Massacres

A manchete afirmando que um sem-teto (desarmado) tinha praticamente esquartejado um policial (do batalhão de choque) foi meu primeiro contato com o Beto. Sorte minha não ter parado nela. Só assim pude conhecer um pouco a odisseia que levou o homem ao seu dia de chacrete do Datena. E, infelizmente, a um lugar chamado Carandiru.

O sonho de Reginaldo era morrer na sua Maranguape. Pelo menos era o que dizia. Talvez se a fome não fosse um de seus parentes mais desavexados, daqueles que aparecem sempre na hora da refeição, o cabra dissesse que o sonho dele era viver na sua Maranguape. Mas para quem tinha quase nada – morrer já estava bom.

Às vezes, quando o sol ardia de esfumaçar sonho em nuvem, Luiz aventava uma fuga para o sul. Mas o vento logo se tornava brisa. Era só ele se lembrar do conterrâneo mais famoso, o professor Raimundo; mesmo com gravata, diploma e televisão, acabava a aula desfazendo do próprio ordenado: e o salário, ó.

Que chance então tinha um João que mal chegava à segunda letra do sobrenome?

Um dia, porém, a fome apertou demais o nó que ele cultivava na garganta. Ah, se as batatas crescessem como aquele nó! Chico pediu licença ao professor, desligou a tevê, botou a família numa trouxa e rumou na esperança. Avisou ao vizinho que fizesse o mesmo, antes que cercassem o sertão com um muro, e ele não pudesse mais sair de lá.

Não falta doutor por aí achando que uma parede vai impedir a cozinha de achar a sala. Impede nada. Continua todo mundo sob o mesmo teto.

Antônio e os seus não ficaram mais que uma semana enfeando a ponte – o pedaço de concreto mais bem protegido da capital, depois do palácio do governador. Uma fulana indicada por um compadre os apresentou à sua casa nova: um barraco no meio de um matagal onde, anos atrás, funcionara uma fábrica de piscinas de fibra.

Aluguel adiantado.

Adiantando a história também: era madrugada ainda quando a polícia surgiu para desocupar o terreno da antiga fábrica, em cumprimento a um mandado de reintegração de posse. Não sobrou casa em pé, mas sobrou para o Zé, preso por tentativa de homicídio. Com os quatro dentes que lhe restavam, por uma lasca não arrancou o nariz inteiro do soldado que conduzira, coercitivamente, sua mulher até o chão.

A manchete afirmando que um sem-teto (desarmado) tinha praticamente esquartejado um policial (do batalhão de choque) foi meu primeiro contato com o Beto. Sorte minha não ter parado nela. Só assim pude conhecer um pouco a odisseia que levou o homem ao seu dia de chacrete do Datena. E, infelizmente, a um lugar chamado Carandiru.

Dado o título desta semifábula, não é difícil imaginar o resto. O sujeito que tanto sonhou virar pó na cidade natal virou estatística, um dos fins mais indignos para qualquer ser humano. Geraldo não havia sido julgado e, ainda assim, foi condenado a uma pena não prevista na lei. Acabou como um dos cento e onze detentos mortos em meia hora, a maioria com tiros na cabeça e no pescoço, na chacina que, segundo a mais recente decisão da justiça (sic), não existiu.

E, como a ironia não tem limites, quem esmiuçou o noticiário na última semana descobriu que aquele mesmo terreno, o da antiga fábrica de piscinas de fibra, voltou a ser invadido: agora por um senador de cabelos e passado grisalhos, que o incorporou ilegalmente à área de seu shopping center, a fim de ampliar o estacionamento.

Só que, desta vez, não há previsão de uma nova reintegração de posse, nem policiais de prontidão para reestabelecer a ordem. Há apenas uma nota no rodapé do jornal.

P.S.: Texto originalmente escrito em setembro de 2016, mas ainda e infelizmente atual.

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É autor de "Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa" (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.

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