Violência no campo, sul e sudeste do Pará

Fonte: MST. Data: 14/12/2017.

Violência no campo, sul e sudeste do Pará

Airton Pereira

No sul e sudeste do Pará, na Amazônia oriental brasileira, a problemática da violência tem sido uma prática recorrente no campo nos últimos quarenta anos. À medida que fazendeiros  e empresários do Centro-Sul do Brasil passaram a adquirir grandes extensões de terras, nessa parte do território amazônico, a partir do final da década de 1960, com apoio político e financeiro do Estado, povos indígenas e camponeses passaram a ser diretamente impactados.

O Governo do Pará e o Governo Federal venderam, a preços muito baixos, enormes extensões terras para a iniciativa privada e a conceder-lhes créditos subsidiados e incentivos fiscais para que fossem implantadas fazendas para a criação de gado bovino. Empresas como o Bradesco, o Bamerindus, a Nixdorf, a Volkswagem, a Andrade Gutierrez, entre outras, adquiriram terras e recursos para criar bois. Mas, famílias tradicionalmente proprietárias em Minas Gerais, em São Paulo e no Paraná também adquiriram terras nessa parte da Amazônia. Os Lanari do Val e os Quagliato, por exemplo, conseguiram enormes extensões de terras. Enquanto os Quagliato passaram a deter cerca de 160 mil hectares de terras, João Lanari do Val, se apropriou de 80 lotes de 4.356 hectares cada, totalizando 348.480 hectares, formando, assim, a Companhia Mata Geral (PEREIRA, 2015).

Só para se ter uma ideia, dos 1.199 projetos aprovados pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), para serem implementados nos anos que transcorreram entre 1975 e 1989, no estado do Pará, por exemplo, 638 eram destinados à criação de gado (IDESP, 1990). Em 1980, 59 áreas com projetos agropecuários destinados, prioritariamente, à criação de gado bovino, implantados com recursos da SUDAM, num valor de dois bilhões de cruzeiros, no sul do Pará, já ocupavam 4,5 milhões de hectares de terras, mais do dobro da área do estado de Sergipe (PINTO, 1982).

Como consequência desse processo desencadearam os intensos e violentos conflitos pela posse da terra. Os povos indígenas como os Kayapó, os Xikrin, os Karajá, Kýikatêjê, Parkatêjê, Akrãtikatêjê, Suruí Aikewara, Parakanã, etc. não só perderam parte de seus territórios, mas viram reduzir a sua população em razão dos assassinatos e das doenças como a gripe, o sarampo entre outras. Por outro lado, milhares de camponeses também foram expulsos de suas terras e assassinados ou submetidos à prática de trabalho escravo. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 1970 e 2017, cerca de 990 trabalhadores rurais foram assassinados no estado do Pará em razão da problemática em torno da terra. Entre esses assassinatos estão diversos casos dos massacres, na maioria das vezes praticados com alto requinte de crueldade. Entre 1985 e 2017, segundo os dados da CPT, ocorreram 45 massacres no Brasil, sendo que 8, com 34 vítimas, aconteceram no Centro-Sul do Brasil e 37 casos, com 180 vítimas, sucederam-se na Amazônia. Só em 2017, ocorreram três grandes massacres de trabalhadores rurais na Amazônia: Pau D´Arco, no Pará (10 mortos), Colniza, no Mato Grosso (9 mortos), e Vilhena, em Rondônia (3 mortos). O Pará é o estado com o maior índice de massacres registrados pela CPT, contabilizando 26 casos, com 125 vítimas. Em 2016 ocorreram seis assassinatos no Pará. Em 2017, foram 21, com aumento de 350% em relação a 2016.

Mas o recrudescimento dos conflitos por terra e da violência no campo, na Amazônia brasileira, nos últimos anos pode estar relacionado diretamente com o recuo da política de reforma agrária pelo Governo Federal e ascendência das forças conservadoras no campo a partir de meados de 2016. Talvez, mais do que em qualquer outra época, o governo central tem procurado satisfazer os interesses dos grandes proprietários e empresários rurais como ficou latente nos acordos que a presidência da república estabeleceu com a bancada ruralista do congresso nacional quando procurou escapar das acusações de prática de corrupção. Ou seja, o que temos presenciado é uma ofensiva política no campo com a retirada de direitos dos trabalhadores rurais, de quilombolas e de povos indígenas indo da alteração na Constituição Federal ao desmonte do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e da Ouvidoria Agrária Nacional. São órgãos que, embora existindo oficialmente, perderam a capacidade de intervir no campo e realizar uma reforma agrária efetiva e popular.

Porém a manutenção da grande propriedade da terra pode significar também a manutenção do status e do prestígio social e político do grande produtor rural no Brasil. Ou seja, a propriedade privada da terra aparece aos olhos dos grandes proprietários como direito incontestável, eterno e absoluto, sendo uma forma segura de se criar riqueza e obter reconhecimento político e prestígio social.

