Diversidade de Verdade
Maria Clara Sampaio
No primeiro dia do mês de fevereiro de 2018, vejo pelo facebook que uma aluna da Faculdade de Direito (Fadir) da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), comemorava o registro da Associação dos Discentes Indígenas e Quilombolas da Unifesspa (Adiqui). Nas imagens, por trás do sorriso dela e de cerca de uma centena de “curtidas”, existe uma história de solidariedade e de lutas.
Esta aluna da Fadir, proveniente de uma comunidade quilombola, havia cursado a disciplina de História do Direito, que ministrei logo que cheguei em Marabá-PA. Para além dela, tive a oportunidade de ver em minha sala de aula outros estudantes indígenas e quilombolas. Logo, muitos desses estudantes se tornaram meus amigos e me incluíram em seus processos de luta pela permanência na universidade.
Os desafios acadêmicos para estudantes quilombolas e indígenas, depois compreendi melhor, transcendiam aquelas dificuldades comuns que as novas gerações de universitários enfrentam. Os estudantes indígenas com os quais tive contato na Unifesspa nasceram e se criaram falando suas línguas e, frequentemente, dominam também outras línguas indígenas. Falar português, portanto, envolve necessariamente aprender uma segunda ou uma terceira língua. Mais que uma língua diferente, aprender o português é aprender um modo de pensar e de ver o mundo que é sempre muito diverso daquelas realidades das quais esses jovens fazem parte.
A experiência da universidade, para qualquer calouro ou caloura, prescinde sempre de um enorme esforço de adaptação a diferentes regras. A linguagem acadêmica e a configuração da transmissão – e da construção – de conhecimento requer de todos os graduandos e graduandas empenho para se aclimatarem às novas linguagens e modos de refletir. Mas, para os estudantes indígenas o aprendizado na universidade envolve, muitas vezes, negar algumas de suas formas de pensar e de interagir. Coisas muito cotidianas para a maioria dos universitários e universitárias são percebidas como contraditórias àquelas práticas culturais das quais indígenas e quilombolas vieram. Na universidade e na cultura acadêmica o que vale é a palavra escrita, enquanto em comunidades indígenas e quilombolas a palavra falada fundamenta muitas das trocas sociais. Nessas comunidades, a valorização da oralidade na transmissão de valores e conhecimentos faz parte de uma cosmovisão que é continuamente refutada pela forma como classificamos os saberes no universo acadêmico. A menor importância que se dá, portanto, à palavra falada, em detrimento da palavra escrita, seja talvez um dos desafios iniciais mais importantes que esses estudantes precisam vencer.
Para além dos desafios impostos por uma cultura acadêmica que comumente contradiz os saberes de suas comunidades de origem, os discentes quilombolas e indígenas da Unifesspa iniciam suas experiências universitárias sempre distantes de suas famílias e comunidades. O registro oficial da Adiqui, assim, representa uma história de redes de solidariedade que esses alunos e alunas vêm formando para se inserirem no mundo universitário não apenas como indivíduos, mas como parte de uma comunidade que eles sempre sentem que devem representar.
Ministrar aulas para estudantes indígenas e quilombolas, assim, envolve a necessidade de se refletir sobre uma miríade de questões. Há a questão do português não ser a primeira língua; há a atribuição de diferentes valores para a palavra falada e há a realidade da forma como muitos desses estudantes cursaram o ensino básico, dentre outros tantos fatores. Diferentes estudantes já me relataram que os professores do ensino básico, que vinham até suas comunidades o faziam sempre em processos concentrados no tempo. O professor de matemática, por exemplo, expunha todos os conteúdos de um ano letivo inteiro no mês que ele passava naquela comunidade. Assim, outros professores iam e vinham concentrando seus conteúdos em espaços curtos de tempo. Muito da apropriação do conhecimento escolar por parte de crianças e adolescentes se dá no exercício e no uso cotidiano daqueles conteúdos e saberes. Dentre os discentes indígenas e quilombolas com os quais pude conversar, muitos são advindos desse tipo de educação básica que raramente contribui para a adaptação deles ao ambiente universitário.
A Adiqui, assim, nasceu da comunhão de experiências sociais de exclusão que concorriam para que muitos dos discentes indígenas e quilombolas se sentissem pressionados a abandonar suas graduações. A luta da Adiqui contra a evasão envolveu, envolve e envolverá iniciativas que auxiliem indígenas e quilombolas a desenvolverem suas aptidões com maior facilidade.
Certa vez, perguntei à mesma aluna quilombola a qual me referi no início deste texto a razão pela qual ela havia escolhido o curso de Direito. Julguei, naquele momento, que as aptidões daquela aluna talvez fossem melhor aproveitadas em cursos como o de História ou o de Ciência Sociais. Ela me respondeu que a comunidade dela precisava de advogados e advogadas que pudessem defender seus interesses. Sua justificativa veio sem nenhum pesar, foi-me transmitida com um agudo senso de orgulho. Até a escolha dos cursos de graduação, para alunos indígenas e quilombolas, respeitam lógicas diferentes daquelas lógicas por trás da maior parte dos estudantes que buscam a universidade. As contribuições que esses jovens oferecem durante às aulas, portanto, dialogam como vivências bastante diferentes daquelas da maioria dos estudantes universitários. E apenas a verdadeira diversidade de vivências pode tornar as trocas da sala de aula libertadoras para professores, professoras, alunos e alunas.