Em 2009, no meu aniversário de 18 anos, um irmão mais velho – que é, na verdade, o irmão mais velho do amigo mais velho que tenho – me deu o Cartas a um jovem poeta, do Rainer Maria Rilke. Eu, àquela altura – e ainda hoje – “um bicho da terra tão pequeno”, li todas as cartas do “poeta mais atual e permanente do nosso tempo” – segundo Carpeaux. Li todas, mastiguei algumas, engoli outras, digeri poucas e vomitei o resto. Depois, num exercício ruminante, intercalado por reações bovinas, fui moendo a matéria repetida – ainda que nunca a mesma – daquelas considerações tão acertadas, tão generosas e francas.
Ao fim de uma carta escrita em 23 de abril de 1903, como resposta a um pedido de Franz Xaver Kappus, Rilke, por sinceridade ou perspicácia – ou pelos dois – escreveu:
Por fim, no que diz respeito a meus livros, adoraria lhe enviar todos os que poderiam trazer alguma alegria para o senhor. Mas sou muito pobre, e meus livros não me pertencem mais, desde que foram publicados. Eu mesmo não posso compra-los e, como gostaria de fazer com frequência, dá-los para as pessoas que lhes demonstrariam afeição.
Sem aviso, o trecho me apareceu em maio, quando, com a publicação do Além da Terra, Além do Céu – Antologia de Poesia Brasileira Contemporânea – Vol II, pela Chiado editora, “faltava-me o recurso”. O poema, “Título”, feito para um antigo mestre, foi parar nas vistas do homenageado em A4.
Por essa altura, conheci os poemas de Olga Maria Beker: primeiro, o “Cabeça de cavalo”, publicado na antologia da Chiado; depois, o Mixtape, livro que saiu pela editora independente Poemato, em 2016. Contando com 60 poemas, a “compilação de canções” se divide em três temas ou partes: 1) “O livro do toillete”, com “poemas feitas na cagada e alguns versos de merda”, segundo a poeta; 2) “O livro da dona de casa”, com versos que buscam por “um quarto que seja seu, um teto que seja – inteiro, completo – seu”; 3) “O livro da mãe”, revelando um outro lado da “poética bekeriana”, o lado B, de tons mais fechados, rondando por entre as “receitas e modos de preparo”, sem perder o toque satírico, sarcástico, irônico.
Selecionei algumas das minhas “canções” favoritas – levando em consideração o que há de mais emblemático em cada um dos “livros”, dos “temas” – para apresentar como nota e convite. O caso pode parecer curioso, pode parecer estranho, mas vai além da estranheza e curiosidade. Olhe de perto!
O livro do toillete
dedicatória à moda de prefácio
escrevo esses poemas cagando
para norma minha querida
sempre constipada sempre
ressecada
como diria minha avó
seca de não aliviar nunca
o êxtase de sábado
deixo
sobre o cesto
ao lado da privada
livros de poesia
sento-me como a estátua de rodin
pensativa corcunda
abro um dos volumes
leio o primeiro verso
o segundo a estrofe
leio um vago no silêncio do poema
há qualquer coisa que me chega
toma de assalto meu jeito meu gesto
minha vontade
por um instante me anula e me devolve
livre
como um lugar desabitado
como um terceiro lado
à margem
arte à manzoni
dia desses
tive que limpar o excesso
com um poema solto
apertei sobre a pele macia o papel áspero
dobrei-o com esmero
repassei o verso
a folha
conferi uma última vez
(antes do descarte)
aquela arte à manzoni
li
uma última vez
a parte final
“que não sei dizer”
paradília
(fragmentos)
escrever um poema é como
dentre muitas coisas
administrar um peido
precisar o momento exato da
armadilha quando o cálculo
mal feito pode levar
repentinamente
a um estrondo
à deselegância do excesso
ao constrangimento
pode arrebatar de nós a satisfação
meticulosa e silente do sopro
da ação medida com decoro
1.
primeiro é preciso romper
nunca geri assim um peido
mas posso dizer assim
com toda cautela
posicionar um dos lados
favorecer
um furo uma falha
antecipar mentalmente a pressão
verificar a envergadura
a inclinação
o tronco
2.
sei bem que nem tudo que vem à prega
é peido
3.
o ar se revolta
avança recua some
solta um ruído à beira
ou ficamos os dois no ferrolho
ou nos livramos os dois
4.
Esclarecendo que
como luiza disse
é um duelo agudíssimo
5.
não é uma questão de vida ou morte
mas o corte impreciso frustra mutila
esvanece
(…)
O livro da dona de casa
arte patética
às vezes
finjo ser a poeta que finge
ser eu
poema com a mão esquerda
saber a casa é um ombro a curvar e a tremer
um coração a saber o próprio pulso
a certeza de ter uma pena
a mão
de um corpo em queda
títulos maravilhosos para poemas
sem razão como são as pessoas
com nomes maravilhosos
sem ritmo algum
exercícios de natureza-morta
frutas louças instrumentos
musicais flores livros taças
de vidro garrafas jarras
de metal porcelanas
frágeis flores fundos pratos
ponto cruz
há uma larga diferença entre
não acreditar em deus e acreditar
que deus não existe
uma largura imensa
eu mesma
não acredito em deus
escuto por simpatia
pelos anos ininterruptos de amizade
por aquela tarde no dia das crianças
no jardim
cabeça de cavalo
num poema de nome estranho
a poeta disse que não há maior beleza
do que a beleza do que
não tem futuro
eu sei que é duro eu sei
mas o sentido da vida é não ter sentido a priori
e até que a poeta melhore dessa foça
seguirá pensando em homens geniais
de bigode morrendo aos cuidados da mãe
O livro da mãe
diário ínfimo
achei os retalhos antigos de um diário seu
deitado à margem do livro de receitas
ao lado dos ingredientes e dos modos de preparo
achei ali uns rabiscos
datados e quase ilegíveis
daquele último ano
que era todos os anos à espera de não mais
achei na leitura de cada tira uma letra sua
no beiral desse livro outro também de receitas
que é a minha figura atulhada de ingredientes e de modos
de preparo
BAKER, Olga Maria. Mixtade. Nova Lima: Poemato, 2016.
[…] Toda a gente que eu conheço – ou que penso que conheço –nunca teve um preconceito, nunca cometeu uma injustiça,nunca fedeu a carniça quando, num dia quente, esqueceu o desodorante,nunca foi senão infante – todos eles príncipes – mártiresna vidaQuem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?Que mandou à puta que pariu sem ter porquê, que trocou o canal daTV por implicância, que, por ganância, entrou na fila outra vez…Ó sofredores, injustiçados meus irmãos,Onde é que a gente na gente?Olga Maria Baker | MIXTAPE […]