outubro de 1957. Acervo Godofredo Tinoco.
[xxxvii] Folha do Comércio, 24 de dezembro de 1957. Acervo Godofredo Tinoco.
[xl] “Mas, nem tudo está perdido neste País; como tudo demonstra, continúa em marcha a Revolução de abril, Amaral Peixoto, o inventor da ‘Caixinha’ no Estado do Rio, já foi esvasiado pelo grande Presidente Castelo Branco; Juarez que tanto deve a Campos há de zelar por nós, também” (TINOCO, 1965, pp. 87-88).
[xli] Gramsci pontua essa especificidade da intelectualidade na América do Sul e Central onde “as cristalizações ainda hoje resistentes nesses países, são o clero e uma casta militar, duas categorias de intelectuais tradicionais fossilizadas segundo o modelo da mãe-pátria européia” (GRAMSCI, 1985, p. 21).
Quando falamos em mangá, uma das primeiras coisas que vem à mente são histórias com muita ação e velocidade, personagens caricatos com olhos grandes, em histórias fantásticas que se leem de trás pra frente. No Brasil, esse tipo de leitura ainda é associado apenas a um pequeno nicho de leitores jovens e aficionados pela cultura japonesa, porém, há um consumo bem expressivo no país, inclusive em períodos em que a produção editorial de quadrinhos no Brasil ainda era exclusiva a grandes conglomerados como os quadrinhos Disney publicados pela Abril.
Mangás são, na verdade, uma forma de história em quadrinhos que compartilha de alguns traços específicos surgidos no Japão, e remetendo, muitas vezes, a elementos fantásticos. Dentre os traços mais compartilhados estão a linha contínua e o desenho quase exclusivamente em preto e branco, devido ao fato de serem produzidos massivamente em impressão barata para rápida comercialização. Embora elementos da cultura japonesa abundem em boa parte de seus derivados, hoje há mangás de diversas nacionalidades, inclusive brasileira. O objetivo desse artigo é apresentar a história do mangá, a partir de renovações estéticas e do impacto das relações de consumo com esse ramo tão peculiar de histórias em quadrinhos.
O termo mangá
Mangá significa literalmente “desenho irreverente”, e esse termo foi usado pela primeira vez no século XIX pelo famoso artista de ukiyo-e (imagem desenhada na madeira) Katsushika Hokusai. Ele deu esse nome a seus livros de desenhos variados e esboços, a Hokusai Manga (algo como “desenhos irreverentes de Hokusai”); (BRAGA, 2005, p. 83). Até hoje, a partir das criações de Hokusai, mangás ainda são imaginados como apenas aqueles de raiz cômica, com forma exagerada de contar suas histórias, porém mais adiante observaremos os diferentes gêneros existentes.
As raízes desse gênero se encontram um pouco mais no passado, durante o Período Nara (século VIII d.C), quando surgem os primeiros e-makimonos, pergaminhos enrolados que iam contando uma história ao serem abertos, sendo, nesse momento, ainda cópias de obras chinesas que separavam o texto do desenho. A partir do século XI, começam a ser produzidos os primeiros e-makimonos com estilo japonês, sendo mais famoso deles obra do monge Toba Sojo, preservado no templo de Kozangi, em Kyoto. Essa obra traz, em sua maioria, cenas humorísticas com animais desenhadas em uma superfície de madeira e estampadas em papiros (BRAGA, 2005, p. 83).
Tanto o e-makimonos quanto seus sucessores, os kibyoshis (livros ilustrados do final do século XVIII) compartilhavam narrativas satíricas, cômicas, que tratavam do dia a dia daquela sociedade, histórias essas destinadas a um público adulto, nota-se, porém, que o texto dos kibyoshis e e-makimonos eram usados de forma descritiva em relação às imagens. Eles diferiam-se, portanto, da forma do mangá e das histórias em quadrinhos de hoje, cuja características são a relação artrológica estabelecida pelos diversos elementos na página: como explica o teórico dos quadrinhos Thierry Groesnteen, narrativas em imagens têm em comum o fato de compreenderem uma “solidariedade icônica”, i.e., elementos imagéticos diferentes que se relacionam entre si, e o fato de estarem dispostos em uma sequência.
Porém, a relação estabelecida entre as imagens, em uma página de histórias em quadrinhos, é “artrológica”, há uma articulação entre elas que cria uma relação de sequencialidade narrativa. À diferença de um livro ilustrado, como os kibyoshis, por exemplo, em que essa relação se dá página a página, nos quadrinhos ela ocorre em uma mesma “espaçotopia”, outro termo utilizado pelo teórico (GROENSTEEN, 2015). Nesse sentido, os mangás podem ser lidos como uma tradução para uma vasta gama de gêneros de quadrinhos surgidos no Japão.
