“A gente aprendeu a conviver com eles tudo”: Alteridade e performance do (com)viver de migrantes na cidade de Marabá

Idelma Santiago da Silva – Unifesspa

Em relatos orais de migrantes que chegaram a Marabá/PA, nas décadas de 1970 e 1980, sobressaem duas dimensões: a da luta pela sobrevivência e a do desafio da convivência. Elas inserem um sentido agonístico e performativo nas relações de alteridade. A relação entre os diferentes é entendida na totalidade das formas de relacionamento com a realidade, sempre indeterminada e em movimento. Nessa relação, a possibilidade de se alcançar uma atuação bem-sucedida dependia do desempenho e da inventividade pessoal de saber “jogar” com a realidade imediata e imprevisível das novas relações e dos novos espaços.

Assim, a migração surge — nas narrativas de migrantes pobres — como atuações em situações liminares da existência, e tem um lado dramático que é decidir mudar e enfrentar o novo desconhecido. Por outro lado, é animada por uma esperança sempre renovada de que mudar significa lutar e melhorar as condições de vida, isto é, significa protagonizar sua história. Por isso, a multiterritorialidade que marca as trajetórias de vida do migrante (diferentes lugares e atividades) é um núcleo importante de valor e reconhecimento. Poder falar de vários lugares, ter desenvolvido diversas atividades profissionais e ter conhecido pessoas diferentes é traduzido como um acúmulo de conhecimento e sabedoria, configurando uma cultura na qual a alteridade é o que “chama também ao contato, que desafia, que seduz” (SODRÉ, 1983, p.177).

O senhor Abraão de Souza, maranhense de Carolina, veio para Marabá em 1977. No Maranhão, era lavrador, mas “a mata era pouca” e “a gente passava essas dificuldades econômicas, vamos dizer, por parte de alimento”. Então, quando vieram para o Pará, o objetivo era conseguir uma terra “porque a gente sabia trabalhar de roça”. Na cidade de Marabá, o senhor Abraão cadastrou-se no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), mas a terra nunca saiu. Para ele, a mudança de espaço rural-urbano era mais um desafio.

Na narrativa do senhor Abraão, a migração coloca em evidência termos e situações ambivalentes: sertão e cidade, escolarizados e não escolarizados. É frente a esse mundo dividido que se coloca o desafio do contato e da relação: Como é que a gente vai fazer pra poder conviver com essas pessoas?” A performance depende do desempenho pessoal, mas também dos “outros”, já que todos (a maioria migrante) estão colocados na exigência de um novo entendimento e um novo aprendizado que viabilize a convivência: “é assim, o pessoal que vem de fora”, “a gente encontrou muita gente boa”, “arrumamos uma amizade com uma família lá”, “a convivência pra nós foi boa, porque a gente aprendeu a conviver com eles tudo”. Tem-se uma retórica da relação que não tem como base os elementos de crise de identidade, mas as ações e relações cotidianas que tornaram possíveis a vida em novos espaços geográficos e sociais.

O reconhecimento da alteridade é compreendido como um desafio de tradução cultural e como um elemento de enriquecimento da experiência humana a partir do jogo desencadeado pela obrigação de se estar junto:

O bom é que a gente vai aprender a conviver com pessoas diferentes, com culturas diferentes. Então eu acho muito bom porque a gente tá aprendendo uma maneira de, dentro de nosso próprio país, a gente conviver com os outros. […] Essa cultura da gente, vê, conviver com pessoas diferentes é a mesma coisa da gente conviver com pessoas que falam outra língua. A gente num sabe o que ele tá falando, mas a gente é obrigado a tá junto.” (Abraão de Sousa)

O relacional emerge como um elemento fundamental nesse entendimento para o encontro de culturas em que estão em jogo os sentidos das coisas e das palavras, mas sob a centralidade da obrigação de se estar junto. O sentido de (com)empreender as relações como performance parece remeter a um sistema cultural de matriz negra que “encontra sua coerência na reversibilidade do jogo” e da reciprocidade entre seres diversos:

Cumpre-se a obrigação para se viver a intensidade da regra, para se ir ao encontro daquilo que atrai irresistivelmente as coisas, os bichos, os homens, os deuses: o Destino. Mas o Destino não está no futuro, nem no além. Está aí mesmo, no instante em que se vive, no aqui e no agora, como um processo que absorve os seres sem deixar resto, sem permitir valor.” (SODRÉ, 1983, p.145).

Assim, a performance nas relações com os diferentes não se assenta em uma preocupação ou um objetivo de produção finalística de sentido ou no texto da comunicação em si. Aceita-se que são como pessoas que “falam outra língua” e que “a gente num sabe o que ele tá falando”. Poderíamos pensar em termos de uma capacidade cognitiva que não se frustra com a incompletude do entendimento e suas possíveis ambiguidades, nem com a diferença que representa o outro. Não é a clarividência que mais importa, mas o jogo a que esse e outros estão obrigados para a convivência. A linguagem é um ato acontecendo, dramatizado na relação com a alteridade.

Quando Kátia Gomes, paraense de Mocajuba que chegou a Marabá na década de 1970, ressalta a diversidade do vocabulário “a gente acaba tendo, eu acho, um dicionário de vocabulário que faz com que a gente sobreviva muito bem” — pode-se pensar em termos da conservação da memória semântica dessas diferenças; ou seja, os atos de nomear coisas e acontecimentos conservam-se pela multiplicidade. Contudo, também pode-se supor um quadro compreensivo da linguagem como experiência humana concreta de recriação do mundo coabitado.

