Neste momento me pergunto se as notícias de horror de outros países, que são apresentadas aos europeus, não serviriam também como uma forma de propaganda, como uma forma de construção da sua própria identidade.
Esta situação já foi discutida na literatura especializada quando da questão da representação do outro. Da representação do “outro pecador” na Idade Média, na representação do “outro selvagem” no Renascimento, na representação do “outro primitivo” na era Moderna… e por aí vai.
Esta ideia vem lá dos gregos, onde o “outro não grego” era definido como “bárbaro”. Por muitas vezes, as características deles eram negativas, como um reflexo contrário daquele que as descrevia, construindo e definindo assim a sua própria identidade no anti-exemplo. Alguns trabalhos acadêmicos identificam a continuidade deste fenômeno na cultura europeia ocidental.
E hoje? Qual seria hoje o anti-exemplo? Me vem rápido, como brainstorming, valores caros como a democracia, a liberdade de expressão, a liberdade de ir vir, a igualdade das mulheres e dos homossexuais, o direito à diferença, à escolha ter ou não ter religião, a criminalização do racismo, entre outros…
Vai aí por esse caminho, ainda que seja uma ideia vaga. Mas tentei listar as coisas que um Estado totalitário, ou um Estado de extrema direita, ou um Estado religioso (ou um Estado que juntasse tudo isso) negaria ao seus cidadãos. São, a grosso modo,temas de boa parte das notícias que recebemos nos jornais, notícias da Turquia, da China, Coreia do Norte, da Venezuela, da Rússia, do Brasil e de muitos outros países fora deste círculo europeu ocidental.
No mundo civilizado não se morre de fome, não há crianças nas ruas, todos os cidadãos têm seus direitos e existência garantidas, não há criminalidade. É um paraíso! Me vem na cabeça rapidamente a Suíça, sim um paraíso fiscal! disfarçado de Estado exemplo de civilização. É, pois é…
E neste momento eu penso, adianta que a “Europa” (Aqui como algo abstrato, uma ideia de civilização) saiba do que acontece neste mundo? Será que eu deveria ainda pensar – e acredito que não estou sozinha – que o fato de certas notícias chegarem até aqui é, de alguma forma, positivo???
No momento a minha resposta para isso é negativa. Um humorista alemão Nico Semsrott definiu ironicamente o alemão: O alemão é um “capitalista humanista”, o que quer dizer: “Ele explora os outros países, mas se sente mal por isso”.
Esta definição serve para esta minha Europa abstrata (serve para nós brasileiros serve para muitos, mas não é o tema agora). Com ela percebo uma pista de que pouco mudará no que depender dos que estão deste lado. No lado dos ganhadores…
Aí me pergunto mais uma vez que: O que faz com que um jornal noticie as barbáries do mundo? Levar a população a algum movimento que realmente mude algo, parece que não é.
Eu até hoje não vi nenhuma destas notícias e documentários da “grande mídia” mostrarem a fundo o vínculo da Europa com a desgraça que eles denunciam. Eu nunca vi nenhum deles comentarem sobre a responsabilidade da Europa sobre nada que acontece no mundo, ao contrário, quem o faz pode ser desmoralizado é tratado como inimigo… Como aconteceu numa TV estatal com Michael Lüders, autor do livro Wer den Wind sät: Was westliche Politik in Oriente anrichtet (Quem semeia o vento: o que a política ocidental provoca no Oriente).
Fica então mais forte esta impressão de que o que leva um jornal a denunciar as desgraças do mundo não europeu passa pela continuidade da tradição cultural europeia em reafirmar seus valores e identidade no anti-exemplo, como uma propaganda sutil, aceita sem resistência por ser quase subliminar. “A vida, a realidade deste lado de cá é muito boa, prova da superioridade e inteligência e capacidade desta civilização…”