A História da Cidade é como um cachorro vagabundo

Idelma Santiago da Silva /Unifesspa

Fotografia: Rafaela Costa e Bianca Werônica. Marabá, 2018.

“O que é a Cidade? Pergunta você. Não é lugar de felicidade. Não é lugar de infelicidade. É cabaço do destino. […] Não há História da Cidade. Bobagem. Fale de Tempo. Isso não avança como um fio, mas como um cachorro vagabundo, que vai na frente, que pula para trás, que estremece, que derrapa e que volta alquebrado.” (Texaco de Patrick Chamoiseau, 1993, p. 260).

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As cidades da fronteira amazônica brasileira dos últimos 50 anos têm sido abordadas privilegiando as fronteiras política (enfoque nas políticas do Estado), econômica (“fronteira de recursos”), social (fronteira agrícola) e demográfica. As dinâmicas culturais e de identidades, decorrentes dos deslocamentos populacionais, estiveram quase ausentes dos debates. As cidades eram, ali, no limite, objetos-problemas totalizantes.

O que, geralmente, parece fora de foco das discussões sobre as cidades é, no entanto, elemento fundamental: as performances discursivas de moradores migrantes — praticantes de espaços físicos e simbólicos — poetizando suas “identidades em trânsito” e politizando a condição da coexistência na provisoriedade das inscrições dos lugares.

Em uma sociedade que reproduz, dentre outros, preconceitos de raça, classe e etnia, a experiência da invisibilidade para grande parte da população que, em geral, vive nas periferias das cidades, é um problema crucial para a consolidação de sua cidadania. Como bem lembra o antropólogo Luiz Eduardo Soares, “A pessoa se sentir invisível para o resto da sociedade é uma experiência devastadora. A partir de certo momento, você próprio passa a duvidar de sua existência” (SOARES; MV BILL, 2005, p. 11).

Neste ensaio, vou bordejar por memórias da cidade. No próximo, nos encontraremos pelas margens de certa poética da relação entre migrantes, desde as narrativas orais de moradores da cidade de Marabá/PA.

O gargalo onde nossas histórias se juntam

O que é a Cidade? Pergunta você.

É o gargalo onde nossas histórias se juntam. Os Tempos também.

A fazenda nos dissociava. Os morros nos plantavam numa deriva imóvel. A Cidade põe em marcha liga amarra malaxa e remalaxa a toda a velocidade.

Mas: ao sair do gargalo você não cai numa garrafa. A coisa recomeça.

Como?

De outra maneira. (Texaco de Patrick Chamoiseau, 1993, p. 260).

O romance Texaco, do escritor martinicano Patrick Chamoiseau, superpõe a história familiar de uma líder comunitária de Texaco (Marie-Sophie Laborieux), bairro pobre da periferia de Fort-de-France, e a história da própria Martinica. Ele é fundamentado na história e nas memórias da favelada Madame Sicot, cujo depoimento Chamoiseau pensava utilizar para uma tese sobre a perda progressiva das tradições orais: “A fim de escapar da noite escravista e colonial, os negros escravos e os mulatos da Martinica vão, de geração em geração, abandonar as fazendas, os campos e os morros, para se lançar à conquista das cidades (que em crioulo eles chamam de “A Cidade”). Essas múltiplas investidas vão se concluir pela criação guerreira do bairro Texaco e pelo reinado ameaçador de uma cidade gigantesca.” (CHAMOISEAU, 1993, p.13).

De acordo com Porto (2004, p.6-7), “Texaco retrata, com humor e sensibilidade, a luta dos despossuídos que pretendem reapropriar-se de sua dignidade através de seu engajamento num projeto coletivo. (..) A abertura do romance coincide com a chegada do urbanista que a prefeitura encarregara de demolir o insalubre Texaco. As circunstâncias o levam a conhecer a figura emblemática de Marie-Sophie que o faz descobrir, através de seu relato, que corresponde a mais de cento e cinqüenta anos da história da Martinica, as histórias anônimas de sua gente e a “poética dos barracões consagrada ao desejo de viver.” (PORTO, 2004, p. 6–7).