O mangá que conhecemos hoje, segundo o pesquisador Amaro Braga (2020) é fruto de muitos processos históricos que, através de aculturações e transculturações, modificaram além da aparência a forma de os japoneses contarem e desenharem suas histórias. Dentre essas influências estrangeiras, em meados do século XX, técnicas como o uso de balões de diálogos passaram a ser incorporados nas obras, assim como a introdução das autorias coletivas, como no caso de Shû Chan No Bôken (As aventuras de Sho-Chan), de Katsuichi Kabashima (desenhos) com Nobutsune Oda (com os enredos da história).
A partir da década de 1950, Ozamu Tezuka causou grandes mudanças na estética do mangá, ao introduzir influências do mundo Disney em suas obras, sendo Shin Takarajima (A Nova Ilha do Tesouro, no Brasil) um marco no estilo e na indústria japonesa da época, trazendo as bases para o que conhecemos com mangá moderno (BAUDRY, HÉBERT, ROGER, 2019, p. 54-55).
Também passaram a fazer parte da linguagem utilizada nos mangás a partir das décadas de 1940-1950 os cortes e angulações de câmera, forte contraste de preto e cinza e a utilização das chamadas “linhas de ação”, com a intenção de ilustrar rapidez e movimentação. Há também influências diretas do cinema noir, como “obras de tons escurecidos, temática e fotograficamente, surpreendentes em sua representação crítica e fatalista da sociedade americana e na subversão à unidade e estabilidade típicas do classicismo de Hollywood” (MASCARELLO, 2006, p. 176).
A divisão das publicações entre revistas para meninos e meninas já acontecia há muito tempo, com a popularização das revistas voltadas ao público infantil, no fim da Era Meiji; surgiram aí publicações famosas como a Shonen Sekai (desde 1895), publicação voltada para meninos, e a Shojo Sekai (1906), versão para meninas (BRAGA, 2020). Durante a Guerra Sino-Japonesa (1937 – 1945), uma nova temática foi introduzida nos mangás, a propaganda pró-guerra e defesa dos valores do Império Japonês. Mudanças na forma de produção também aconteceram durante esse período, como a escassez do papel e outros materiais, forçando as editoras a reduzir páginas em seus volumes e passar a utilizar o papel jornal por ser mais barato; até que, em 1937, o governo militar japonês proibiu as revistas de entretenimento (BRAGA, 2020).
Após a Segunda Guerra Mundial o mangá no Japão toma um novo fôlego e novas temáticas são exploradas nas histórias, explorando o cotidiano da população e trazendo personagens com enredos capazes de ajudar o povo desse país, que saiu perdedor da Grande Guerra, a se reerguer e ultrapassar as dificuldades daquele momento tornando-se uma das maiores economias do mundo. A divisão do mercado de mangá por “demografias” – faixa etária e social – serviu para ampliar a distribuição de materiais dos mais variados temas sem que algum se sobressaísse aos outros pois cada divisão possui seu público de interesse. Se tratando de divisão por idade e gênero as classificações mais conhecidas são: “Kodomo (crianças), Shonem (meninos adolescentes), Shojo (meninas adolescentes), Seinen (homens adultos) e Josei (mulheres adultas). Mas não para por aí… Em cada uma destas nomenclaturas pode haver outras subdivisões para especificar os gêneros e o tipo de público dentro de cada categoria” (BRAGA, 2020, p. 84).
Resumidamente, ainda segundo Amaro Braga, os mangás Shonen são aqueles em que os protagonistas (geralmente jovens meninos ou adolescentes) passam por muitos desafios e aventuras para, com muita dor e sofrimento, ultrapassar esses obstáculos. É comum que haja também subenredos dentro das histórias que envolvam ficção científica, esportes e fantasia; como exemplos de alguns mais famosos no ocidente temos Hunter X Hunter, Saint Seiya, One Piece, Dragon Ball Z, entre outros. Já os mangás dirigidos às jovens meninas e adolescentes, os Shojo, apresentam temáticas que em geral são mais dramáticas, envolvendo romances, conflitos psicológicos que podem ocorrer em família ou escola. Assim como nos Shonen, o Shoujo também se utiliza de planos de fundo dos mais variados tipos, como colegiais ou ficção científica, para contar suas histórias.
As personagens apresentadas geralmente são meninas gentis, inseguras e o protagonismo feminino tende a ser foco nas histórias; dentre algumas mais famosas temos Fruits Basket, Sailor Moon, Ao Haru Ride, Cardcaptor Sakura, Orange. Direcionado ao público infantil temos a demografia denominada Kodomo, com histórias de cunho humorístico e desenhos mais simples, geralmente trazem alguma lição moralizante e/ou pedagógica e a presença de animais companheiros. Amaro Braga cita Doraemon, A caminhada de Yaya, Pan Pan Panda, Roji, Kimba e o Leão Branco como alguns exemplos de mangá Kodomo.