No sul e sudeste paraense, a emergência dos trabalhadores rurais, com as suas reivindicações, colocando-se na cena pública como iguais, como portadores de direitos, implica que os proprietários de terras tenham que aceitar outro interlocutor, isto é, os trabalhadores rurais. Significa dizer que eles têm de reconhecer um “outro”, abrir espaço para a negociação e colocar em “risco” esses privilégios e a capacidade de mando que se assenta sobre a propriedade da terra. Contrapor às ocupações e às desapropriações de seus imóveis é, de certa forma, uma das maneiras que os latifundiários têm de assegurar os seus privilégios e o status social e político na região. Nesse sentido, não têm bastado os constantes despejos de trabalhadores rurais sem-terra, anos a fio, praticados pela Polícia Militar (PM), às vezes secundados por pistoleiros e, muitas vezes, de maneira ilegal e abusiva. Em 2017, mais de 2.000 famílias de trabalhadores sem-terra (cerca de 8 mil pessoas entre homens, mulheres e crianças) foram despejadas pela PM na região. Muitas casas, escolas, depósitos de cereais e plantações foram totalmente destruídos. Com o despejo, as famílias ficaram ao relento e privadas de sua principal fonte de produção de alimentos, que é a terra, e os seus filhos, em alguns casos, acabaram perdendo o ano letivo.

Fonte: MST. Data: 14/12/2017.

O sul e o sudeste do Pará são também duas das regiões com maior incidência de trabalho escravo. Estamos em pleno século XXI e temos ainda que conviver com essa prática vergonhosa, desumana, antiética e imoral. Essa prática é uma lesão à sociedade e uma vergonha para o País. Como podemos aceitar esta prática em duas das regiões mais rica do Estado? Segundo os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 1995 e 2017, 52.455 trabalhadores escravizados foram libertados no Brasil. Destes, 13.175 foram no estado do Pará (25,1%). Em 2017, de acordo com a CPT, 73 trabalhadores foram libertados da escravidão no Pará.  57, destes 73 trabalhadores, estavam submetidos aos trabalhos forçados e degradantes em fazendas de criação de bois no sul e sudeste do estado.

O que se percebe é que grandes fazendeiros que negociam diariamente as suas ações nas bolsas de valores no Brasil e no exterior, que utilizam da alta tecnologia na produção e reprodução de seu rebanho e são defensores da competitividade, utilizam-se da violência e de um dos métodos mais arcaicos para aumentar o seu lucro, que é o trabalho escravo. Há uma simbiose entre o novo e o velho. As designações latifundiários e empresários são complementares, não opostas, porque ambas inscrevem-se em um mesmo espaço de referências e de significações; englobam a improdutividade, o trabalho escravo, o crime ambiental, a violência e o lucro. São práticas que se instituem onde velhas e novas formas de dominação convivem sem maiores escrúpulos. Conforme Regina Bruno (2002), podemos de certa forma afirmar que atrás do agronegócio esconde-se o latifundiário; atrás do banqueiro e da indústria organiza-se os sindicatos de produtores; atrás das sociedades anônimas decidem os clãs familiares; atrás do rei do gado flagra-se o pistoleiro. Atrás do discurso moderno dissimila o conservador.

 

Referências

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA – CPT/CAMPANHA NACIONAL DE PREVENÇÃO E COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO. Estatística 2017. CPT: 2017.

BRUNO, Regina Ângela Landin. O ovo da serpente. Monopólio da terra e violência na Nova República. Campinas: UNICAMP, 2002. 316 p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, 2002.

INSTITUTO DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO-SOCIAL DO PARÁ – IDESP. Estatísticas Especiais: Produto Interno Bruto do Estado do Pará: 1975-1987. Belém: IDESP, 1990

PEREIRA, Airton dos Reis. Do posseiro ao sem-terra: a luta pela terra no sul e sudeste do Pará. Recife: Editora UFPE, 2015.

PINTO, Lúcio Flávio. Conflitos de terras no Sul do Pará. Reforma Agrária, Campinas, v. 12, nº 02, março/abril, 1982, p. 03-12.

 

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Airton dos Reis Pereira é graduado em História (2000), pela Universidade Federal do Pará (UFPA); mestre em Extensão Rural (2004), pela Universidade Federal de Viçosa (UFV); e doutro em História (2013), pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Filho de camponeses migrantes de Minas Gerais, foi posseiro e agente de pastoral da Diocese de Conceição do Araguaia e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no sul e sudeste do Pará. Atualmente é professor Assistente IV, do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade do Estado do Pará (UEPA), Campus de Marabá. É também professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (PDTSA), da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). É autor do livro “Do posseiro ao sem-terra: a luta pela terra no sul e sudeste do Pará” (Editora da UFPE, 2015) e possui diversos artigos publicados em revista e em jornais de circulação regional, nacional e internacional.

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