Andrey Minin Martin
Doutor em História -UNESP
Docente/História-Unifesspa/IETU
Falar em produção energética no Brasil nas últimas décadas tornou-se sinônimo de Amazônia. Isto se deve pelo vultoso número de grandes projetos hidrelétricos desenvolvidos e em desenvolvimento nesta região, possuidora de uma quantidade de rios tão numerosa quanto o de linhas de transmissão que surgem a cortar seu território em direção a outros estados. Porém, não somente de quilowatts vivem os debates e trajetórias deste setor. E o ano de 2019 já possui uma nova página para este histórico.
Ainda nos primeiros meses desse ano, uma das lideranças regionais do Movimento de Atingidos por Barragens, o MAB, foi assassinada no estado do Pará com requintes de crueldade. Sua morte, conjunta a de duas pessoas que viviam no mesmo assentamento, Salvador Allende, proveniente da construção da hidrelétrica de Tucuruí, remontam mais um capítulo das relações entre a construção de grandes projetos hidrelétricos e a reorganização territorial. Localizado no município de Baião (PA), o assentamento foi criado a partir da ocupação de 480 famílias em 2007 da antiga fazenda Piratininga, localizada próximo a rodovia BR- 422 (Transcametá), local este historicamente palco de grilagens e conflitos de terras, que se intensificaram com a construção da hidrelétrica de Tucuruí. Após um período de intensos conflitos, entre moradores, fazendeiros e pistoleiros, a área foi regularizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, INCRA, em 2011, por meio de pagamento ao antigo proprietário, mesmo sendo área da união.
Em um estado marcado historicamente pelos conflitos fundiários, este cenário foi intensificado a partir da década de 1970 com o início da instauração de grandes projetos energéticos, em que, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (2012), mais de trinta mil famílias buscaram um novo recomeço. Como já debatido na historiografia (NOVA, 1985; MAGALHÃES, 1996; SIGAUD, 1992) o desenvolvimento do setor energético sempre esteve marcado pela ampliação do parque energético como elemento de desenvolvimento nacional, mas promovendo profundas transformações sociais em seus espaços de estabelecimento. Desde a ampliação do setor quando passou de projetos locais e regionais para o de grandes hidrelétricas, iniciados na década de 1940, a paisagem e os modos de vida de populações tradicionais, ribeirinhos, camponeses e grupos indígenas passaram por profundas transformações, centradas principalmente no submergir de seus territórios e o gradual, e longo, processo compulsório de deslocamento populacional, quando assim conseguem ser ressarcidos.
Para além de seus interesses e necessidades serem ouvidas, abdicam da historicidade e pertencimento com o local de vida e trabalho, bem como a sucessão de transformações a médio e longo prazo no ambiente, por vezes irreparáveis. Nesta “disputa” de interesses e necessidades, vence, em grande parte, o discurso do desenvolvimento nacional para denominadas “regiões atrasadas” ou à margem do processo de integração, discurso que até a atualidade se faz guisa.
No caso da região Norte, a década de 1960 marca o início de maiores estudos visando estes grandes projetos, a partir das intervenções realizadas por órgãos como a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e do Banco da Amazônia S/A (BASA), ainda em 1966. No caso do setor energético este mapeamento estará centrado no Comitê Coordenador dos Estudos Energéticos da Amazônia, ENERAM, um dos primeiros programas criados para seu aproveitamento energético, que, sob coordenação da Eletrobrás reunia empresas de consultoria nacional para realização de novos estudos e mapeamentos. Nascem, a partir destes estudos, a ELETRONORTE e os primeiros projetos hidrelétricos de maior porte para a região, dentre estes a hidrelétrica de Coaracy Nunes, em 1975, no Amapá, a UHE Curuá-Una, em 1977, a sudeste de Santarém e Tucuruí, construída entre 1976 e 1984, um dos maiores projetos hidrelétricos do mundo. Além destes, seriam construídos nos próximos trinta anos outros treze grandes empreendimentos na Amazônia, tendo destaque as hidrelétricas de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio (BORGES, 2018).
O caso de Tucuruí, ligado diretamente ao recente evento, torna-se imperativo para compreensão dos caminhos dos movimentos sociais neste espaço. Localizada na porção sudeste do Pará, a aproximadamente trezentos quilômetros da capital, Belém, a maior obra do período militar para Amazônia é resultado dos mapeamentos inciados desde a década de 1950/1960, visando atender as novas demandas dos projetos minero-metalúrgicos, como das indústrias de alumínio (Albrás; Alunorte, Alumar), de financiamento japonês e norte americano. Projetada no governo de Emílio Garrastazu Médici, em 1973, as obras tiveram início em 1975, pela já atuante Camargo Corrêa (CAMPOS, 2014), sendo inaugurada em 1985, no então governo de Figueiredo.