Como uma “versão ampliada do Shonem” (BRAGA, 2020, p. 85), os mangás Seinen são voltados para homens adultos jovens e, em geral, trazem desenhos menos caricatos e menos humorísticos. Situações de violência, horror e até mesmo cenas mais eróticas costumam fazer parte dessa narrativa. Alguns exemplos citados por Amaro Braga são: Death Note, Attack On Titan, Monster, Black Lagoon, Ghost in the Shell e Cowboy Bebop. Já para as mulheres jovens adultas são explorados temas relacionados a família, casamento e vida doméstica. Em geral o foco das revistas Josei recai sobre personagens masculinos bem sucedidos e interessados em casar. Nos roteiros é possível encontrar muitas vezes situações de atividade sexual – sem cenas explícitas ou violentas – e “que (quase) nunca são consumadas.
Em certas medidas, o crescente sucesso deste gênero é que levará ao surgimento de subgêneros eróticos problemáticos para o ocidente” (BRAGA, 2020, p. 86). Alguns exemplos de mangá Josei são: Happy Mania, Suppli, Loveless, 07-Ghost, Karneval, Gokusen, Paradise Kiss. Os mangás Hentai – que literalmente significa “pervertido” – são voltados justamente para essas temáticas pornográficas e eróticas, com cenas se sexo explícito, explorando diversas temáticas relacionadas ao desejo sexual. No Japão são conhecidos como Seijin e em geral, não possuem enredos profundos e os desenhos buscam quadros mais abertos e explorando a nudez do corpo feminino. Alguns exemplos de Hentai são: Henshin, Power Play, Twin Milf, Boy Meets Harem, Nudist Beach ni Shuugaku Ryokou de!!, Giri Giri Sisters.
Os mangás denominados Yaoi e Yuri são subdivisões dos mangás Shoujo. Os Yaoi são romances, comédias, dramas ou aventuras com protagonistas gays, voltados ao público feminino) e os Yuri, com as mesmas características dos Yaoi porém retratando relações entre mulheres. Outro detalhe é que, diferente do Yaoi, os mangás desse estilo podem ser publicados tanto em revistas de mangás masculinos quanto nas direcionadas para as garotas.
Atualmente é possível identificar algumas formas de hibridização, como diz Amaro Braga, tais como o Nouvelle Mangá, que traz um quadrinho com fortes influências do movimento do cinema francês conhecido como Nouvelle Vague, e o Mangá Nacional, produzido por brasileiros mesclando características culturais nacionais ao estilo mangá para compor suas narrativas.
Mangás brasileiros
No início do século XX, com imigração japonesa chegando ao Brasil (1908), temos a cultura japonesa introduzida diretamente no país e, a partir daí, mesmo que levemente, influenciando a cultura brasileira. Essas colônias japonesas do país, em especial a localizada até hoje no Bairro Liberdade em São Paulo, foram os primeiros a importar mangás para o país para consumo interno desses imigrantes. A partir das décadas de 1950 e 1960, alguns desses imigrantes passaram, então, a produzir quadrinhos inspirados no estilo japonês, sendo um deles Minami Keizi, que planejou publicar seu personagem Tupazinho em estilo mangá, inspirado em Astro Boy de Tezuka, na editora Pan Juvenil, porém foi orientado a adotar o estilo ocidental (NARANJO,2018). A editora Pan Juvenil foi a que, em 1966, publicou o primeiro mangá brasileiro, “Álbum Encantado”, com arte de Fabiano Júlio Dias e roteiro de Minami Keizi (PAN JUVENIL, 2007).
Na década de 1960, o descendente de japoneses Claudio Seto passou a fazer parte do quadro da EDREL (Editora de Revistas e Livros, fundada após o fim da Pan Juvenil por Minami Keizi, Jinki Yamamoto e Salvador Bentivegna) e se tornou um dos primeiros autores de mangá conhecidos no Brasil, publicando títulos como O Samurai, Flavo (também inspirado em Astro Boy) e Maria Erótica (que traz semelhanças com os hentais japoneses – mangás eróticos) Claudio Seto chegou a ser premiado, em 1966 como “Pioneiro e Mestre do Mangá no Brasil” pela Associação dos Desenhistas de Mangá e Ilustradores (CLAUDIO SETO, 2007).
Ainda na EDREL, a primeira publicação a citar os mangás japoneses no Brasil é o livro A técnica universal das histórias em quadrinhos de Fernando Ikoma. A EDREL fechou em 1975 após várias trocas de direção (EDREL, 2007). A extinta editora Ninja publicou três edições do mangá erótico Angel de U-Jin, no início da década de 1990, sem licenciamento para publicação (GUIA DOS QUADRINHOS). Havia também revistas como a Animax, da Editora Magnum, e Herói, da Editora Acme em parceria com a Nova Sampa publicando quadrinhos brasileiros emulando estilos japoneses (CANALTECH, 2019), e até já se fazia pesquisa, como o notório trabalho da professora Sonia Luyten sobre quadrinhos japoneses, marcado por sua premiação como pesquisadora em 1988 com um Troféu HQ Mix, premiação destinada à histórias em quadrinhos, cartuns, charges e artes gráficas e pesquisas nessa área no Brasil, criado naquele mesmo ano.
