Pela vida das mulheres: gênero se discute sim!

O estado de Roraima, localizado na região norte, faz fronteira com a Venezuela e a Guiana. Criado a partir da Constituição Federal de 1988, conta com aproximadamente 505.665 habitantes, de acordo com o censo de 2015 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

 

O estado de Roraima, localizado na região norte, faz fronteira com a Venezuela e a Guiana. Criado a partir da Constituição Federal de 1988, conta com aproximadamente 505.665 habitantes, de acordo com o censo de 2015 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Roraima é o estado menos populoso da federação, e proporcionalmente, o que mais mata mulheres no Brasil.

Em 2013, registrou-se uma média de 15,3 homicídios de mulheres a cada 100 mil habitantes no estado. A taxa de assassinato de mulheres no estado entre 2003 e 2013 aumentou 343,9%, saltando de 3,4 homicídios em 2003, para 15,3 em 2013. Os estados mais populosos do país, São Paulo e Rio de Janeiro, computaram respectivamente uma média de 2,9 e 4,5 homicídios de mulheres a cada 100 mil habitantes. A capital de Roraima, Boa Vista, figura no nono lugar entre as capitais mais mortais para as mulheres, com acréscimo no número de homicídios de 280,3% entre os anos de 2006 e 2013. A mulheres vítimas dos homicídios em Roraima são majoritariamente negras, com a porcentagem de 0,0 mulheres brancas e 8,0 mulheres negras (WAISELFISZ, 2015).

As mulheres vítimas de violência no Brasil são em sua maioria jovens e adultas, e os agressores mais comuns no caso das jovens são: cônjuge 29,7%, ex-cônjuge 12,5%, namorado 4,8%, ex-namorado 3,7%, e o irmão 11,7%. Com relação às mulheres adultas, a maior parte dos agressores são: cônjuge 34,0% e o ex-cônjuge 11,2%. Em ambos os casos os agressores fazem parte do círculo familiar das mulheres agredidas, na mesma direção constatou-se que 27,1% dos homicídios de mulheres ocorrem em seus domicílios, em termos de comparação apenas 10% dos homens são assassinados em suas casas (WAISELFISZ, 2015).

O Brasil em 2013 foi o país que registrou a quinta maior taxa de homicídios de mulheres a cada 100 mil habitantes, ficando atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia; e com índices 48 vezes maior que o Reino Unido, 24 vezes maior que a Irlanda ou Dinamarca; e 16 vezes mais que o Japão ou Escócia (WAISELFISZ, 2015).

Em 07 de agosto de 2006 foi promulgada em âmbito nacional a Lei nº 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha, que tem por objetivo combater a violência contra mulher, principalmente baseada em questões de gênero. O artigo terceiro da lei estabelece que serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. O artigo quarto, por sua vez, estabelece os fins aos quais se destina a lei: “as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.” (BRASIL, 2006)

No dia 02 de fevereiro de 2018, a governadora de Roraima, Suely Campos (PP), sancionou o Projeto de Lei 131/2017 de autoria do deputados estaduais Mecias de Jesus (PRB) e Ângela Águida Portela (PSC) que proíbe o ensino da “Ideologia de Gênero” nas escolas estaduais roraimenses. No artigo segundo do Projeto de Lei, “Ideologia de Gênero” é caracterizado como o conceito que determina que os dois sexos, masculino e feminino, são construções sociais. Em outros termos, nega-se que o gênero seja uma construção histórica e social, desse modo, o gênero dos sujeitos corresponderia ao sexo biológico. No artigo quinto, a lei estabelece que o Conselho Estadual de Educação de Roraima não permitirá que sejam incluídos nos planos estaduais de ensino, disciplinas que tratem da “Ideologia de Gênero”, nesse sentido a discussão histórica da construção dos gêneros e a possibilidade dos sujeitos não se identificarem com gênero que lhe é atribuído devido ao seu sexo biológico são discussões proibidas, porque ao contrário de serem discussões que contribuem para a tolerância e o respeito, são consideradas pelos deputados como doutrinadoras.

A questão a ser feita é: o que seria a “Ideologia de Gênero” trazida à tona pelos deputados Mecias de Jesus e Ângela Águida Portela no seu Projeto de Lei aprovado com ampla aceitação na Câmara dos Deputados de Roraima, e reafirmado pela sanção da governadora Suely Campos?

A única “Ideologia de Gênero” que conhecemos é aquela que domestica corpos e os silencia. A “Ideologia de Gênero” que vivemos e convivemos é aquela que separa binariamente os lugares sociais entre meninos e meninas, a partir comportamentos, atitudes, roupas, brinquedos, dentre outros, adequados a cada sexo biológico, o que em geral restringe os espaços do gênero feminino na sociedade e suas perspectivas de futuro. A “Ideologia de Gênero”, portanto, reafirma a dominação masculina, ao considerar os meninos fortes e com raciocínio lógico, e, por conseguinte, com um horizonte de possibilidades mais amplo, restando às meninas cumprir com as responsabilidades domésticas, de pequenas mulheres, antes de poderem sonhar com esse amplo horizonte de possibilidades.

