O Ensino de História Moderna no Amapá: metodologias para o uso de acervos documentais e do patrimônio histórico na sala de aula

Andrius Estevam Noronha / Universidade Federal do Amapá

O ensino de História Moderna vem ganhando outros contornos com a digitalização dos arquivos e seu acesso facilitado em plataformas online ou em CDs como é o caso do acervo vinculado ao Projeto Resgate. Não é apenas a pesquisa em história que ganha com esse processo, mas aqueles que desejam utilizar o documento na sala de aula sem a necessidade de levar uma turma inteira para o arquivo. E mesmo lá, o documento seria manuseado no máximo por 2 ou 3 alunos. Infelizmente o maior desafio para essa inovação no ensino e aprendizagem é a capacidade de infraestrutura tecnológica da escola, pois para um melhor aproveitamento dessa proposta, o educandário precisa ser dotado de projetores em suas salas de aula e, não menos importante, de uma internet para visitar os acervos digitalizados e disponíveis em sites.

No caso específico do Estado do Amapá, a baixa produção acadêmica sobre o período colonial se deve, entre outras razões, pela inexistência, até o presente momento, de um arquivo público que concentre as fontes documentais que versam sobre o período. Conhecido na época colonial como Terras do Cabo Norte ou Guiana Portuguesa, o chamado “Amapá Colonial” foi cenário de disputa que envolveu especificamente as coroas francesas e lusitana nos séculos XVII e XVIII. A produção de documentos da administração colonial como mapas, relatos de viagem e cartas oficiais permitiu integrar novos pesquisadores que se debruçaram sobre um período e região pouco explorado pelos estudos acadêmicos.

Num panorama geral, os pesquisadores ou professores de história que pretendem usar as fontes documentais sobre o Amapá no contexto da História Moderna terão que buscá-los em vários acervos como o Arquivo Histórico Ultramarino, o Archives Nationales d’outre mer, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Biblioteca de Boston, Arquivo do Estado do Pará, Arquivo do Estado do Maranhão, Arquivo do Itamaraty entre outros. Como é possível perceber, nenhum se encontra no Amapá, o que poderia sugerir uma dificuldade caso não ocorresse a digitalização de seus documentos.

Em relação Arquivo Histórico Ultramarino, encontramos parte importante dessa documentação nos CDs do Projeto Resgate, que estão separados por Capitania. Só a Capitania do Grão-Pará conta com 13 CDs. Esse acervo permite recuperar a memória institucional dos acontecimentos políticos, econômicos e culturais ocorridos das Terras do Cabo Norte. Através do sistema de busca, a palavra “Macapá” aparece em aproximadamente 600 documentos, dos mais variados tamanhos e páginas. Os conteúdos são diversos, desde administração colonial até relatos de viagem. O acesso a esse conteúdo permite ao estudante do Amapá conhecer a dinâmica administrativa do século XVIII. A barreira principal é o estilo da escrita portuguesa do século XVIII. Muitos trechos são de difícil leitura, não é possível escolher qualquer documento para trabalhar em aula. É necessária uma seleção prévia do professor e avaliar se aquele documento tem relevância para a aula.

Em relação Archives Nationales d’outre mer, há uma densa documentação sobre a administração colonial da Guiana Francesa, fator importante para o período, pois metade do território que hoje compõem o Amapá era reivindicado por Versalhes. Os documentos estão digitalizados e disponíveis no site do arquivo e agrega toda a documentação administrativa do período. Só as correspondências vinculadas a Guiana Francesa do período de 1651 até 1825 são 89 volumes, todos digitalizados em alta resolução. O Oiapoque é citado em vários documentos que relatam incursões estrangeiras, fugas de escravos, conflitos e alianças com os indígenas.

Comparando a grafia dos documentos do Arquivo Histórico Ultramarino lusitano, a letra dos franceses é de melhor leitura, tendo apenas a barreira linguística como único obstáculo para o uso em sala de aula. Porém, deve-se destacar que o Amapá possuí uma tradição com o ensino de francês, tendo em vista a aproximação com a Guiana Francesa, o que poderia ser contornado com um projeto envolvendo professores de história e de língua francesa para o uso dessa documentação em sala de aula. Certamente teria um efeito pedagógico incrível entre os alunos, pois articularia as duas áreas do conhecimento e permitiria entender o idioma do francês arcaico e a memória da geopolítica das Terras do Cabo Norte com uso dessa documentação dos séculos XVII, XVIII e XIX.

No Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal, encontramos vários registros com o termo “Macapá”, muitos estão em processo gradual de digitalização. Basta o pesquisador entrar no próprio site da instituição e pesquisar na plataforma de busca. Merece destaque os documentos que relatam o processo dos soldados João Rodrigues e José da Silva, na vila de Macapá no ano de 1781. A Inquisição portuguesa abriu um processo de blasfêmia contra esses dois indivíduos. O processo possuí aproximadamente 30 páginas digitalizadas em alta resolução. A letra é razoável, podendo, após estudo preparatório do professor, ser utilizado no ensino médio e, dependendo da turma, até no ensino fundamental.

Em relação aos centros de memória: Arquivo do Estado do Pará e o Arquivo do Estado do Maranhão não possuem plataforma digital. Nesse caso, o professor teria a opção de ir até o acervo, tirar as fotos e utilizar em sala, com todo o ônus, caso não tenha apoio financeiro institucionalizado. Infelizmente, é a realidade para a maioria dos professores da rede pública não apenas do Amapá, mas do restante do Brasil, que não possuem agência de fomento para a realização de estudos e pesquisa para melhoria de sua prática pedagógica.

Diante desses desafios, mesmo carecendo de um arquivo público local, o Estado do Amapá permite oferecer inúmeras possibilidades para que professor possa potencializar a prática de ensino com os conteúdos de História Moderna com uso da documentação disponível digitalmente do período colonial. Os conteúdos básicos que são ensinados em sala de aula como Renascimento, a formação dos Estados Absolutistas, Reformas Religiosas, Escravidão, História Indígena e Navegações Ultramarinas podem ser agregados ao conhecimento histórico inserindo acontecimentos documentados localmente.

Especificamente no que hoje conhecemos como Amapá, haviam no período colonial quatro núcleos urbanos que emergiram ao longo do século XVIII e estiveram no centro da disputa envolvendo as coroas francesas e portuguesas na região. A principal delas foi a Vila de Macapá, que possuí no site Rede Memória o mapa de 1761 em alta resolução[1]. A partir desse documento é possível identificar diversos elementos específicos do século XVIII, como o novo traçado das ruas num contexto que o sistema de agrupamento urbano feudal perdia força nas novas vilas e cidades fundadas no contexto do Antigo Regime. Como efeito comparativo dessas vilas, é possível visualizar dois centros que foram o oposto do que seria a organização de Macapá: a colônia de Caiena, na Guiana Francesa, que é uma cidade-fortaleza e a própria cidade de Belém, que ainda hoje conserva na sua arquitetura urbana do centro antigo essa tendência a aglomeração com suas ruas estreitas. Analisando o tracejado dessas três cidades que emergem entre os séculos XVII e XVIII é possível discutir com os alunos uma nova perspectiva de urbanização que emergiu no final do período absolutista. Macapá é fruto do projeto déspota pombalino de modernização do Império Lusitano, além dessa, Mazagão também foi construída na mesma perspectiva moderna. Os professores de história do Amapá podem projetar a imagem dessas cidades com a documentação do período e reconstruir a memória do espaço que é parte da vivência cotidiana dos alunos.

Fator que chama atenção dos discentes quando olham o mapa de Macapá de 1761 é a presença do pelourinho no centro da cidade, um patrimônio cultural ligado a escravidão que foi esquecida na atualidade. O documento disponível no site Rede Memória indica o local de suplício de pessoas escravizadas que está localizada na atual praça Barão de Rio Branco, local frequentado por jovens que praticam esporte e desconhecem que ali ficava o pelourinho da vila. No mesmo documento é possível fazer o comparativo e identificar os estabelecimentos que estão na atualidade como a Câmara da Vila, na atual Biblioteca Pública. Outro ponto que chama atenção é o antigo Fortim, que atualmente está a Fortaleza de São José, ao seu lado consta a indicação de uma “Igreja Velha” que foi substituída após os términos da nova Igreja, atual São José.