Os mangás, portanto, são um fenômeno editorial importante no país, em que tradicionalmente se consumia quadrinhos infantis e juvenis de origem americana vendidos em bancas de jornais. A partir dos anos 2000, a produção de mangás suplantou esse espaço, e cada vez mais percebe-se um maior interesse de editoras em publicarem traduções de mangás de diversos tipos. Há também uma produção em crescimento de mangás de autoria brasileira, a produção da revista Holy Avenger, de 1999, escrita por Marcelo Cassaro e desenhada por Erika Awano e que mesmo nunca sendo tratada pelos autores com o termo mangá mas sim “em estilo mangá”.
Foi reconhecida como mangá, em 2007, pelo Ministério dos Assuntos Estrangeiros do Japão, no Concurso Internacional de Mangás, sendo a única finalista brasileira na competição (CASSARO in NAGADO, 2011, p. 9); Mais atualmente temos muitos outros mangás criados por brasileiros como Tools Challenge, de Max Andrade (2011, Editora Draco), Sigma Pi, Shoujo de Adriana Yumi (2010, independente) e Shoujo Bomb (2019), que reúne várias autoras do cenário independente de mangás no Brasil como Renata Rinaldi, Cah Poszar, Lígia Zanella, Mari Petrovana, Janaina Araújo e Juliana Loyola, mostrando que esse jeito de fazer quadrinhos não mais se restringe aos japoneses.
Mas o mangá brasileiro também possui algumas subdivisões que mostram apenas a operacionalização das produções de mangá feitas no país. Como nos mostra Amaro Braga, são três as divisões principais:
(1) O Moho-Mangá ou Mangá-Mimético, que são aqueles que reproduzem totalmente os elementos do Mangá original, temática e esteticamente, e são reconhecidos como “nacionais” apenas por serem feitos no Brasil ou por brasileiros. Sendo, portanto, copias dos Mangás. Nestes materiais os autores querem mostrar que são desenhistas profissionais, competentes ao ponto de fazerem algo igualzinho ao original japonês e até mesmo trabalhar naquele mercado. Entre os modelos do Moho-Mangá, podem ser enquadradas a revista “Oiran”, do Studio Season de São Paulo, e as revistas “Vitral” e “O Príncipe do Best Seller”, das gêmeas do Futago Estúdio de Mangá: Silvana e Sônia de Alvarenga.
(2) O Kongo-Mangá ou Mangá-Híbrido, que se apropria de determinados bens estéticos ou temáticos dos Mangás, mas não reproduzem totalmente seus esquemas estilísticos, resultando em produtos híbridos. Grande parte da produção brasileira de Mangá fica enquadrada neste segmento.
E o terceiro, o (3) Nikkei-Mangá ou Mangá-Nativo, onde os quadrinhos se produzem como elemento nacional, brasileiro, com identidade própria e particular, porém esteticamente reconhecido como um “Mangá” japonês. (BRAGA, 2020, p. 114)
Mas, esses mangás produzidos fora do Japão, como os brasileiros, são ainda reconhecidos como mangá ou seriam quadrinhos no estilo japonês? O que faz o mangá é uma questão estilística ou geográfica? Durante um episódio do programa “Café com Aspas”, da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial, os pesquisadores Amaro Braga, Sonia B. Luyten, Valéria Fernandes e Gutts Tanar conversaram sobre a gênese dos mangás e entre os tópicos discutiram o que faz do mangá, realmente mangá. A historiadora e pesquisadora em questões de gênero nos mangás, Prof. Dra. Valéria Fernandes, afirma que é importante levar em consideração a origem geográfica e cultural dos mangás. Porém, assim como o Japão sofreu muitas influências externas em sua arte, os próprios japoneses reconhecem que a produção de mangás não se restringe ao continente nipônico, inclusive premiando os méritos de mangás feitos internacionalmente.
Amaro Braga salienta que, para os japoneses, toda a história em quadrinhos lá existente (de fonte externa ou não) é chamado mangá. Braga pontua, no entanto, que mangá também é questão de estilo, de uma linguagem estética que, entre pesquisadores, leitores e também os artistas (quadrinistas), passou-se a associar ao mangá. São certas características, formas de desenho e de contar histórias que são parte do imaginário compartilhado no ocidente do que seria a produção autenticamente japonesa. Sendo assim, esse tipo de julgamento depende muito da perspectiva teórica adotada, pois, “cada campo de pesquisa tem seu escopo teórico e defendem diferentes vertentes” (BRAGA, 2021).
Essas pesquisas nos ajudam a compreender como um formato característico da cultura japonesa consegue alcançar tão diversos públicos e também ser adaptado/apropriado por essas culturas para contar suas próprias histórias. Ainda assim, perspectivas sociais, históricas, culturais, literárias e linguísticas ainda podem ser muito estudadas abrangendo as diversas possibilidades de análise, uso e compreensão desse jeito de fazer quadrinhos.