A convivência ordinária entre os migrantes pobres nas áreas de “fronteira” é rememorada também pelas relações de vizinhança. Elas constituem formas mais concretas de solidariedade e aprendizados mútuos: “uma boa convivência, você é quem conquista” (Braz de Melo, maranhense). Mais uma vez é ressaltada a construção das novas relações como resultado de uma performance pessoal em saber lidar com as possibilidades e as adversidades, mas pressupondo a existência da sua contraparte: os outros da relação. Dona Ana Rosa, 60 anos de idade, maranhense de Carolina, veio para Marabá em 1968. Trabalhou como castanheira e lavadeira de roupa no rio. Ela diz que “aqui foi onde eu aprendi a embolá a castanha, foi aonde eu aprendi a fazer o cupu, quando eu aprendi a fazer o jabuti no meio da castanha”. Ela fala das trocas de saberes propiciadas pela migração, como, por exemplo, fazer o jabuti ao leite da castanha-do-pará era um saber da culinária do baixo Tocantins.

Relações de vizinhança, de amizade e de troca de saberes táticos úteis à sobrevivência das pessoas pobres circulam informalmente, gerando um ambiente que, de certa forma, contribui para a socialização dos migrantes. As narrativas desses moradores são também de (sobre)vivência, podendo ser interpretadas nos termos de uma “ética da tenacidade” ou, ainda, conforme Certeau (1994, p. 44), “a fraqueza em meios de informação, em bens financeiros e em ‘seguranças’ de todo tipo exige um acréscimo de astúcia, de sonhos ou de senso de humor”.

Nos deslocamentos, os migrantes carregam consigo suas cosmovisões e seus repertórios de práticas e experiências anteriores. No novo lugar, a dinâmica da negociação é desencadeada e novos arranjos são construídos para acomodar as antigas e novas experiências. Dona Ana Rosa conta que, quando veio do Maranhão, em 1968, só espantou a saudade de sua terra quando passou debaixo da ponte que ficava onde hoje está construído o estádio Zinho Oliveira:

No começo eu chorava demais pra voltar pro Maranhão, mas depois… Aí me disseram que se passasse debaixo da ponte ali aonde era o estádio antigamente, eu não voltava mais […]. Aí eu passei. Aí digo, eu vou saber se isso é verdade. Aí eu fui passano, que era uma ponte, era ponte ali no estádio, cortava a Barão até a Antônio Maia. Aí eu passei por debaixo, aí eu passei por debaixo da ponte, pra saber se era verdade mesmo, e até hoje. [E depois disso a senhora não quis mais voltar?] Não, acabou. Aí eu passei debaixo da ponte… o pessoal dizia assim: ah, se passa debaixo dessa ponte aí não sai mais de Marabá. Pois aconteceu comigo. E num tenho mais vontade de voltar pro Maranhão, não. Esqueci”.

Aqui, há uma fusão de horizontes culturais, em um encontro que torna familiar o estranho e o espaço se tornam lugar de vida. Portanto, relações de alteridades são também relações de reconhecimento.

Contudo, os espaços públicos de sociabilidade nas cidades foram e são muito precários e, não raro, marcados por violências. Em algumas narrativas, tem-se uma visão crítica sobre o processo que envolve a migração, pois as mudanças nem sempre significam melhora; podem significar mais precariedade nas condições de vida. E a luta pela sobrevivência continua sendo o desafio de sempre. Variáveis como classe social, procedência geográfica (diferenças regionais) e questões étnico-culturais incidem sobre concorrentes repertórios de práticas e significações sobre os processos de ocupação da região e seus destinos:

“[…] dificilmente eles têm nós também assim dentro da relação deles pessoal. Até os compromissos de trabalho deles com nós são mais pouco mesmo. Há um pouco de discriminação. Quando eu comecei conhecer o povo que eu não conhecia nessa região, mineiro, baiano e capixaba, eles achavam que o maranhense não tinha alternativa, perspectiva de vida nenhuma a não ser mexer com babaçu. […] A gente levou muito tempo que a convivência num batia igual. Havia uma certa diferença, assim, muito grande, porque sempre quando falava em maranhense era um pouco criticado, era discriminado. […] Isso foi um desencontro de sotaque, de perspectiva de vida, e de conhecimento, de falta de conhecimento também.” (Ornildo Souza).

As relações entre migrantes podem significar um aprendizado da convivência com o diferente, uma abertura à relação. Mas, também podem significar separações e tensões frente às diferenças e desigualdades que são capazes de gerar situações de discriminação e opressão. A questão do descentramento cultural que caracteriza a região — a heterogeneidade que impossibilita a atribuição de algum conceito totalizador para sua definição — expõe a evidência de que qualquer reivindicação de supremacia cultural seria apenas mais uma atuação na luta pelo poder de representação. Nessas lutas, estão engajados “todos” os migrantes, como parte de suas lutas pela sobrevivência material, social e pelo direito de significar suas experiências. “Na medida em que a cultura real só existe se produzida por indivíduos ou grupos que ocupam posições desiguais no campo social, econômico e político, as culturas dos diferentes grupos se encontram em maior ou menor posição de força (ou fraqueza) em relação às outras. Mas mesmo o mais fraco não se encontra jamais totalmente desarmado no jogo cultural” (CUCHE, 2002, p. 144).

Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves.  6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002.

MUNIZ, Sodré. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri, 1983.

 

 

 

Doutora em História (2010) pela Universidade Federal de Goiás. Professora do Instituto de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Trabalha com formação de educadores do campo e atualmente realiza estudos de história oral sobre memória, gênero, mulheres e movimentos sociais do campo. É líder do Grupo de Pesquisa Culturas, Identidades e Dinâmicas Sociais na Amazônia Oriental Brasileira e membro do Conselho Científico da Associação Brasileira de História Oral (2016-2018). Atualmente, vice-reitora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.

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