Quase seis horas, mas vai ainda visitá-lo, o amigo pintor, recém-chegado de viagem. Passa pelo jardim, apanha raminhos de manjericão cheiroso, há sempre alguma orquídea aberta a apreciar pelo caminho… Chega ao ateliê, gosta de apreciar o “Orquidário”, tela de rara beleza, onde o amigo reproduziu a perfeita beleza das orquídeas do jardim, agora ao lado da outra, um fantástico “Carnaval”, que suas mãos talentosas criaram com máscaras coloridas. Um carnaval tantas vezes intensamente vivido, mas que se fora para sempre da vida dele.
Quer fotografar as duas telas, o amigo entre elas, Tinha-as visto nos esboços, tomando lentamente as cores, as formas se aprimorando, até chegarem à plenitude, com sua beleza contagiante, vencendo concursos, despertando admiração. E retornadas agora das viagens, das exposições, um rastro de beleza deixado pelos caminhos.
Consulta o relógio: seis horas. Tem pouco tempo, tantos os compromissos. Liga mais luzes, quer plena claridade, prepara o flash, dispara. Mas, com ele, máscaras escapam da tela, ganham corpo e vida, se atropelam, multiplicando-se às dezenas. Quer ser racional, buscar explicações sensatas, mas os foliões a envolvem, invadem o “Orquidário”, colhem as flores, esvaziam a tela.
Cruzam-se serpentinas, tudo é alegria. Mal pode vislumbrar o amigo pintor nos braços foliões, rindo e dançando. Pensa no vinho que ele lhe serviu, nos brindes ao sucesso. Quem sabe ali a explicação, talvez um pequeno exagero. Ou a existência se redefinindo em enigmáticas paragens? Não importa. Entra no clima, tromba com arlequins e pierrôs, canta também marchinhas de tantos carnavais passados. Flutuam todos no espaço dilatado, a luz jorra de ignotas fontes…
Estranhamente, não se movem os ponteiros do relógio.
Mas o vento frio da madrugada entra pela janela. Murcham as orquídeas, foliões se reduzem a máscaras, as esgarçadas fantasias se diluem no ateliê. A alegria se vai. Voltam lentamente às telas, máscaras e flores.
Consulta o relógio: seis horas. O tempo não escorrera? E lá está o amigo pintor, o sorriso bondoso, nenhuma perplexidade. Não teria vivenciado tais momentos? Melhor se calar, quem sabe passageira alucinação. Ou feitiço daquelas telas encantadoras?
Despede-se. Sai à rua. Nada acontecera. Não há carnaval, apenas a rotina. Faz frio. Enfia as mãos nos bolsos do casaco. Confetes?
Maria Apparecida Sanches Coquemala
Autora licenciada em Letras, especializada em Linguística, pedagoga. Premiada pela UBE, Rio com A Gruta Azul e Carnaval, 2º e 3º lugares; e pelo Governo da Paraíba, Correio das Artes, com À Espera e pela Ed. Porto de Lenha, Gramado, ambos 1º lugar, todos coletâneas de contos e crônicas. Na literatura infanto-juvenil, publicou Naná e o Beija-flor; na poesia, À margem da vida e Pulsar, este já na 3º ed. Autora também de Círculo Vicioso, O Último Desejo, Além dos Sentidos e Flashes, coletâneas de contos e crônicas; Participa de antologias no Brasil, Portugal e Itália. Cronista de O Guarani, jornal de Itararé, SP, cidade onde reside.
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