Dona de um dos maiores potenciais energéticos do país, com mais de 8 mil MW, seu estabelecimento possibilitou, além do abastecimento da capital do estado e dos projetos de mineração, a implementação de uma rede de linhas de transmissão e estações rebaixadoras, como assevera Lia Machado (et al, 2006). Inicialmente esta rede ramificou-se para três direções regionais: para Barcarena-Belém, Sul do Pará e São Luís, no Maranhão. Nas próximas décadas esta rede seria gradualmente conectada para outras regiões, como o oeste paraense (Santarém) e regiões do Nordeste e Sudeste, como ocorrem até o presente momento, divididas agora com Belo Monte.
Porém, a vultuosidade do projeto contrasta com o tamanho de seus impactos sociais e ambientais, ocorrentes desde a década de 1980. Com a formação de um lago com mais de 2 mil Km quadrados o rio Tocantins e seus moradores perpassam por um histórico processo de transformações. Destacam-se, de forma geral, a migração desordenada no processo de ocupação de mão de obra para construção da usina, o alagamento de terras e ilhas ao longo do rio Tocantins, assim como povoados e terras indígenas (PINTO, 2012; FEARNSIDE, 2002). Os municípios de Jacundá, Tucuruí, Itupiranga e Rondo do Pará, dentre outros, sofreram alterações em seu território. No caso dos grupos indígenas as reservas de Parakanã, Pucuruí e cerca de 70 % do território dos Gaviões da Montanha foram afetados, sendo estes últimos transferidos para Mãe Maria, reserva que viera novamente a sofrer interferências relacionadas às obras de Tucuruí. De sua inauguração até o presente muitas ações foram tomadas, principalmente a partir das obrigatoriedades legislativas da década de 1980, e parcerias foram realizadas, por exemplo, com a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Inpa e o Museu Emílio Goeldi. Tais ações foram centrais, mas não suficientes para equilibrar as transformações em ocorrência até o presente.
Neste processo, as tomadas de decisões nem sempre foram permeadas pela participação da diversidade de grupos envolvidos. E grande parte dos problemas que até hoje são sentidos são recorrentes a processos de reassentamentos, indenizações materiais e descaso em relação às novas condições em que são postos, como a pluralidade de doenças existentes pelo enchimento do lago ou mesmo as condições reais de trabalho nas novas terras. Como apresentado em relatório da Comissão Mundial de Barragens, em 1999, a respeito de Tucuruí, o processo de reassentamento ocorreu de forma tardia e parcial, em que ao longo dos anos os reais números de famílias afetadas cresciam exponencialmente. Conjuntamente destacam que comunidades ribeirinhas acabaram sendo deslocadas para regiões em que a atividade econômica era outra, centradas em atividades agropastoris. Logo, o insucesso de muitos reassentamentos, como foram apontados por muitos veículos da mídia nacional, não consideram tais alterações, bem como a forma como ocorre o processo de reassentamento. Além disto ocorreu que, como pontua Fearnside (2002), até a década de 1990 mais de três mil pessoas reassentadas pela ELETRONORTE tiveram que ser realocadas devido a novas inundações de seus reassentamentos.
Logo, quando José Sarney, o primeiro presidente após a abertura democrática visitou a hidrelétrica de Tucuruí, observou quão caótica era a situação, autorizando a criação de uma comissão para resolver os problemas dos reassentamentos. Mesmo assim, estes problemas não foram resolvidos e os movimentos sociais entraram em cena novamente em nossa história na luta por justiça social e soberania popular. Dentre estes movimentos nasceria o MAB. Pertencente aos denominados Novos Movimentos Sociais (NMS) estes resultam do conjunto de reivindicações que ganharam notoriedade a partir da década de 1970 frente as mazelas provocadas pelas ações do estado durante o período militar, que resultaram, dentre outros aspectos, no reordenamento territorial provocado pelo estabelecimento de projetos, públicos e privados, que alteraram modos de vida, trabalho em diferentes regiões do país, do campo a cidade (GRZIBOWSKY, 1991).
E a instalação de grandes projetos hidrelétricos se torna um dos principais focos de contestação em várias regiões do país, devido a forma como este reordenamento era processado, bem como pela magnitude do número de grupos atingidos em seu estabelecimento. Três regiões destacaram-se inicialmente a partir de 1970/80: a região Nordeste, em que projetos como da UHE Sobradinho e, posteriormente, Itaparica provocam grande número de desalojados; na porção centro-sul, com o megaprojeto de Itaipu e na porção Norte, o projeto de Tucuruí, a maior em território nacional. O processo de lutas por indenizações, dentre outras problemáticas, produziram o início de organizações regionais, de luta e resistência ante estes projetos, como na criação da Comissão dos Atingidos pela Barragem de Tucuruí, a CATHU. Segundo os documentos de reivindicações apresentados pelo movimento (1984) este processo ocorreu conjuntamente quando a ELETRONORTE iniciara as conversas com moradores de regiões a serem atingidas, cessando totalmente qualquer tipo de atividade nos locais, mediante o cadastro das famílias a aguardarem o ressarcimento. Observando a morosidade e abusos cometidos, entidades como a Comissão Pastoral da Terra, CPT e lideranças de sindicatos rurais iniciaram um processo de encontros em diversos municípios, em busca do cumprimento de indenizações justas e contra as arbitrariedades em processo.
