FOTOGRAFIA E SOCIOLOGIA: AFINIDADES ELETIVAS

A Fotografia e a Sociologia surgiram quase ao mesmo tempo no século dezenove, a sociologia com o “Discours sur l’esprit positif” de Augusto Comte em 1844 e a fotografia em 1839 com a exposição pública de Daguerre sobre o modo de fixar a imagem em uma placa metálica. Depois disso, ambas seguiram percursos distintos: a fotografia procurou seu reconhecimento no campo da arte, já que a maioria dos primeiros fotógrafos eram pintores que não conseguiram triunfar nos salões e que viram na fotografia um meio alternativo de consagração artística. A sociologia trilhou caminhos que a levaram à sua institucionalização como ciência positiva, preocupada com a elaboração de grandes teorias, apoiando-se em técnicas e metodologias semelhantes às das ciências naturais, no período em que a obra de Émile Durkheim (1858-1917) foi paradigmática.

Embora tanto tempo tenha se passado e novas tecnologias tenham sido incorporadas, o estatuto artístico da fotografia ainda continua sendo objeto de discussões. Desde o seu início, a fotografia foi negada enquanto arte legítima, mesmo pelos pintores realistas. Por um lado ela foi, inicialmente comparada ao empiricismo, com a observação racional e com a “reprodução direta do natural”. Por outro lado, a partir do momento em que se simplificaram os procedimentos que permitiram a qualquer pessoa fazer fotografias, a “aura” que envolvia a fotografia e que lhe conferia um caráter elitizado, desapareceu.

Inicialmente como meio de autorrepresentação e substituindo a pintura de retratos, a fotografia foi se tornando uma indústria onipotente e tentacular, em grande parte devido à capacidade de expansão de algumas empresas como a Kodak, que colocaram no mercado todos os produtos necessários à prática fotográfica, com preços acessíveis a uma larga camada da população.

A fotografia converteu-se rapidamente em um instrumento para manipular necessidades, vender mercadorias e modelar pensamentos. Através de seu uso nas campanhas publicitárias, ela se constituiu em uma ferramenta fundamental de apoio ao processo de expansão das economias modernas. A sua capacidade de reprodutividade permitiu também democratizar a obra de arte, tornando-a acessível a praticamente todas as faixas sociais. A imagem é de fácil compreensão, e tem a particularidade em apelar às emoções e assim no seu imediatismo reside sua força, mas também o seu perigo.

Contudo, a fotografia serviu de ferramenta de análise social para muitos dos primeiros fotógrafos que construíram sua história. Uma boa parte deles dedicou-se à exploração de temas caros à Sociologia através de fotos. Exemplos disso, são Lee Frielander e Gary Winogrand que fotografaram comportamentos no espaço público, abordando algumas das gandes questões sociológicas tratados nas obras de Georg Simmel e na “dramaturgia” de Erving Goffman.

Fig. 1 - Gerda Taro
Fig. 1 – Guerra Civil Espanhola, Barcelona-Espanha, 1936. Foto: Gerda Taro.

A foto-reportagem ou foto-ensaio, surgida em 1920, gênero no qual foram precursores Eisenstaedt e Erich Salomon, confirmou a fotografia como instrumento de análise social. A fotografia mostrou imagens de sociedades longínquas, imagens que despertavam desejos e alargavam horizontes, mas trouxe também outras questões menos desejáveis. Robert Capa, fotógrafo da agência Magnum, e sua companheira Gerda Taro (fig. 1), foram precursores da fotografia de guerra, e portanto foi através de suas imagens que pessoas viram à distância cenas inéditas da Guerra Civil Espanhola, por exemplo. Ambos perceberam que a guerra é muito mais do que as batalhas: grande parte das suas melhores imagens retrata as periferias dos eventos históricos: as relações e as sociabilidades que se tecem em volta dos cenários de guerra. Fotógrafos como Dorothea Lange (fig. 2), Margaret Bourke-White, Russel Lee, Walker Evans foram financiados pela FSA (Farm Security Administration), um organismo estatal norte-americano para capturarem imagens dos problemas sociais da sociedade norte-americana, principalmente nas áreas rurais.

Fig. 2 - Dorothea Lange
Fig. 2 – Mãe migrante, Califórnia, Eua, década de 30. Foto: Dorothea Lange.

O fotógrafo suiço Robert Frank (fig. 3), elaborou um projeto ambicioso de conhecimento da sociedade norte-americana através de suas lentes (“The Americans”) entre 1955 e 1956, retratando suas mais profundas contradições: as discriminações raciais, as desigualdades sócioeconômicas etc. o que foi muito mal recebido pelos americanos, pois dava a conhecer realidades sociais incômodas. Robert Frank refletiu em seu trabalho as influências das teorias de Tocqueville, Margaret Mead e Ruth Benedict. Mais recentemente, Henri Cartier-Bresson destacou-se como um dos mais notáveis fotógrafos sociais. Ao “congelar” o instante decisivo em cada foto que fazia, retratou comunidades na Índia, as convulsões políticas na Rússia e na China, assim como ritos e cerimônias sociais, como as danças de Bali.