A partir dos dados expostos no princípio do texto no que se refere à violência contra a mulher no Brasil, e os dados alarmantes apresentados para o estado do Roraima, percebemos com muita clareza a premência da discussão do conceito de gênero e pela igualdade de direitos nas escolas, e em todos os âmbitos da sociedade. Conceito esse amplamente discutido e pensado interdisciplinarmente em diversas universidades do Brasil e do mundo, que tem sido esvaziado por pessoas que não compreendem ou não buscam a mínima compreensão do que se trata o conceito, ou a luta das mulheres e comunidades LGBTTQ, que em última instância é uma luta por sobrevivência.

Em reposta ao projeto de lei arbitrário e intolerante dos deputados estaduais, o Núcleo de Mulheres de Roraima (NUMURR) redigiu uma carta à governadora explicando que o conceito de gênero é construído historicamente na academia e em consonância com os movimentos sociais, além de trazer Tratados e Acordos internacionais que tratam em alguma medida do assunto, como: A Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948); A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (UNICEF, 1979); A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (OEA,1994); e, Os Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em Relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero (Princípios de Yogyakarta, 2007). (Carta confeccionada pelo NUMURR à governadora Suely Campos).

A Lei Estadual além de contrariar acordos internacionais, fere a Constituição Federal de 1988, a Constituição Estadual de Roraima e os Planos e Diretrizes do País. Cito a carta:

“a) A Constituição Federal de 1988 prevê a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a redução das desigualdades sociais e regionais, e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 2008a).

b) A Constituição Estadual de Roraima, em seu art. 145, estabelece que “A Educação, direito de todos e dever da família e do Estado, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, fundamentada na democracia, no respeito aos direitos humanos, ao meio ambiente e à cultura, visa preparar a pessoa para o trabalho e para os valores espirituais e o exercício pleno da cidadania”.

c) O Estatuto da Juventude tem uma seção específica sobre o Direito à Diversidade e à Igualdade, que determina que o jovem não será discriminado inclusive por motivo de sexo e orientação sexual (BRASIL, 2013a) e que para a efetivação do direito do jovem à diversidade e à igualdade a ação do poder público deverá incluir temas sobre questões “étnicas, raciais, de deficiência, de orientação sexual, de gênero e de violência doméstica e sexual praticada contra a mulher na formação dos profissionais de educação, de saúde e de segurança pública e dos operadores do direito”. (BRASIL, 2013 a). (Carta confeccionada pelo NUMURR à governadora Suely Campos).”

Apesar da carta ter sido subscrita por 16 entidades, entre elas a Associação Nacional dos Historiadores – Seção Roraima (Anpuh/ RR), e pelo pedido de uma audiência para que os movimentos sociais pudessem argumentar acerca do projeto de lei, a governadora e sua equipe em nenhum momento agendaram uma reunião, ou se mostraram abertos ao diálogo.

Felizmente, no dia 08 de março de 2018, dia internacional da mulher, o Ministério Público do Estado de Roraima entrou com uma representação pedindo uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para suspender a eficácia e retirar a validade da lei que proíbe a “Ideologia de Gênero” nas escolas estaduais de Roraima, entendendo que:

Da leitura do dispositivo indicado sobressai a violação direta do art. 3º, inciso I (objetivo constitucional de construir uma sociedade livre, justa e solidária), art. 5º, caput (direito à igualdade) e art. 22, inciso XXIV (competência privativa da união para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional), todos da Constituição da República.

“[…] considerando que a Lei Estadual nº 1.245/2017 viola diretamente a CR/88, bem como segue na contramão da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal” (MPE – RR, 2018).

A luta por uma educação de qualidade e emancipadora deve continuar, e a discussão de gênero, como já estava previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais em 1997, como tema transversal que deve perpassar todas disciplinas precisa prosseguir. Portanto, precisamos discutir gênero nas escolas, pela luta na igualdade de direitos e pela vida das mulheres. Luta que segue!

Referências:

BRASIL, Lei Nº 11.340, De 7 de agosto de 2006.

Carta confeccionada pelo NUMURR à governadora Suely Campos, janeiro de 2017.

RORAIMA, ministério Público do Estado de Roraima, Ofício 072/2018, 08/03/2018.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil. Brasília: Flacso Brasil, 2015.

Monalisa Pavonne Oliveira - Professora do curso de licenciatura em História da Universidade Federal de Roraima. Doutora em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2016), doutorado sanduíche na Universidade de Lisboa (2014-2015); mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (2010); Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2005).

One Comment

  1. Kézia Lima disse:

    Dados assustadores, uma triste realidade sermos o estado mais perigoso para ser mulher no Brasil. Não vamos nos calar, a discussão de gênero existirá sim, independente da retaliação. O que o Estado fará com os(as) educadores(as) que abordarem gênero nas escolas não é nem 1/3 do que as mulheres enfrentam cotidianamente por conta da omissão do Estado. Avante!

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