Clarissa De Franco[1]
Suspiro inicial: relação da pesquisadora com o objeto
É só um parágrafo (longo) de suspiro antes de entrar no tema do artigo que provavelmente vos interessa. E o suspiro refere-se a explicitar minha relação com o objeto de estudo aqui discutido, algo que não é dispensável. Não sei quantas vezes me apresentei nessa vida. Cada vez, possivelmente, de uma maneira distinta da anterior e da próxima. Mais importante para este artigo do que saber que há muitas Clarissas e quem são cada uma delas ou elas em conjunto, é saber que a Clarissa que vos fala é a que tem sido impactada justamente por sua necessidade de infinitas e constantes novas buscas. Impactada no sentido de cansada, querendo um lugar de recolhimento, tendo delineado até então um caminho acadêmico e pessoal muito plural, que traz tensões para a constituição de uma noção de localização de si como sujeita no mundo. Não que pudesse ser muito diferente. A falácia da fixidez de quem somos já caiu desde muito antes das críticas pós-modernas às identidades. Dentro deste meu atual lócus de recolhimento, a perspectiva de gênero tem se mostrado persistente. Descobri-me feminista há alguns anos. E mesmo estando nas universidades desde a graduação (mais da metade dos meus atuais 37 anos), não foi a ciência que me ensinou sobre feminismo, universo trans, violências materiais, simbólicas e epistemológicas de gênero. Foi o cotidiano, que também passa pela academia no meu caso, mas de maneira mais prática e menos conceitual. Por isso, questionar o fazer científico aqui, no auge do recolhimento crepuscular de minha caminhada, tem como sentido a reflexão de que a produção de conhecimento científico está atrasada. Temos pouquíssimos Programas de Mestrado e Doutorado no Brasil em Estudos de Gênero. Seguimos atuando e formando profissionais, sem que elxs se dêem conta do buraco que ajudam a cavar com suas pesquisas higiênicas, neutras, céticas e dentro dos padrões. Com seus métodos e visões de sujeitxs e de mundo. É muito mais que uma perda de tempo. É um produzir e reproduzir sistemático de critérios hierarquizados e excludentes. É um aprofundar-se coletivo em perspectivas que nos engessam, nos limitam, nos ferram a todxs, em última instância. Quero olhar para meu quintal e proponho que cada um olhe para o seu, revisando suas práticas, suas falas e refletindo sobre a que “senhor” servem os seus (nossos) suores formatados.
Corpos em ação
As críticas epistemológicas centrais do feminismo ao fazer científico, e que, sob expressivos esforços, têm adentrado os muros da(s) ciência(s) – ainda que de maneira quase que paralela às epistemologias tradicionais, sem um diálogo de duas ou mais vias – , foram pautadas principalmente em desvelar e combater ideais de produção de conhecimento e de identidade científica ancorados em pressupostos como: neutralidade, objetividade, universalidade, distanciamento entre sujeitx e objeto e pesquisadorxs e pesquisadxs, busca pela verdade como fundamento único, palpável e último, pressupostos tais que são comumente associados a um modelo ideal de masculinidade e racionalidade. Nessa visão, o constructo acerca do ser mulher envolveria uma “contaminação” emocional, que levaria a uma subjetividade desaconselhada para a ciência “séria”.
“Começamos mal”, diria a sabedoria popular. De fato, começamos. A pesquisadora de gênero Diana Maffía (s.d, acesso em 2018, p. 2) lista as duas colunas abaixo, indicando que uma coluna está associada a características atribuídas ao feminino e outra ao masculino.
Não é preciso um exercício exaustivo para reconhecer com qual coluna feminino e masculino são associados. Há, nesse tipo de pensamento dicotômico, toda uma lógica de oposição e mútua exclusão, como se nada mais houvesse fora do binarismo apontado e como se ambas as características apresentadas como polaridades não estivessem parcialmente contidas umas nas outras. Nossa “atitude natural”[2] (Kessler; Mackenna, 1978) diante destas questões é aceitar quase que automaticamente que homens seriam mais objetivos e racionais e as mulheres em geral mais emotivas, metafóricas e menos lineares.