Assim como ocorriam em outros estados, acampamentos surgiam no processo, realizados em espaços como a sede da ELETRONORTE e no canteiro de obras. Ao longo dos trinta anos seguintes, o que se observaria seria uma pluralidade de grupos, ribeirinhos, camponeses, pescadores, indígenas, trabalhadores urbanos e rurais, apreendidos como diferentes denominações, expropriados, atingidos, realocados, categorias em movimento. Assim, populações das regiões de Vazanteiros de Itupiranga, Tauri e Moradores da Localidade da Rainha e Morajuba somaram-se a estes grupos na reivindicação pelo ressarcimento de novas terras, visto que, além dos conflitos de terra historicamente existentes neste espaço, o descaso também ocorreu neste processo pelo não cumprimento dos respectivos Módulos Rurais estabelecidos para a região pelo Estatuto da Terra, formulado em 1964. E além desta problemática, cerca de 3.700 famílias tiveram que ser realocadas quando seu primeiro reassentamento fora novamente inundado, como destaca Magalhães (1996).
Estas situações não seriam resolvidas até 1985, momento do início de funcionamento da hidrelétrica de Tucuruí, intensificando, na verdade, os problemas a partir deste período. Logo, as experiências apreendidas neste processo gestaram importantes articulações para além do espaço regional. Ocorreria então em 1989 o primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens, espaço que permitiu o gestar e visibilidade de algo maior, impulsionando dois anos depois, em 1991, a realização do primeiro Congresso dos Atingidos, em que o MAB seria posto como um movimento de âmbito “nacional, popular e autônomo” a partir de definições estabelecidas por uma matriz de organização nacional, tendo o dia quatorze de março como o Dia Nacional de Luta Contra as Barragens.
Atualmente, o MAB coordena movimentos em dezesseis regiões do país, realizando encontros trienais, expandido e intensificando a luta não somente para os processo de reassentamentos, mas para compreensão de escolhas políticas e sociais que envolvem nosso modelo energético. Para além dos atingidos, episódios como este ocorrido em 2019 demonstram que a luta não é somente pela conquista da terra, mas para nela permanecer. A questão fundiária que historicamente marca a trajetória destas populações do campo, encontra no espaço paraense uma realidade em que diretos sociais e ambientais são postos à regalia de forças e poderes locais, em direto enfrentamento com os movimentos sociais. Muitas outras “Silvas” continuam em busca de seus direitos e contra a impunidade. A produção energética de Tucuruí é imponente, tão quanto os impactos causados.
Referências:
BORGES, L. R. M. Políticas territoriais e o setor elétrico no Brasil: análise dos efeitos da construção de hidrelétricas na Amazônia pelo Programa de Aceleração do Crescimento no período de 2007 a 2014. 2018. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
CAMPOS, Pedro H. Pedreira. “Estranhas Catedrais”: As empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar (1964-1988). Niterói: EduFF, 2014.
DOCUMENTO. Documento de Denúncias e Reivindicações dos Expropriados dos Municípios Atingidos pela Construção da Barragem de Tucuruí. 07 de outubro de 1984.
FEARNSIDE, Philip M. Impactos sociais da hidrelétrica de Tucuruí. Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Manaus – Amazônia, 2002.
HTTPS://www.mabnacional.org.br
NOVA, Antônio Carlos Bôa. Energia e Classes sociais no Brasil. São Paulo: Loyola, 1985.
MACHADO, LIA, et al. Redes de distribuição de energia e desenvolvimento regional na
Amazônia Oriental. Novos Cadernos NAEA. v. 9, n. 2, p. 99-134, dez. 2006.
MAGALHÃES, Sônia Barbosa. O desencantamento da beira- reflexões sobre a transferência compulsória provocada pela Usina Hidrelétrica de Tucuruí. in: MAGALHAES, S.; BRITTO, R. & CASTRO, E. (orgs). Energia na Amazônia. Vol. II. Belém: Museu Emilio Goeldi, 1996.
PINTO, Lúcio Flávio. De Tucuruí a Belo Monte: a história avança mesmo? Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 7, n. 3, p. 777-782, set.-dez. 2012.
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