Aos poucos a área de quadrinhos e, mais especificamente, de mangás vai se expandindo no país, com novas frentes de pesquisa e novos artistas também trabalhando no estilo. O quadrinho digital também vem ganhando força no Brasil abrindo portas para novos artistas explorarem o meio e alcançarem o público de forma cada vez mais independente.
Muitas discussões ainda são possíveis, sejam elas quanto a genealogia do mangá no Brasil, autoria de mangás brasileiros, questões estilísticas ou de gênero. Grandes pesquisadores pavimentam o caminho dos estudos de quadrinhos e mangá no Brasil, permitindo que, a partir de suas pesquisas, sigamos caminhos diferentes ou aprofundemos suas temáticas, propiciando também aos próprios quadrinistas uma melhor compreensão do mercado no qual se inserem, fortalecendo a produção de materiais em um contexto tão diferente do originário da linguagem mangá, porém altamente adaptável e de forte apelo ao público brasileiro.
Estudos como os de Amaro Braga, que buscam na sociologia formas de compreender o fenômeno do mangá produzido no Brasil nos ajudam a pensar essas questões identitárias e de estilo que permeiam a produção nacional de mangás, como no artigo Mangá Nacional: Crises Identitárias na Produção Brasileira de Histórias no qual aborda justamente essa possível hibridização cultural corroborada pela adoção de estéticas nipônicas na produção de quadrinhos brasileiros.
A perspectiva de gênero, que permeia a pesquisa da historiadora Valéria Fernandes, apoia a ideia de que os mangás ainda são campo pouco explorado e com muitas possibilidades no país. Autora também de um conhecido blog sobre mangás, o Shoujo Café, a autora dedica-se ao estudo dos mangás desde 2007, com a publicação de um artigo chamado “História, Shoujo Mangá e Feminismo: Um Olhar Sobre a Rosa de Versalhes”. Dentre os estudos mais importantes para se compreender o “fenômeno” mangá, temos a pioneira nesses estudos no Brasil, Sonia Bibe Luyten, com uma perspectiva histórica que nos ajuda a compreender também como funciona o mercado interno do mangá no Japão, além de nos propiciar ferramentas para aprofundar e abranger os estudos nos quadrinhos japoneses.
CONCLUSÃO
Sendo o Brasil a maior colônia de descendentes japoneses fora do Japão (LUYTEN, 2012, p. 148), não é surpresa que sejamos um país que consome muito mangá, sendo que, entre Janeiro e Fevereiro de 2021 já foram lançados 55 volumes apenas de mangá no país, incluindo lançamentos e reimpressões, número porém, inferior ao mesmo período do ano passado (2020), conforme mostra a figura a seguir:
Mesmo estando do outro lado do mundo, o Japão tem uma forte presença cultural no Brasil influenciando muitos artistas brasileiros a produzirem seus próprios mangás, como visto anteriormente. Com um mercado interno muito forte, o Japão carrega em seus quadrinhos uma certa identidade que a torna facilmente detectável mesmo passando por muitas hibridizações e sendo fortemente influenciado por artistas e técnicas estrangeiras. Com uma estética bastante diversa, é importante observar que o quadrinho japonês vem conquistando muitos outros países além do Brasil, países que não possuem tão significativo número de imigrantes e descendentes dessa cultura e, mesmo assim, absorvem e são impactados pelas histórias contadas pelos japoneses.
A variedade de estilos dentro da estética do quadrinho japonês se torna um campo vasto para estudos e análises, pois cada uma tendo suas particularidades, merecem análises específicas e , quem sabe assim, possamos compreender um pouco melhor não só os métodos de criação e influências que perpassam os mangás mas também os motivos que os levam ao imenso sucesso alcançado no exterior.
Uma manifestação artística com raízes milenares como o quadrinho japonês e que se adapta e se molda a sua realidade, “ajaponeizando” influências estrangeiras, tornando-as suas e produzindo conteúdos em que não só o povo japonês se identifica, abrangendo temas variados e que se adaptam ao público ao qual se dirigem nos abre muitas portas para questionamentos. Diversas chaves de leitura e perspectivas teóricas são ainda possíveis já que, além dos “gêneros” já conhecidos dentro do mangá ainda há novas hibridizações que surgem ao longo do tempo conforme o estilo mangá vai sendo incorporado por artistas de diversas escolas e vertentes. Não é possível, portanto, estudar o mangá sem pensar nessa diversidade e constante transformação: como os quadrinhos, o nome hoje abriga uma multiplicidade de obras para públicos bastantes diversos, com estéticas e temáticas bem diferentes.
BRAGA JR, A. X. Desvendando o mangá brasileiro: reprodução ou hibridização? 2005. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005.
_____. Histórias em quadrinhos japonesas: história, estética e impactos sociais. São Leopoldo: Faculdades EST, 2020 (Livro Didático). Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1dRSYUtDzsdt6RdaMmKLmN004ndYG96qx/view. Acesso em: 7 mar. 2021.