Um desses personagens, o negro Esternome, que desceu da fazenda e do morro para viver na cidade, é o autor das palavras escritas como epígrafes neste trabalho. Segundo ele, “[…] a Cidade é um abalo. Um vigor. Ali tudo é possível e tudo é cruel. A Cidade nos leva e nos transporta, jamais nos abandona, mistura-nos com seus segredos que vêm de longe. Aos poucos, captamos esses segredos, sem jamais entendê-los. Então, nós os contamos para os que desceram dos morros e que pensam que entendemos do riscado: mas a Cidade apenas nos engoliu, sem realmente se explicar. Uma Cidade são os tempos reunidos não apenas nos nomes, nas casas, nas estátuas, mas no não-visível.” (CHAMOISEAU, 1993, p. 157).

Suas palavras vazam dos escritos de Marie-Sophie avocados para o romance pelo “marcador de palavras” (escritor de livro), intitulado “palavras do preto velho da Doum”. Marie-Sophie insistia com ele em uma pergunta sobre Mentô: Você não é um Mentô, Papa? Você não é um Mentô?” (CHAMOISEAU, 1993, p. 258). Papa Totone era um preto velho que vivia próximo ao mangue que se tornaria o bairro Texaco. “Mentô” se referia a pretos velhos feiticeiros, curandeiros (temidos pelos senhores colonizadores), ainda presentes na Martinica, apesar de invisibilizados e estigmatizados, “[…] considerados hoje como símbolo do atraso dos segmentos mais pobres da população, oficialmente ridicularizados, têm na realidade ainda muita penetração em todas as camadas, embora pouquíssimos ousem admiti-lo” (DAMATO, 1995, p. 176).

A leitura do romance me fez pensar no quanto aquelas histórias de “conquistas” da Cidade (ou de como foram engolidos pela Cidade) me lembravam personagens e histórias de nossas cidades da fronteira de expansão na Amazônia; essas improvisadas cidades ocupadas e arranjadas pelas suas promessas e os esforços de migrantes, como os negros que saíram das fazendas e morros da Martinica em direção às cidades. Talvez, a experiência comum da escravidão, da abolição sem direitos de cidadania, da migração em direção às cidades ou, ainda, no nosso caso, em direção também às margens geográficas extensivas do espaço nacional, constituam elementos marcantes de nossas identidades sociais e culturais.

Em Texaco, a história da conquista de um lugar na cidade — para os negros migrantes das fazendas e morros — é a imagem do gargalho onde se juntam as histórias. Não para a síntese de um final, mas para a abertura e a indeterminação. Por isso, é preciso lutar porque “[…] é a Cidade que vai mudar. Mas a Cidade ainda não sabe como vai mudar. Depende dos destinos que ela arrasta. É um gargalho, mas é aberto.” (CHAMOISEAU, 1993, p. 261).

Essa e outras imagens nas palavras do preto velho da Doum representam o desafio de viver na cidade, de fazer parte dela, de lutar contra a crença na História da Cidade. Há um tempo em aberto, que “[…] não avança como um fio, mas como um cachorro vagabundo, que vai na frente, que pula para trás, que estremece, que derrapa e que volta alquebrado. Todas as histórias estão aí, mas não há História.” (CHAMOISEAU, 1993, p. 260-261).

Fotografia: Rafaela Costa e Bianca Werônica. Marabá, 2018.

 

Lenda é memória maior que memória

Nas memórias de seus moradores, a cidade é feita de coisas visíveis e invisíveis. Memórias de percursos, paisagens e personagens; a cidade empilha tempos em “mapas afetivos”, guardados por seus moradores.