A ciência moderna, comumente identificada com os atributos visualizados na coluna esquerda acima, constitui-se como um pilar de autoridade do saber, que atribui poder epistêmico àquelxs que se identificam e são socialmente identificadxs com a sua lógica. Nesse sentido, o que foge a esta lógica é excluído da ciência por um atestado tácito de falta de credibilidade. As mulheres têm ocupado este lugar de invisibilidade, exclusão e desautorização epistêmica.
Fortes contribuições são oriundas dos estudos pós-coloniais e mostram como a desigualdade, marginalização e hierarquização de grupos ocorrem em diversas instâncias, inclusive na linguagem. Não é por acaso que a pesquisadora pós-colonialista Gayatri Spivak (2010) aponta a violência epistêmica sofrida pelos povos subalternos e colonizados, em especial as mulheres. “A mulher, como subalterna, não pode falar, e quando tenta fazê-lo, não encontra os meios para se fazer ouvir” (Spivak, 2010, p.15).
Quando se fala de mulheres, não nos referimos a sujeitas específicas, mas a um constructo social sobre o ser mulher, que envolve as características acima citadas como atitudes naturais de gênero. Ou seja, não se trata de pessoas do gênero feminino reais, mas de ideais que pairam coletivamente sobre o que as mulheres são.
Numa evidente e árdua tarefa de desconstrução e crítica aos princípios que sustentam esta lógica científica e epistemológica, diversxs investigadorxs têm trabalhado. A pesquisadora de filosofia Rae Langton (2000) aponta algumas formas de exclusão das mulheres no campo da produção do conhecimento. Dentre elas, está o cenário de que as mulheres seriam percebidas como um “objeto misterioso”, difícil de ser acessado, com uma complexidade atrelada ao universo emocional e subjetivo. Ela complementa indicando que “quando filósofos definem seres humanos como animais racionais, (…) assumem que as mulheres estão fora”[3] (p. 130). Esta forma de exclusão das mulheres acaba por culpabilizá-las por serem uma “terra incógnita”, e jamais responsabilizar aqueles que têm dificuldades ou que necessitariam revisar seus métodos para conhecer modos plurais de subjetividades. Além disso, Langton (2000) considera que o processo educacional cria lacunas de participação e produção cognitiva das mulheres em diversos âmbitos, como o linguístico e cientifico, retirando-lhes a autoridade subjetiva de “saber que sabem”, confiar em seu próprio repertório de conhecimento e se verem reconhecidas, com uma credibilidade social. Nesse sentido, ela aponta que tanto no lugar de sujeitas como de objetos de conhecimento, as mulheres têm sido excluídas, mesmo que parcialmente, ou, quando dentro, estão submetidas à lógica dominante do fazer científico.
A identificação social das mulheres com seus corpos, fruto de processos como a objetificação, também afetam sua relação com a ciência e com a produção de conhecimento, uma vez que dentre as dicotomias apontadas por Maffía (s.d, acesso em 2018), os corpos, em um dualismo cartesiano, seriam situados como opostos ao universo mental. E são as mentes que têm interessado à ciência por séculos, que retira dos corpos uma autoridade epistêmica, criando novos dualismos. Nesse sentido, as mulheres levariam suas opiniões para as pesquisas, enquanto os homens (como ideal de masculinidade, não homens em si) levariam seus argumentos e fundamentos, gozando de respeitabilidade.
Outra questão apontada por Langton (2000), mas também por outras pesquisadoras como Sandra Harding (1986; 1998) e Donna Haraway (1995), são as concepções ideais de conhecimento e ciência e os perigos envolvidos nos pressupostos de neutralidade, distanciamento entre sujeitx e objeto, objetividade. Nestes ideais, há escolhas e produções de sujeitxs e visões de mundo que levam a justificar as exclusões.
Haraway (1995) lembra que a distância entre sujeitoxs e objetos serve para desagenciar os objetos, aquelxs a quem se estuda, e, com isso, dar poder axs sujeitxs protegidxs em seus laboratórios, computadores e papers . Desse modo, tornam-se passivos os objetos estudados, retirando de si sua autonomia, voz, identidade e conhecimento sobre si mesmos. Quem sabe sobre o outro são xs sujeitxs investigadorxs. Uma clara violência epistêmica. A autora propõe como alternativa metodológica e epistemológica, que é preciso estabelecer relações com os objetos a partir da localização de saberes, uma forma de objetividade parcial e situada – que não recai no relativismo radical e absoluto que nega qualquer possibilidade de acesso a fatos concretos, já que qualquer realidade sob este prisma seria interpretativa, tampouco se apega ao conceito de uma objetividade empírica adaptada ao feminismo, como seria, segundo Haraway, a proposta de “empiricismo feminista” de Sandra Harding (1986; 1998).