O MANGÁ NO BRASIL. Confins do Universo: episódio 46. Entrevistadores: Sidney Gusman, Samir Naliato, Sérgio Codespoti e Marcelo Naranjo. Entrevistados: Beth Kodama e Cassius Medauar. [S.I] Universo HQ, 21 mar. 2018. Podcast.Disponível em:http://universohq.com/podcast/confins-do-universo-046-o-manga-no-brasil/. Acesso em: 24 fev. 2021.
GROENSTEEN,T. O Sistema dos Quadrinhos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Marsupial Editora, 2015.
EDITORA EDREL. In: Guia dos Quadrinhos, 2007. Disponível em: http://www.guiadosquadrinhos.com/editora/edrel/152 Acesso em 23/02.
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LUYTEN, S.B. Currículo do sistema currículo Lattes. 08 ago. 2020. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/3523112773488026. Acesso em 19/02.
_____. Mangá – o poder dos quadrinhos japoneses. 3.ed. São Paulo: Hedra, 2012
MANGÁ GÊNESE, 2021. 1 vídeo (1:09:54s). Publicado pelo canal Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hsC7BkHAlHQ&t=2s. Acesso em: 23 fev. 2021.
MASCARELLO, F. (org.) História do cinema mundial. São Paulo: Papirus Editora, 2006
NAGADO, A. MATSUDA, M. GOES, R. de. Cultura pop japonesa – histórias e curiosidades, 2011. E-book (203 p.) Disponível em https://nagado.blogspot.com/2011/12/cultura-pop-japonesa-e-book-gratuito.html
SILVA, VALÉRIA F. Currículo do sistema currículo Lattes. 10 maio 2016. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/1268363663441580. Acesso em: 23 fev. 2021.
CLAUDIO SETO. In: Guia dos Quadrinhos, maio 2007. Disponível em: http://www.guiadosquadrinhos.com/artista/claudio-seto/1491. Acesso em 23 fev. 2021.
YUGE C. 25 anos da Herói: Editores relembram curiosidades e desafios da revista. Canaltech, dez 2019. Disponível em: https://canaltech.com.br/entretenimento/25-anos-da-heroi-editores-relembram-curiosidades-e-desafios-da-revista-158451/. Acesso em: 21 fev. 2021.
Chamarei este escrito de uma tentativa ensaística de traduzir o que foi minha criação religiosa. Acredito que tentativa ensaística é um termo generoso demais para o que virá a seguir, mas não consigo encontrar nada melhor no momento. Outra coisa que pode estar passando pela mente do leitor é por que minha criação religiosa teria alguma relevância para alguém além de mim mesma. Tentarei justificar, e peço a generosidade do leitor, pois é a primeira vez que escrevo algo que se pretende acadêmico assim, em primeira pessoa, e ademais, para falar de mim mesma.
Eu nasci e cresci crente, evangélica, protestante, os nomes eram variados durante a minha infância, e ainda são. Mas eu não faço parte daqueles que tem uma história de conversão recente na família, eu sou a quarta geração de pessoas nascidas protestantes históricas. Originalmente presbiterianos, mas quando eu cheguei já metodistas. Isso remonta dos primeiros anos do século XX, primeiros mesmo, bem no começo do século, quando meus bisavós maternos, Palaio e Adelia, se converteram em alguma igreja presbiteriana, talvez da zona rural, talvez já na área urbana de Itaperuna, não sei exatamente. Minha avó materna, Drucila (nome peculiar, porém bíblico) nasceu em um lar cristão protestante, e foi assim que ela criou seus oito filhos que permaneceram vivos, duas meninas morreram ainda bebês, não sei se chegaram a ser batizadas, porque tanto a igreja presbiteriana quanto a metodista batizam crianças, bem diferente de outras tradições protestantes, e essa é uma das coisas que no senso comum pouco se sabe.
Mas por que tudo isso teria alguma relevância para além do meu núcleo familiar? Eu acredito ter, porque o Brasil não foi e não é apenas uma colônia portuguesa católica. Há quem tenha sido colonizado de outra forma, por outros, e isso também faz parte da História, com “h” maiúsculo que nos forma enquanto nação.
Pierre Bourdieu (2002), o sociólogo francês, escreveu sobre o estudo de trajetórias nas Ciências Sociais, em uma tentativa de afastar tais estudos do conceito de biografia presente no senso comum, onde a vida segue um curso linear, em uma sequência de acontecimentos que obedecem ordem lógica e cronológica. Para uma análise sociológica, Bourdieu propõe que o pesquisador organize os fatos de maneira inteligível, e que o agente pesquisado seja considerado em sua totalidade, sujeito com nome próprio, que perpassa por diferentes campos. Mas nesse caso a pesquisadora sou eu, e a trajetória é a da mina família, seria isto possível?