No entanto, a Sociologia despertou tardiamente para a imagem, os sociólogos clássicos confiaram demasiado na palavra. A Antropologia usou mais precocemente os meios audiovisuais nas suas pesquisas de campo. Contudo, a fotografia e o cinema etnográfico e documental foram usados como técnicas complementares para comparar e ordenar o registro cultural, completar as notas de campo e ilustrar o texto verbal. Alguns sociólogos dedicaram-se a investigações que envolviam a fotografia, estudando os seus usos sociais, assim como utilizando a câmera como ferramenta de análise social. Pierre Bourdieu foi um dos sociólogos que interessou-se pelos usos sociais da fotografia, notando que esta cumpre “funções sociais específicas”, ao “solenizar” e “eternizar” determinados acontecimentos de relevo social: cerimônias e ritos como os nascimentos, os casamentos, a primeira comunhão etc., a fotografia como um instrumento para guardar memórias.

Fig. 3 - Robert Frank
Fig. 3 – The Americains, década de 50. Foto: Robert Frank.

As questões aqui apenas esboçadas pretendem ser algumas pistas para um assunto que não se esgota tão facilmente, e os nomes de fotógrafas e fotógrafos aqui citados, são apenas alguns exemplos de precursores que de certa forma, investigaram com suas imagens, o campo social. A fotografia e a sociologia estão longe de terem plenas afinidades eletivas, título deste artigo, pois estão repletas de controvérsias, polêmicas mas também de convergências. A fotografia faz parte tanto da expressão do imaginário social, quanto das artes visuais, assim como serve de recurso metodológico enriquecedor da observação e registro das realidades sociais.

Nota: A expressão “afinidades eletivas” tem uma longa história que vai da alquimia, passando pela literatura romântica chegando às ciências sociais. É mais conhecida pelo título do famoso romance de Goethe de 1809. Nesta obra, as paixões determinam as atitudes das pessoas – de acordo com a visão de mundo do autor – e servem como alusão metafórica de elementos das ciências naturais e da química. O sociólogo Max Weber também utilizou esse termo na obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo” de 1905.

Referências:

Ferro, Ligia- Ao encontro da sociologia visual in Sociologia – Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005.

Goethe, Johan Wolfgang von – Les Affinités électives – Paris: Éditions Gallimard, 1980.

Martins, José de Souza – Sociologia da fotografia e da imagem- São Paulo: Editora Contexto, 2008.

ROBERT FRANK, O FOTÓGRAFO BEAT…

Robert Frank extraiu da América um poema triste diretamente para a película, cravando seu nome entre os grandes poetas trágicos do mundo”. (Jack Kerouac para o prefácio da primeira edição do  livro The Americans (“Les Americains”de 1958).

Fotografia e Sociologia nasceram quase simultaneamente no século XIX, e embora percorrendo trajetórias distintas, têm grande relação entre si, pois a fotografia serviu de ferramenta de análise social desde cedo, nas mãos dos primeiros fotógrafos que construíram a sua história.

Como exemplos,  Lee Frielander e Garry Winogrand que fotografaram comportamentos no espaço público como exemplos de fotógrafos que se dedicaram a abordar algumas das grandes questões da Sociologia, tratados nas obras de Georg Simmel e de Erving Goffman.

Também Robert Frank usou sua câmera no projeto de conhecimento da sociedade norte-americana, contribuindo para a visão “fraturada da sociedade americana”. Frank viajou pelos EUA entre 1955 e 1956, retratando as suas mais profundas contradições como discriminações raciais e desigualdades sócio-econômicas contrastando com os símbolos do patriotismo americano. Como se pode observar em suas fotos abaixo:

Obviamente seu trabalho foi muito mal recebido pelos norte-americanos, já que colocava a nu as questões mais candentes da sua sociedade. Em seu projeto, o fotógrafo refletiu as influências dos trabalhos de cientistas sociais como Tocqueville, Margaret Mead e Ruth Benedict.

Filho de judeus, Frank nasceu em 1924 em Zurique, na Suíça. Seu pai se tornou sem pátria após a Primeira Guerra Mundial e teve de lutar para conseguir cidadania suíça para Robert e seu irmão, Mandred. Apesar da família estar em segurança durante a Segunda Guerra Mundial, a ameaça nazista afetou Frank profundamente — e seu interesse por fotografia nasceu da vontade de expressar este sentimento. Para escapar do foco em negócios característico de sua família, treinou com alguns fotógrafos e designers até criar seu primeiro livro de imagens feito à mão, com 40 fotos (1946).