A objetividade parcial e corporificada dos conhecimentos situados de Haraway (1995) considera tensões, contradições e ressonâncias. Tem a responsabilidade de trazer visibilidade ao lugar de onde falam xs sujeitxs, não como um lugar de fala estanque (“vim daqui”), e sim, como uma honestidade de partilhar com xs leitorxs as transformações que afetaram o processo de construção da pesquisa e das relações na produção de conhecimento, ciente das problemáticas e tensões que envolvem as escolhas de pesquisa.
Hellen Longino (2001, p. 217) complementa, afirmando compreender a ciência “mais como prática que conteúdo, mais como processo que produto”, indicando, portanto, que o fazer científico e sua lógica estão para muito além dos objetos que investiga, derramando-se expressivamente nas relações estabelecidas com estes objetos, os/as sujeitos/as produtores/as do conhecimento e a disseminação do conteúdo produzido.
Retomando Haraway (1995, p. 29), ela aponta que “a responsabilidade feminista requer um conhecimento afinado à ressonância, não a dicotomias”. E conclui: “o feminismo ama outra ciência: a ciência e a política da interpretação, (…) do gaguejar e do parcialmente compreendido. O feminismo tem a ver com as ciências dos sujeitos múltiplos(…), consequente com um posicionamento crítico num espaço social não homogêneo e marcado pelo gênero” (Haraway, 1995, p. 31). Nesse sentido, a ciência também tornou-se um espaço de reivindicação feminista visando, não apenas à equiparação de oportunidades de lugares de fala e à reparação de situações de exclusão e de invisibilidade das mulheres e de grupos minoritários de gênero como os LGBTs; mas também à reconstituição e, sobretudo, à desconstrução de lógicas internas do próprio fazer científico e de seus pressupostos.
Portanto, a produção científica feminista passa por escolhas políticas incontornáveis, das quais pesquisadorxs não podemos nos esquivar, sem o ônus da ingenuidade ou intencionalidade dirigida à manutenção destes sistemas de poder. A ciência que passa pela crivagem do gênero é uma ciência na qual o distanciamento comumente associado às perspectivas da neutralidade e objetividade torna-se uma armadilha metodológica.
Há nesse sentido, toda uma reformulação epistemológica a ser construída no cotidiano das relações sociais, privadas e públicas, e dentro do campo de produção de conhecimento. Há que se considerar que as epistemologias feministas também recebem críticas importantes. Os Estudos Trans, fortalecidos a partir das décadas de 1980 e 1990, apontam para desafios e responsabilidades ainda maiores em relação à quebra de dicotomias e binarismos, uma vez que questiona justamente a ambivalência e a permanência de gêneros, indicando uma fluidez que não comporta definições de sujeitx divididos entre os universos masculino e feminino.
Hanah Maccann (2016), pesquisadora Queer, alerta para problemas epistemológicos que surgiram de algumas perspectivas feministas, como o reforço ao binarismo, e a problemática questão dxs sujeitxs, já que no feminismo, as mulheres estão prioritariamente em destaque. De que mulheres se fala, afinal? Não haveria exclusões, universalização, reforço a binarismos e à fixidez das identidades diante da escolha feminista da defesa e exaltação do ser “mulher”?
O universo trans, que promove a quebra de fronteiras identitárias, dentre outras, situa-se na desestabilidade das linhas abissais, para citar a linguagem de Boaventura de Souza Santos (2007). As linhas abissais são aquelas que separam as realidades em inteligíveis e não inteligíveis, estabelecendo fronteiras operacionais entre epistemologias dominantes e marginalizadas. Ainda que as epistemologias feministas estejam dentre as epistemologias marginalizadas, algumas de suas posições acabam por invisibilizar identidades que não obedecem à lógica do feminino e masculino. Aqui, poderíamos citar qualquer identidade, de modo geral, uma vez que a fixidez não é um atributo da vivência humana, e sim, uma mirada conceitual externa à vivência, que pretende captura-la. Ademais das identidades múltiplas, o trans, como categoria, ou seja, aquilo e aquelxs que transitam, o que não se estabelece a priori, que é fluido por excelência, que não tem fixidez e tampouco a pretensão de fixidez, o trans aponta para novos esforços de reformulações cognitivas, para além dos já estabelecidos pelas epistemologias feministas.