Já Paulo Renato Guérios (2011) traz o conceito de história de vida, onde o sujeito pesquisado oferece sua própria perspectiva, geralmente por meio de uma entrevista concedida ao pesquisador. Cada ator histórico participa, de maneira próxima ou distante, de processos de dimensões e níveis variáveis, do mais local ao mais global. Não existe portanto hiato, menos ainda oposição, entre história local e história global. O que a experiência de um indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma modulação particular da história global. Particular e original, pois o que o ponto de vista microhistórico oferece à observação não é uma versão atenuada, ou parcial, ou mutilada, de realidades microssociais; é […] uma versão diferente. (REVEL, apud. GUÉRIOS, 2011, p. 16).
Recorrendo à citação acima, e, mais uma vez, contando com a generosidade do leitor, arrisco aqui propor uma apresentação do meu contexto religioso familiar, em uma tentativa de, com isso, gerar uma reflexão sobre o Brasil que vai além do catolicismo, em sua formação. Não teremos aqui espaço para uma análise aprofundada do que estou chamando de colonização protestante histórica do Brasil do século XIX e início do XX, mas o objetivo deste escrito ensaístico é de provocação, para que se possa pensar em análises aprofundadas de trajetórias de vida, no sentido bourdiesiano, de sujeitos que não foram catequizados por jesuítas, franciscanos, ou qualquer outra ordem enviada ao país para salvar nossas almas, mas que foram catequizados por calvinistas, wesleyanos, arminianos, e que também compõe o Brasil profundo, o Brasil rural, o Brasil urbano desorganizado, do interior e das capitais, que fazem parte de gerações que nunca rezaram uma Ave Maria sequer.
Daqui, deste lugar de quem viveu essa outra colonização que neste espaço me proponho a brevemente narrar, recorro a Gilberto Velho (1978), para, mais uma vez salientar que o que está diante dos nossos olhos, neste caso, as famílias crentes há gerações, não estão necessariamente sendo vistas com curiosidade sociológica.
O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico mas, até certo ponto, conhecido. No entanto, estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismos como fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente. (VELHO, 1978, p. 126, grifos do autor).
Dito tudo isto, irei reproduzir abaixo um texto originalmente publicado em meu blog pessoal, espaço onde escrevo livremente sobre qualquer tema que me cause inquietação. Manterei o texto exatamente como foi publicado em 17 de novembro de 2020, às vésperas de minha defesa de mestrado, com todos os termos não ortodoxos, pois acredito que mantê-lo assim será a maneira mais fidedigna de contemplar o ser que sou, em todos os meus aspectos e por todos os campos pelos quais circulo. Ser social, que carrega nome próprio, ser biológico, ser individual, ser histórico, ser político.
O texto foi escrito em contexto de eleições municipais, de indignação com o campo político com o qual me identifico ideologicamente, o campo da esquerda progressista, e sua incapacidade, na minha visão, de dialogar com colonialidades outras, que não as suas próprias.
Quem me colonizou? ou: os ouvintes de Rude Cruz[ii]
Acho que estou finalmente na última semana da escrita da minha dissertação de mestrado, e, depois de uns longos minutos encarando a tela com as páginas já escritas, eu fiquei querendo pensar em outra coisa por um momento. A questão é que eu não sei mais no que pensar. Não faço a menor ideia. Eu estudo o que estudo já há alguns anos, com diferente recorte, diferente objeto, mas com a mesma temática: os crentes pentecostais brasileiros.
Eu poderia agora pensar no resultado das eleições de domingo, eu poderia pensar na pandemia que não sei quando nem se vai acabar um dia, poderia pensar que sexta-feira tenho análise, e que tenho muita coisa pra falar, como sempre tive, minha vida é um eterno falar demais, poderia pensar, sei lá, que está ventando muito e parece que vai chover. Mas eu não consigo tirar da minha cabeça que dentro de alguns dias vou defender as páginas que escrevi como se estivesse lutando pela minha vida. É exagerado e dramático, mas eu sou exagerada e dramática, dizem que é culpa do meu signo, o que me faz pensar por uma fração de segundo que meu aniversário é mês que ve4m e que em poucos dias o sol vai entrar em sagitário, e eu não faço ideia do que isso significa, mas vou aceitar a culpa dele pelo meu exagero e drama.
Eu poderia pensar em tudo isso que já falei, mas ainda assim estaria pensando nos crentes pentecostais brasileiros, porque esse país não funciona mais da mesma forma e isso também tem a ver com eles, e nas eleições de domingo eles foram em peso votar e porque tudo isso faz parte de quem somos enquanto nação, e eu pareço uma obcecada (talvez eu seja) e não retiro essas pessoas de nenhuma equação. Acho que o fato de que vou tentar ser “dotôra” logo depois da defesa do mestrado, e que vou seguir querendo analisar os pentecostais brasileiros tem a ver com tudo isso. Imagina minha ousadia de querer ser doutora?! Se eu fosse o resto do mundo estaria rindo da minha cara agora, mas eu não sou o resto do mundo, então vou dar ao mundo minha cara a tapa pra estar nesse lugar também, o lugar dos doutores, o lugar que me parece tão claramente não ser meu, mas que eu vou teimar em tentar. Ao menos tentar. Talvez isso também seja culpa de sagitário, sei lá.