Outro núcleo documentado é o povoado do Oiapoque, inaugurado com um destacamento militar francês na região que era reivindicado por Versalhes. A documentação principal é do Archives Nationales d’outre mer que indica o plano de ocupação da região em 1715 pelo governador de Caiena. A construção do forte foi concluída em 1726, o arquivo disponibiliza a planta da fortificação em alta resolução. Além disso, merece destaque a formação das missões jesuítica francesa em 1733. A documentação online mostra um precioso mapa da Guiana francesa colonial com a indicação detalhada dos rios, missões jesuíticas e povoados da região. Merece destaque que metade do estado do Amapá está incluso na construção cartográfica, o que permite efeito comparativo sobre a documentação portuguesa relacionada aos limites fronteiriço. Em relação a Companhia de Jesus francesa, merece destaque as cartas edificantes, que estão digitalizadas e disponíveis na biblioteca de Boston. Nessa documentação é possível identificar os valores renascentistas presentes na escrita dos jesuítas sobre os indígenas, o cotidiano da missão e os fatos locais relacionados a evangelização, desenvolvimento agrícola e relações com os diferentes grupos indígenas. Todo documento já passou pela transcrição paleográfica, sendo o idioma francês do século XIX a única dificuldade para o uso em sala de aula, que poderia ser sanada, como apontamos acima, com um projeto envolvendo professores de francês e história da rede pública do Amapá.

Outros dois povoados são mencionados na documentação do Amapá Colonial, a vila de Mazagão, fundada por Marques de Pombal no processo de transferência das famílias que moravam em Marrocos e deixaram a África para colonizarem a região amazônica. Pombal desejava que a cidade fosse um centro de produção agrícola nas Terras do Cabo Norte, porém a realidade acabou sendo outra, Mazagão acabou estagnando. O quarto e último povoado da região foi Madre de Deus, que na verdade servia mais como um entreposto para chegar até Mazagão.

Do ponto de vista da metodologia de ensino, o professor, após definir o tema e os conteúdos, pode organizar sua aula com base no documento, seja projetado em sala de aula e fazendo a leitura em conjunto com a turma ou no laboratório de informática, caso a escola tenha. É possível trabalhar com o aluno o conceito de documento, definindo a importância dessa fonte para a construção da narrativa histórica e destacar a coleta de informações consideradas pertinentes para o tema envolvido. Nesse processo, em se tratando de documentos do período colonial, o método da paleografia serve para inserir os alunos no contato direto com a fonte. A digitalização desses acervos permite que um único documento seja acessado por uma turma inteira e a capacidade de projeção desse documento permite uma interação maior entre aluno e professor. Com a grande quantidade de documento relativo ao Amapá Colonial, é possível designar um aluno responsável por transcrever cada documento. Nesse ponto, o uso de laboratórios de informática seria de grande ajuda para as aulas de paleografia. Feita a transcrição, o grupo se reúne e apresenta as informações traduzidas construindo assim a narrativa histórica. O importante é que o aluno saiba identificar, por exemplo, quem escreveu, para quem escreveu e qual a data de construção desse documento. Além disso, identificar a estrutura do documento, como a identificação das palavras de tratamento, as que já estão em desuso e a forma de escrita da grafia.

Por fim, esse texto pretendeu esclarecer algumas experiências de pesquisa e ensino com uso da documentação digitalizada em sala de aula tendo como modelo a rede pública do Estado do Amapá. A consolidação do Mestrado Profissional em Ensino de História, que está atualmente na terceira turma, e a abertura do Mestrado Acadêmico em História, ambos na Universidade Federal do Amapá, contribuirá para reforçar as pesquisas vinculadas ao período da História Moderna com a documentação colonial nos acervos descritos.

[1] Planta da Villa de S. Jozé do Macapa tirada por ordem do Ilmo Sñor Manoel Bernardo de Mello de Castro, Govor. e Cappam. general do Estado do Para. Disponível em http://bdlb.bn.gov.br/redeMemoria/handle/20.500.12156.2/1

Graduado em Estudos Sociais Habilitação Em História pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2003), mestrado em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2006) e doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2012). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Amapá. Tem experiência na área de História, com ênfase em História, atuando principalmente nos seguintes temas: santa cruz do sul, elite local, ditadura militar, rio grande do sul e prosopografia.

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