A TORRE DE BABELÔNIA (Afonso Guerra-Baião)

Vencida a última duna do deserto, chegou a Babelônia a caravana dos mineiros que iam perfurar a abóbada celeste. Desapeados dos camelos e dos dromedários, os homens descarregaram as ferramentas do lombo dos onagros e se dirigiram para o acampamento ao pé da Torre. Lá se confraternizaram com os pedreiros que tinham terminado sua construção, depois de séculos de trabalho e gerações de trabalhadores.

Afinal a Torre ultrapassara as esferas concêntricas de cristal sobre as quais giravam, ao redor da Terra, as estrelas e os planetas. Erguida para além dos astros, a Torre alcançara a abóboda celeste, que cabia agora aos mineiros perfurar. Convocados para o supremo desafio, dependia deles a realização do sonho último dos homens: adentrar os campos do Senhor.  No acampamento ao pé da Torre, nos preparativos para os meses de escalada, Aegon, o chefe dos mineiros, conversou com um dos sábios que os assistiam.

– Porventura, não será contrário ao desígnio divino esse avanço para além dos limites do degredo terrestre? –  perguntou Aegon.
– Devemos usar os talentos que o Senhor nos deu, para ir ao seu encontro – respondeu o sábio.
– Ainda assim, a volta ao paraíso perdido, não significa um desafio à Lei?
– O ser humano foi feito para buscar o paraíso.

Aegon e seus mineiros escalaram a Torre de Babelônia, degrau por degrau, ao peso das ferramentas com que, pela primeira vez, escavariam para cima. Pelos postigos e ventanas, eles viam a cidade, os campos e os desertos como formas cada vez mais distantes, progressivamente diluídas nas névoas, até que tudo foi encoberto pelas nuvens. Meses depois, no cume da Torre, os mineiros tocaram com as mãos o cristal de gelo da abóbada, pouco acima de suas cabeças.

Começaram com pequenas perfurações e foram aumentando o túnel, primeiro verticalmente, depois abrindo galerias horizontais. Sempre escavando, para cima e para os lados, os mineiros deixaram a Torre e enveredaram pelo mundo de cristal da abóbada, através da rede de passagens, do labirinto de túneis que produziam com incessante trabalho. Muito próximos no começo, os mineiros foram se dispersando, cada um ampliando uma ala, aprofundando um corredor, até que pouco se viam ou se falavam.

 

Ilustração: Igor Morski

 

Assim, avançado na perfuração de um duto, Aegon sentiu que encontrara o ponto fulcral, a passagem que todos buscavam no cristal gelado da abóboda. Soube disso quando um bloco cedeu e ele viu a luz do sol depois de tanto tempo. Esgueirou-se pelo buraco e saiu ao ar livre, pisando em chão de areia e terra; viu o verde das palmeiras, sentiu a brisa que as balançava, bebeu da límpida água de um oásis.

Descansava ali, à sombra, antes de voltar para chamar os companheiros, quando ouviu um tropel e depois vozes. Uma caravana chegava. Os homens corriam para os poços, bebiam, enchiam os odres, davam água às montarias e aos burros de carga. Então, ao ver Aegon, um deles, que parecia ser o chefe, lhe perguntou:  

– Seu camelo morreu? Quer juntar-se à nossa caravana? 

– Para onde vão? – perguntou o mineiro.
– Vamos trabalhar na construção da Torre.
– Que torre? – indagou atônito Aegon.
– Então não sabe? A Torre que vai dar no céu!

P.S. Escrevi esta narrativa como paráfrase a um conto de Ted Chiang, que faz parte do livro “História de sua vida e outros contos” (Editora Intrínseca), cuja leitura aproveito para recomendar.

*Afonso Guerra-Baião, é professor, escritor e tradutor. Publicou recentemente SONETOS DE BEM-DIZER / DE MALDIZER, Aldrava Letras e Artes, Mariana, 2019.