Respiro final
Em conclusão, aponto para a grande tarefa que temos em nossas mãos em fins da década de 2010. Há pelo menos uns trinta anos, discute-se a revisão das posturas epistemológicas tradicionais e dominantes. E a verdade é que seguimos fazendo ciência como se ainda estivéssemos sob o paradigma iluminista do ser racional que evoca neutralidade atrelada à perspectiva de ética em ciência.
Assumir posições e afetos no fazer científico, assumir vozes, erros, medos, dilemas, assumir fraquezas conceituais, dificuldades metodológicas, assumir que produzimos realidades e passamos a agir de acordo com essas produções como se elas sempre estivessem estado na vida cotidiana, assumir que o trabalho científico é menos relevante para o mundo do que ele gostaria de ser, assumir que o projeto de modernidade não vigorou e que o critério científico não é superior a outras formas de acesso ao conhecimento, enfim, assumir e modificar muitas lógicas, é o começo de narrativas e conhecimentos mais afinados com vivências reais e possíveis.
Referências
McCann, Hannah. (2016). Epistemología del sujetx. El desafío de la teoría queer a la sociología feminista. WSQ: Women`s Studies Quaterly. 44: 3 & 4 (Fall/Winter), 224-243.
Haraway, Donna. (1995). Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, (5), pp. 07-41.
Harding, Sandra. (1998). “Is There a Feminist Method?”In: Harding, Sandra. Feminism and Methodology. Indianapolis: Indiana University Press.
Harding, Sandra (1986). Science Question in Feminism. New York. Comell University Press.
Husserl, Edmund. (1931). Ideas. New York. Humanity Press.
Kessler, Suzanne; Mckenna, Wendy. (1978). Gender: an ethnomethodological approch. Chicago, University of Chicago Press.
Langton, Rae. (2000). Feminism in epistemology: exclusion and objectification. In Miranda Fricker & Jennifer Hornsby (eds.). The Cambridge Companion to Feminism in Philosophy. Cambridge University Press. pp. 127—145.
Longino, Helen. (2001). Can there be a feminist science? In: Wyer, Mary et al (org.). Women, Science and Technology. Nova York: Routledge.
Maffía, Diana. (s.d) Contra las dicotomias: feminismo y epistemologia crítica. Instituto Interdisciplinario de Estudios de Género. Universidad de Buenos Aries. Disponível em: http://dianamaffia.com.ar/archivos/Contra-las-dicotom%C3%ADas.-Feminismo-y-epistemolog%C3%ADa-cr%C3%ADtica.pdf. Acesso em março de 2018.
Santos, Boaventura de Sousa; Meneses, Maria Paula. (Orgs.) (2010). Epistemologias do Sul. São. Paulo. Editora Cortez.
Spivak, Gayatri Chakravorty. (2010). Pode o subalterno falar? 1. ed. Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG.
[1] Psicóloga e Pesquisadora da UFABC, Doutora em Ciência das Religiões (PUC/SP), Pós-doutorado em Ciências Humanas e Sociais (UFABC) e Pós-Doutorado (em andamento) em Estudos de Gênero. Estudos (UCES, Argentina). Temas: Gênero e Religião (feminismo islâmico, disputas discursivas entre gênero e religião, ideologia de gênero, epistemologias de gênero e religião…). Gênero, Direitos Humanos e Políticas Afirmativas. Laicidade e Tolerância. Ateísmo e novas espiritualidades. E-mail: clarissadefranco@hotmail.com
[2] O conceito de “atitude natural” vem da Fenomenologia e do pesquisador Edmund Husserl (1931), que descreve axiomas inquestionáveis que perpassam a vivência de um grupo sobre determinados temas, como se tais pressupostos já fossem dados universais da realidade, sem relação direta com existências particulares. As atitudes naturais de gênero foram assinaladas pelas pesquisadoras Kessler e Mckenna, 1978).
[3] Tradução nossa