Assim, encontramos Antônio Sampaio (Revista Itatocan de fevereiro-março de 1968) contando a história do preto Irineu, seus batuques e a Rua do Marabazinho. Segundo ele, a história “[…] aconteceu no tempo em que Marabá era ainda um pequeno povoado, circunscrito apenas à área do Cabelo Seco. […] Foi no tempo do batelão a remo e dos batuques dos famosos barqueiros do Tocantins.” Irineu era um “preto velho” que tinha vindo do norte de Goiás, em um dos botes dos “mineiros”, com a esperança de enriquecer trabalhando com o caucho. Porém, adoeceu e, como não pôde mais trabalhar, abriu uma venda de cachaça e “[…] passou a promover danças e batuques de origem africana.” Mas, o barulho dos tambores teria incomodado gente importante do lugar, e Irineu, diante de protestos e reclamações, mudou-se para a capoeira do velho Maravilha para continuar com sua venda e seus batuques. Mesmo assim, segundo Sampaio (idem), “[…] não faltaram adeptos do terreiro e da gostosa cachacinha do Irineu. Não tardou muito para que outros fossem lhe fazer companhia. Construíram-se novas barracas. Em pouco tempo já se podia ver uma fila de casas ao longo da margem do Tocantins. Era o arraial do Irineu que surgia e que logo foi apelidado de Marabazinho. Ouvia-se, pelas noites, para aqueles lados, a zoada dos tambores, e o povoado cresceu rápido. A rua grande também cresceu e se encontraram as duas artérias. Agora tudo era Marabá. […] Hoje o Marabazinho transformou-se na bonita Avenida Marechal Deodoro. Ninguém mais se recorda do Irineu nem de seus batuques e cateretês.”

Migrantes negros, como Irineu, fizeram da cidade seu “cabaço de destino”. Atualmente, as histórias que deles se contam parecem lendas. Mas, para lembrar as palavras do negro Esternome, em Texaco, “[…] lenda é memória maior que memória.” E, ainda, “[…] sem memórias, nada de Cidade, nada de Bairros” (CHAMOISEAU, 1993, p. 160-161).

No Cabelo Seco, também viveu Margarida, filha de escravos, mas nascida de ventre livre na senzala do Cacoal; segundo Frederico Morbach, “[…] veio da maré onde o Tocantins se alarga, num quase mar, navegado por ilhas verdes tripuladas de buritizeiros.” (O Marabá, 24/11/74). A negra Margarida era contadora de histórias para a “molecada” da Rua Grande e do Cabelo Seco. E continua Morbach: “Na senzala do Cacoal onde nasceu Margarida, tinha muito filho de Boto-peixe encantado que nas noites de lua cheia virava moço formoso para seduzir donzelas. […] Sei que nem Margarida nem seu filho João eram filhos do Boto, porque ambos tinham a cor de uma noite invernosa. Conheci Margarida já quarentona trabalhando na cozinha da casa do Salvador, vizinha à nossa, quando eu tinha nove anos. Na calçada alta que dava para a Rua Grande, a gente se reunia após o jantar para ouvir as estórias bonitas que ela contava. E a molecada do Cabelo-Seco saia da boca da noite, arrastando os tamancos, e se juntava a nós, circulando Margarida, que tomara uma bicada, acendera o seu pito, para contar as fantasias aprendidas dos seus avós bantos.”

Outros personagens negros participam das memórias e das histórias do bairro Cabelo Seco e da cidade. Basílio José dos Santos, conhecido como Basilão, maranhense de Pastos Bons, tinha sido escravo da família Coelho (até ser liberto), veio para Marabá trabalhar como caucheiro e castanheiro. Tornou-se um hábil mateiro nas matas da região, guiando trabalhadores inclusive fora da bacia do rio Itacaiúnas. Em 1963, Basilão tinha 119 anos de idade e foi homenageado pela prefeitura como o mais antigo dos caucheiros e castanheiros vivos (LIMA, 1984).

Muitos mestres barqueiros e construtores de barcos eram negros. Ademir Braz (entrevista oral, 19/04/05) conta que foram os migrantes negros do baixo Tocantins que desenvolveram a técnica de construção dos barcos utilizados em Marabá para o transporte da Castanha do Pará. Foi uma frente migratória de trabalhadores, contratados porque tinham o domínio da tecnologia de construção de embarcações. Em 1982, uma matéria publicada no jornal Aratocan (6-12/06/82) trazia alguns nomes de famosos mestres barqueiros negros que faziam o transporte entre o norte de Goiás, o sul do Maranhão e o sul do Pará e de Belém; ou seja, que navegavam os rios Araguaia e Tocantins. Na matéria, são citados os mestres Venâncio, Barbosa e Teotônio Apinagés. Este último, apontado como “o descobridor da navegabilidade do canal Capitariquara, da cachoeira do Itaboca” no período do verão.

