Andrius Estevam Noronha
Um tema recorrente no campo historiográfico é a permanente discussão sobre história e memória, que originou inúmeros eventos de história, textos, palestras e outras atividades que buscam analisar esse tema. Meu objetivo com esse texto é apresentar contribuições de diversos autores, em especial Jacques Le Goff (1990), que vem sendo utilizando em aulas sobre teoria e metodologia da história. A pedido de alguns amigos, alunos e colegas resolvi colocar em forma de texto uma palestra que realizei na Universidade Federal do Amapá no III Encontro de Discentes ocorrido em 2017.
Le Goff (1990) inicia seu texto circunscrevendo um esboço da evolução da ciência históriográfica contemporânea e analisando seu papel na sociedade com seus desdobramentos políticos, econômicos e culturais. A tendência de transformação da ciência histórica, de acordo com o autor, teve grande peso na França, mas também teve manifestação em outros lugares como na Grã-Bretanha e na Itália. A história econômica e social foi uma das mais antigas manifestações, na qual destacamos o papel da ciência histórica alemã, tendo influência nos campos da Sociologia e a Antropologia no início do século XX. Os estudos de Max Weber (1999) sobre os conceitos de modernidade e burocracia, juntamente com outros sociólogos e antropólogos dos países anglo-saxônicos foram notórias para esse processo.
A história oral e a história quantitativa tiveram peso significativo nas abordagens que estavam emergindo nesse contexto, apesar do último não ter se consolidado com força nos países mediterrâneos. Ruggiero Romano (1989) destaca que os historiadores dos paises Latinos e Latinos-americanos são muito engajados na vida social e política de seus países, coisa que não se verifica nos países anglo-saxônicos, russos e germânicos. Destacamos também as criticas em torno da ideologia do progresso, mais recente, de repúdio pelo marxismo vulgarizado. Le Goff destaca que se criou uma produção pseudo-histórica anti-marxista que parece ter tomado o tema gasto do irracional. Ele cita Michel Foucault (2013) que aponta alguns problemas capitais para o historiador que ainda não podem ser postos, senão a partir do marxismo e exprimem o desejo de que a renovação passasse por certo regresso às fontes.
Le Goff (1990) destaca que no Ocidente conhece-se mal a produção historiografica dos países do Leste europeu. À exceção da Polônia e da Hungria, o que se conhece não seria tão pertinente, considera também alguns grandes historiadores do passado como antepassados da história nova, pelo seu gosto e pela investigação das causas, ressalta a sua curiosidade pelas civilizações, o seu interesse pelo material, o cotidiano e a psicologia. Se avaliarmos todas as correntes historiográficas desde o século XVI de La Popelinière a Michelet, passando por Fénelon e os intelectuais do iluminismo, constatamos uma importante linhagem de diversidades teóricas.
A fundação da Revista “Annales” foi como um divisor de águas no debate teórico e metodológico na historiografia moderna, isso possibilitou um aprofundamento mais complexo no campo da produção da ciência historiográfica nas décadas que seguiram. Autores como Marc Bloch e Lucien Febre foram, sem dúvida, grandes expoentes desse processo em que poderíamos contextualizá-los numa conjuntura marcada pelas seguintes transformações das décadas de crise, entre 1914 e 1945: guerras mundiais, revoluções e contra-revoluções e crise do sistema capitalista. Essa conjuntura fez emergir um novo paradigma não só na historiografia, mas também na geografia, sociologia, antropologia e nas outras ciências sociais e humanas.
O artigo “Método histórico e ciências sociais” do economista François Simiand (2003) destaca a importância de haver uma colaboração de outras ciências sociais como suporte teórico e metodológico das pesquisas em história além de denunciar a história de ídolos políticos, individuais e cronológicos da historiografia tradicional. Fernand Braudel (1987) destaca três planos que a história estava sobreposta: o tempo geográfico, o tempo social e o tempo individual ao publicar um artigo nos Analles sobre longa duração, o que iria inspirar uma parte importante da investigação histórica subseqüente.
Foi nos anos setenta, um pouco e em toda parte, nos colóquios e obras, principalmente coletivas que fizeram um balanço das novas orientações da história. Destaca-se entre as novas abordagens, o quantitativo em história, a história conceitualizante, a história antes da escrita, a história dos povos sem história, a aculturação, a história ideológica, a história marxista. O diálogo da história com outras ciências prosseguia, aprofundava-se, concentrava-se e alargava-se simultaneamente. A história e a economia, a sociologia, a antropologia, a biologia são exemplos desse processo.
Merece destaque o encontro entre história e antropologia que o próprio Le Goff se incluí entre os historiadores que aprofundaram suas pesquisas nessa área. O destaque do encontro da etnologia e história foi o grande motor desse casamento, principalmente nos estudos do multi-culturalismo na atualidade e das teorias raciais no século XIX. As tradições narrativas também entram no eixo de deslocamento das pesquisas históricas que deram base para o provincianismo e para a construção dos Estados-Nações.