Hoje cedo eu li um texto do Anderson França[iii], esse também sagitariano desajustado, tão diferente de mim, mas que me traduz em tantos momentos. Ele nem sabe que eu existo, mas ele me traduz. Ele falava sobre a colonização, não a dos portugueses (que inclusive ele vê melhor agora em seu exílio em Portugal), mas a colonização missionária protestante, que dá à pessoa crente outra visão de mundo, de país. Eu também sofri essa colonização. Não foi a Europa católica que me colonizou, mas foi a ética protestante, a doutrina histórica britânica, os europeus reformados que formaram minha identidade de colonizada. Eu sei muito pouco sobre o Brasil católico, assim como pontuou Anderson. Eu sou fruto de uma mistura de metodistas e presbiterianos, daqueles roxos mesmo, que levam os cânones junto da Bíblia e do hinário, claro. Eu nunca rezei um terço, não sei bem o que é um rosário. Lá em casa a gente cantava Vencendo vem Jesus, e nunca fizemos sinal da cruz. Eita, rimou, que cafona.
A minha forma de ser colonizada no Brasil, na América Latina, é muito estranha aos outros. É tão estranha que as outras esferas da sociedade ignoram que não fomos colonizados da mesma forma, e que, portanto, não pensamos nem agimos da mesma maneira.
Assim como os colonizados pelos televangelistas pentecostais estadunidenses, gente empreendedora, liberal na economia e conservadora nos costumes, que trouxe pra esse país não apenas o dom de línguas e o batismo no Espírito Santo, mas também a Teologia da Prosperidade e a linguagem de mercado. Eles também colonizaram, especialmente os pobres, especialmente os sem perspectiva e sem amparo estatal, especialmente os marginalizados, excluídos, da roça e do subúrbio, da favela e dos rincões distantes aonde ninguém vai. Não deixam nem os índios em paz.
Esse país não aprendeu a lidar nem com aquela ética protestante que não existe mais, será que vai aprender a lidar com o colonialismo neopenteca[iv] que oferece argumentos e recursos discursivos para uma expectativa de mudança de vida que os partidos políticos não são mais capazes de oferecer? Será que as exxxquerdas[v] tão limpinhas e desinfetadas vão saber falar com a tia do reteté[vi] ou com a avó que acorda cantarolando Céu lindo Céu? Até agora parece que não.
Eu não sou neta de bruxa nenhuma que não conseguiram queimar, eu sou neta de crente, mulher plantadora de igreja[vii], que equilibrava a criação de oito filhos com seu evangelismo simples e direto, mas muito eficaz. Não tente trazer os signos gramaticais das Laranjeiras[viii] pra quem foi colonizado de outra forma. Parem de achar que as pessoas são burras e bitoladas, que coisa mais feia e irritante.
Eu ando de saco cheio dessas exxxquerdas mais acéticas que os puritanos, ouvindo João Gilberto, mas também a nova MPB, claro, sem saber quem foi Luís de Carvalho, e nunca ouviu Rude Cruz, porque essas coisas de crente pra cima deles não, isso é lavagem cerebral. Ahhhh gente, faz favor, vai fazer a lição de casa, vai aprender o que é esse país e entender que ele vai muito além das nossas leituras eruditas.
Eu ando de saco cheio, mas a culpa deve ser do meu signo, assim o jovem místico me entende melhor.
Referências Bibliográficas:
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J; FERREIRA, M de M (Orgs) Usos e abusos da história oral. Trad. Glória Rodriguez, Luiz Alberto Monjardim, Maria Magalhães e Maria Carlota Gomes. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 183 – 191.
GUÉRIOS, Paulo Renato. O estudo das trajetórias nas Ciências Sociais: trabalhando com as diferentes escalas. In: Artigos, Campos 12(1): 9 – 29, UFPR, 2011.
VELHO, Gilberto. Observando o familiar. In: NUNES, Edson de Oliveira. A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 1 – 13.
[i] Cientista Social pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
[iii] Anderson França é um escritor e ativista brasileiro, atualmente exilado em Portugal por receber ameaças de morte de grupos de extrema direita brasileira.
[iv] Termo informal de tratar os neopentecostais, deixando claro que não há aqui intenção pejorativa.
[v] Termo informal e jocoso de falar do campo político de esquerda brasileiro, como forma de autocrítica, já que a autora se identifica como pertencente a este campo.
[vii] Temo comumente usado no meio protestante para se referir a pessoas evangelizadoras, que iniciavam novas igrejas, geralmente chamadas de congregações.
[viii] Bairro do Rio de Janeiro conhecido por reunir pessoas do campo político de esquerda, em especial do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).