Descido nas correntezas mais recentes do Tocantins, outro personagem relata: “Marabá, eu lembro quando cheguei em Marabá. Cheguei por aqui [aponta a margem do rio Tocantins], o motorzão dobrou aquela volta ali. Você pode olhar lá que você vê. Aí era um movimento aqui na beira do rio que era muito! Cheio de barco, todo mundo passando. Eu? Marabá? Aí as lágrimas chegam, rolam assim. Eu, novinho! Naquela época tinha 16… lembrando do meu Maranhão.”

Esse fragmento de memória é de um desses tantos personagens “anônimos” das histórias da cidade. Em meados da década passada, quando gravei seu depoimento, o narrador encontrava-se no antigo mercado municipal, temporariamente “corrido” das águas da Santa Rosa com sua bodega.

Naqueles tempos, o Cabelo Seco era Marabá das migrações da primeira metade do século XX. Depois disso, Marabá virou uma cidade sem centro, espalhada e de muitas histórias. O Cabelo Seco é agora apenas um bairro com ruas estreitas, as moradias dividindo parede, muitas casas pequenas e baixas, pessoas sentadas às portas das casas conversando em fim de tarde, gente bronzeada de sol e roupas secando em calçadas, beiras de telhado e varais lá na ponta onde os rios se encontram. Um lugar concentrado de gente e memórias de um século de histórias.

Retomar essas histórias não tem aqui a intenção de sobrelevar “origens” ou personagens, mas colocar em relevo que o silêncio não é sinônimo de esquecimento e que a memória é disputada, ainda que nos subterrâneos das vidas invisibilizadas, dos “não ditos” e dos não ouvidos. Apenas para falar do tempo como um “cachorro vagabundo”. Para lembrar a mentira da História da Cidade como uma grande narrativa totalizadora: “todas as histórias estão aí, mas não há História” (CHAMOISEAU, 1993, p. 261).  Mas, quem deseja o incomodo do “cachorro vagabundo” para lembrar que o tempo do “progresso” é nossa miragem do “dragão chinês”?

Fotografia: Rafaela Costa e Bianca Werônica. Marabá, 2018.

Referências

CHAMOISEAU, Patrick. Texaco. Tradução do francês da Martinica Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

DAMATO, Diva Barbaro. Edouard Glissant: poética e política. São Paulo: Annablume, 1995.

LIMA, Álvaro de Barros. Quarta Parte (episódios da história de Marabá). In: MARABÁ. Prefeitura Municipal. A história de uma parte da Amazônia, da gente que nela vivia e da gente que a desbravou e dominou, fazendo-a emergir para a civilização. De 1892 até nossos dias. Ademir Braz et. al. Marabá, 1984, p. 77-117.

PORTO, Maria Bernadette. Poéticas dos restos e reciclagem cultural em produções antilhanas. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO CENTRO DE ESTUDOS DO CARIBE NO BRASIL, 3., 2004, Goiânia. Culturas híbridas no atlântico: Relações África-Ásia-Brasil-Carbe. Goiânia: CECAB/FCHF/UFG, 2004. 1 CD-ROM.

SOARES, Luiz Eduardo e MV BILL. Entrevista – Diálogo de Classes. Revista IstoÉ. São Paulo, 13 Abr. 2005, n. 1.852, p. 7-11.

Doutora em História (2010) pela Universidade Federal de Goiás. Professora do Instituto de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Trabalha com formação de educadores do campo e atualmente realiza estudos de história oral sobre memória, gênero, mulheres e movimentos sociais do campo. É líder do Grupo de Pesquisa Culturas, Identidades e Dinâmicas Sociais na Amazônia Oriental Brasileira e membro do Conselho Científico da Associação Brasileira de História Oral (2016-2018). Atualmente, vice-reitora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.

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