André Burguière (1993) possui autoridade no campo da antropologia histórica, fazendo referências aos trabalhos de Norbert Elias sobre a evolução da disciplina do corpo na Europa. Burguière ilustra quatro exemplos da antropologia histórica:
1) a história da alimentação
2) a história da sexualidade e da família
3) a história da infância
4) a história da morte
A referência feita por Le Goff na antropologia leva a uma reflexão sobre o encontro entre a historiografia e a biologia, e nesse ponto, François Jacob defende que podemos ver na história da ciência a sucessão das idéias juntamente com a sua genealogia, o que permite inferir os objetos deste campo ao tornar acessível à análise e a abertura de novos domínios de investigação. O que está em questão nesses elementos é a refutação de uma história idealista, uma vez que Jacob propõe que a história da ciência deva dar conta das condições materiais, sociais e mentais da sua produção e complexidade das etapas do saber.
Ruggiero Romano (1989) nos levanta uma série de questões sobre a história demográfica, baseando-se em trabalhos de Jacques Ruffié. Nas décadas de setenta com o advento da informática leva a associação mais rápida dos estudos quantitativos na história que estava associada principalmente com a história econômica. O olhar do historiador sobre a história da sua disciplina desenvolveu recentemente um novo setor especialmente rico da historiografia: a história da história. A história da historiografia toma como divisa a palavra de Croce: toda a história é história contemporânea e o historiador, de sábio que julgava ser, tornou-se um forjador de mitos, um político inconsciente.
As manifestações de etnocentrismo entram no período da formação das teorias evolucionistas do final do século XIX, quando a história estava institucionalizada como instrumento pedagógico dos Estados Nacionais modernos. As manifestações de etnocentrismo histórico foram registradas por Roy Preiswerk e Dominique Perrot, que apontam as formas de colonização da história pelos ocidentais: a ambigüidade da idéia de civilização, o evolucionismo social, a escolarização como medida de superioridade de um povo sobre outro, a idéia de superioridade, os valores, a legitimação das ações do Ocidente, a transferência intercultural das estruturas, o uso de estereótipos para classificar ou desqualificar determinado povo. Esses elementos estiveram presentes no casamento entre história e antropologia no final do século XIX.
O resultado desse processo foi trágico: esses elementos levaram as guerras mundiais que foram alimentadas ideologicamente pelas teorias étnico-nacionalistas, aos conflitos centro-periferia do processo de descolonização e imigração das décadas de 50,60 e 70. Esses aos acontecimentos tiveram ainda um grande motor de transformação, em função da chamada grande revolta estudantil de 1968, que criou bases para as mudanças no campo teórico e metodológico da historiografia. Esses acontecimentos levaram vários intelectuais criarem novas linhas de pesquisa nas universidades européias guiadas por uma nova concepção de olhar o passado.
Vale destacar os estudos sobre o estruturalismo de Claude Lévi-Straus que aproximou como poucos a antropologia da história. Há um estruturalismo extremamente caro aos historiadores: o estruturalismo genético do epstemólogo e psicólogo suíço Jean Piaget, segundo o qual as estruturas são intrinsecamente evolutivas.
Eric Hobsbawm assinala que a nova história tem, em primeiro lugar, objetivos de expandir e aprofundar a história científica, apesar dela ter encontrado problemas, limites e talvez impasses. No ensaio The Revival of Narrative, Lawrence Stone verifica a existência de um regresso ao conto em história, baseado na falência do modelo determinista de explicação histórica, na decepção causada pelos magros resultados obtidos pela história quantitativa.
Le Goff finaliza sua análise destacando a crise do mundo dos historiadores e das incertezas da nova história, refletindo sobre o desencanto dos homens face às durezas da história vivida. Todo o esforço para racionalizar a história, oferecer-lhe melhores pontos de vista sobre o seu desenvolvimento, se choca, segundo ele, com a incoerência e a tragicidade dos fatos, das situações e das evoluções aparentes.
A critica que podemos lançar no texto é a referencia que Lê Goff faz ao abordar a história quantitativa e não faz nenhuma referencia a prosopografia, que se desenvolveu nos anos setenta, mesmo fazendo referencia a Lorence Stone, que foi umas das principais autoridades a retomar os estudos dessa metodologia.
REFERÊNCIAS
BURGUIÈRE, André. Dicionário das Ciências Históricas. Trad. Henrique de Araujo Mesquita. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987.
LE GOFF, Jacques. “História hoje”. In: ____. História e memória. Campinas, SP: Edit. Unicamp, 1990, p. 127-146.
ROMANO, Ruggiero. Mecanismos de conquista colonial. São Paulo: Perspectiva, 1989.
SIMIAND, François. Método Histórico e Ciência Social. Tradução de José Leonardo do. Nascimento. Bauru/SP: Edusc, 2003.
WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: Editora da UnB, 1999. (Vol.I e II).