Um ano depois, Frank emigrou para os Estados Unidos. Foi morar em Nova Iorque, onde conseguiu um emprego como fotógrafo na Harper’s Bazaar, que logo deixou para viajar pelos continentes europeu e sul-americano. Retornou aos EUA em 1950, ano em que conheceu Edward Steichen, com quem participou da exposição coletiva 51 American Photographers no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) e se casou com a artista Mary Frank (antes Mary Lockspeiser), com quem teve dois filhos, Andrea e Pablo.

Ainda que sua visão inicial da sociedade e da cultura norte-americana fosse otimista, sua perspectiva mudou quando entrou em confronto com o acelerado ritmo de vida do país — o que interpretou como uma valorização exagerada do dinheiro. Frustrado, também, com o controle exagerado dos editores sobre seu trabalho, ele passou a ver os Estados Unidos como um lugar triste e solitário, o que se tornou evidente em sua fotografia.

Permaneceu viajando, mudou-se com sua família para Paris por um breve período e, em 1953, começou a trabalhar como jornalista freelancer para revistas como Vogue, Fortune e McCall. Sua parceria com fotógrafos como Saul Leiter e Diane Arbus fez com que se tornasse parte do movimento de vanguarda que a curadora Jane Livingston classificaria como “The New York School”.

Em 1955, sob influência do fotógrafo americano Walker Evans, que registrou os efeitos da Grande Depressão de 1929 no país, Frank conseguiu uma bolsa para viajar pelos Estados Unidos e fotografar todos os estratos de sua sociedade. Visitou cidades como Detroit, Miami, Reno, Utah e Chicago, quase sempre acompanhado de sua família. Ao longo de dois anos, e sempre de carro, tirou mais de 28 mil fotos. Oitenta e três delas foram selecionados para o livro The Americans.

O fotógrafo passou a ser atraído não simplesmente por objetos e personagens concretos (bandeiras, cowboys, motociclistas, jukeboxes…), mas pelo sentimento que esses transmitiam. O que o atraía em hotéis era a solidão, a melancolia das luzes noturnas, o isolamento das pessoas sentadas em paradas de ônibus. Suas fotos, embora muitas vezes passem a idéia de movimento, são imagens estáticas, congeladas, de personagens imóveis. Recurso, segundo Frank, essencial para uma boa fotografia: “A foto é tanto mais interessante quando nos faz pensar no que aconteceu antes e no que acontecerá depois.

Com a publicação, Frank se tornou um dos principais artistas visuais a documentar a cultura Beat. No retorno a Nova Iorque, conheceu Kerouac e Allen Ginsberg, afinado com seu interesse em registrar as tensões entre o otimismo da década e a realidade norte-americana, cheia de contrastes como as diferenças entre classes e as tensões raciais. Frank captou essa ironia com imagens contrastadas e enquadramentos e focos pouco tradicionais.

Na época do lançamento da obra, Frank abandonou a fotografia para se concentrar em fazer vídeos. Em seu portfólio está o curta Pull My Daisy (1959), escrito e narrado por Kerouac e estrelado por Ginsberg e outros poetas. Seu filme mais famoso é Cocksucker Blues, um documentário sobre a turnê mundial dos Rolling Stones de 1972. Quando viu o resultado, Mick Jagger falou: “É um filme muito bom, Robert, mas se você mostrá-lo nos Estados Unidos, nunca mais vai poder entrar no país novamente”.

Robert Frank faleceu no ano passado, em setembro de 2019, e em seu legado consta a contribuição que deu ao Movimento Beat, cruzando os Estados Unidos com Jack Kerouac que foi um de seus companheiros da viagem à Flórida, em 1958.

O fotógrafo e curador Jim Casper fez o seguinte comentário sobre a frase de Kerouac que abre esta edição: O texto do mais icônico escritor da Geração Beat complementa perfeitamente as imagens, ainda que forte e poderoso, é triste e inocente, como o Jazz dos anos 1950.

É sempre a reação instantânea a si mesmo que produz uma fotografia.” (Robert Frank)

Referências:
FERRO, Lígia (2005), “Ao encontro da sociologia visual” in Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, n.º 15, pp. 373-398.

 

 

Izabel Liviski é Fotógrafa e Professora, doutora em Sociologia pela UFPR. Pesquisadora de História da Arte, Sociologia da Imagem e da Cultura, e Relações entre a Literatura e Linguagens Visuais.  Escreve a coluna INcontros desde 2009 e é também co-editora da Revista ContemporArtes.