Um boneco de barro despertado pelo sopro divino seria a origem de nossa espécie, e desde então o imaginário humano cria narrativas que envolvem seres inanimados, mecânicos ou cibernéticos com aparência semelhante à nossa e que adquirem, ou têm, vida e consciência, Pinóquio e o robô C3P0 são exemplos, mas as lendas, mitologias e a ficção científica estão repletas de outros. Uma característica destes seres é que terminam se assemelhando aos humanos que os criaram, física e espiritualmente.
As bonecas com que as meninas brincavam reproduziam bebês a serem cuidados ou amigas “confidentes” participantes de seus jogos. O século vinte trouxe uma nova modalidade de boneco, as figuras charmosas que requerem toda uma parafernália de roupas, sapatos, maquiagens, até carros e lanchas, caso da boneca Barbie e sua antiga versão brasileira, Suzy. Os meninos não foram esquecidos, e brindados com bonecos heroicos, militarizados, com armas e veículos.
Criam uma expectativa inatingível, as medidas da boneca Barbie nem de longe se assemelham às de mulheres normais, e sequer das supermodelos; já houve casos extremos de mulheres que se submeteram a cirurgias para remover algumas costelas e assumir o perfil de sílfide da boneca, com mau resultado estético e prejuízo à própria saúde.
Se antes julgávamos ser ideais para nossos replicantes – Pinóquio queria ser menino, todos os robôs da ficção quando adquirem consciência a têm imitando a nossa, a criatura do doutor Frankenstein se destrói por não ser aceita pelas pessoas – agora nosso desejo parece ter se transferido para a imitação do que deveria ser nossa imitação. Criamos modelos e atribuímos a eles as qualidades físicas, intelectuais e morais que gostaríamos de possuir, e perseguimos essas imagens idealizadas e alcançáveis apenas na imaginação.
Isso não é novo, em psicanálise denomina-se projeção, existe desde a antiguidade com o mito do herói, com os deuses dos panteões grego e romano, com toda a imensa quantidade de ídolos de teatro, literatura, cinema, música, sobre os quais são depositadas as aspirações de multidões; ocorre até mesmo com figuras da política. O novo, talvez revolucionário, é que agora o avatar pode ser comprado para nossos filhos e filhas em uma loja, vestido e equipado a um custo proibitivo e habitar nossa casa, estabelecendo um padrão que jamais será alcançado.
Meninas, por exemplo, ainda na fase em que aprendem a andar e falar estão destinadas a receber presentes que são verdadeiros manuais de boas maneiras, um convite para participar de atividades educativas – como ser uma boa mãe, amiga e perfeita – ou bonitas, simplesmente, como ser solidária, gentil e meiga.
É como se abríssemos para ela as portas de um mundo fashion, em que aprenderá a portar-se como uma jovem atraente e charmosa, e o veredito de que será responsável por sua própria aparência, mesmo que isso custe um imenso sacrifício pessoal. Afinal, como diz a propaganda da boneca Barbie, “você pode ser tudo o quiser”, claro que desde que seja magra, linda e vencedora.
A cada novo aniversário ou Natal, vamos transformando nossas meninas em maravilhosas bonequinhas, que as publicações voltadas à infância e juventude feminina irão aperfeiçoando, com muitos apelos do mercado cosmético e da medicina estética, que oferecerão modos de compatibilizar-se com o padrão de beleza vigente, e auxílio, mais tarde, na luta contra o envelhecimento. Ser admirada, ter muitos seguidores, receber muitos likes, ser deslumbrante é o oxigênio indispensável ao imaginário feminino desde a mais tenra idade.
Crianças e jovens não consomem apenas mercadorias, mas também indícios das formas de ser e estar no mundo que esperamos deles; e isso não é um mal, pois são exatamente estas experiências sociais que formatam a personalidade, que permitem sua expansão ou contenção, e o fato de serem sinceramente amadas é que fará toda a diferença quanto ao significado do presente em sua formação.